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NOÉ SENDAS
Com uma exposição recém inaugurada na galeria Carlos Carvalho, intitulada “Significant others”, Noé Sendas continua a explorar “um mesmo edifício, um mesmo corpo de trabalho”, como afirma nesta entrevista à Artecapital. Num período em que o seu nomadismo constante o trouxe de novo a Portugal, Noé Sendas falou-nos não só das suas séries mais recentes, mas também do seu percurso biográfico e artístico.
Por Liz Vahia e Victor Pinto da Fonseca
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LV: Inauguraste no dia 21 de Setembro a exposição “Significant others”, na Galeria Carlos Carvalho, onde podemos ver algumas obras da série que tens desenvolvido desde 2009, PEEPs. O título da exposição parece remeter-nos para uma ideia de identidade em suspensão, que deriva das imagens de corpos sem rosto, do Outro anónimo que pode ser quem queiramos. A impossibilidade de acesso ao rosto é algo que está presente no teu trabalho desde o início. O rosto possui demasiada informação e afecta a harmonia da imagem e a relação entre espectador e obra?
NS: Tenho estado ao longo de vinte e tal anos a construir e simultaneamente a fazer as obras de manutenção de um mesmo edifício, de um mesmo corpo de trabalho, em permanente mutação, que se alimenta de algumas ideias chave e de alguns "significant olhers". Uma das ideias chave é o dispositivo de visionamento, set ou coreografia visual onde equaciono o posicionamento do narrador versus o posicionamento do espectador perante a obra, de forma a tornarem-se ambos parte integrante da mesma. O espectador não só contempla algo que é accionado pela sua contemplação, mas também contempla a ideia de si mesmo a contemplar essa determinada situação e desta forma desloca-se de si mesmo e do mundo real.
Dou alguns exemplos destes Sets ou Situações usualmente uncanny.
Uma voz off que nos murmurava a partir de uma almofada fixa à parede, sobre a qual o espectador se encosta (Out Takes, 1996); a voz off que acompanha uma mulher que cai numa queda sem fim sobre o corpo espectador (Impulsos e Hesitações, 1997 - vídeo projectado sobre um tecto falso que por sua vez se encontra suspenso); entre muitas outras obras.
Num segundo momento e após a realização da instalação vídeo Wanderer, produzido no Art Institut of Chicago em 1998, comecei a desenvolver uma série de figuras esculturas, que pareciam estar sempre de costas para o espectador e às quais dei o nome genérico de Nameless. No entanto cada uma destas figuras esculturas era um narrador com características e de história diversa, e aqui de novo estava a trabalhar a ideia de Set, de um Still de uma coreografia, que permitia o espectador interrogar-se sobre um antes e um depois, estas obras eram sempre que possível apresentadas em espaços semi-públicos, um hall de entrada, uma escadaria, o que tornava as obras mais unsetling....
Mas voltando à tua questão, sim interessa-me que o espectador projecte ou resgate da sua memória um rosto ou uma ideia, sobre esse corpos que eu vou lançando isoladamente ou em grupo, inicialmente em forma de escultura ou mais recentemente nas imagens esculpidas que integram a instalação Significant Others, 2009-2016: peça composta por 2 sets de 12 fotografias ou frames suspensos à altura do olhar por arames e que se encontram agrupados em forma de 2 círculos (círculo A: 12 figuras viradas para fora / círculo B: 12 figuras viradas para dentro) no interior de uma sala de 120m2.
Interessa-me que espectador ao deambular à volta do círculo A, ou sobre si mesmo no interior do círculo B, veja as fotografias em movimento - que as fotografias sejam entendidas como frames. Que o espectador ao deambular em círculo seja o próprio motor que acciona, acelere ou retarde um pequeno filme em loop, no qual uma personagem feminina, sem nunca revelar o rosto, permanentemente on the run, se esquive de forma enigmática ao nosso olhar. Que o filme por fim se apague quando o espectador desconecte o seu olhar ou já distanciado do círculo o observe como uma espécie de carrossel preso por arames.
Isto para dizer que esta exposição não é uma exposição de fotografia. Mas sim um Set, um carrocel, uma instalação de pequenas esculturas 3D.
VPF: Na maioria das vezes, do que eu conheço, editas imagens - simultaneamente - poéticas, esteticamente sedutoras e estranhas. Imagino que as tuas imagens partem de fotografias antigas encontradas através de pesquisas que realizas em arquivos fotográficos...Fotografias que depois transformas e regeneras - sob a forma de justaposições digitais -, com uma simplicidade ilusionista, uma magia privada, que uma vez editada, partilhas com o público...As imagens sugerem mesmo o teu próprio fascínio em ver quão imprevisível emergem as fotografias quando as imagens separadas colidem e/ou se misturam. Estou certo?
Que tipo de relação tens com as imagens que pesquisas e coleccionas para editar? Consideras-te um storyteller ou as imagens que editas não têm nenhuma narrativa?
NS: Total storyteller! Cada imagem contém uma micronarrativa, são filmes de um só frame. Editadas por sobreposição como se se tratassem de palimpsestos. Trabalho o pixel como o escultor trabalha a pedra. Ou mais precisamente como o cirurgião plástico trabalha o corpo. Reconstruindo, utilizando técnicas de transplante na imagem.
A construção de uma só imagem pode durar anos, trabalho a partir de um viveiro de imagens permanentemente ongoing....
Mas, resumindo, o que importa em todo este trabalho de depuração da imagem é acabar com um objecto cristalino imprevisível e assim obter mais um frame for the bigger picture, para incluir na série, para incluir no tal Set de que te falava anteriormente.
Um pequeno aparte, uma vez que nesta exposição não são apresentadas obras desta série, Crystal Girls, uma série que vai ser composta por 100 imagens... Se nos últimos 8 anos terminei umas 40, se continuar a este ritmo a série só será ou poderá ser apresentada na sua versão final daqui a 12 anos. Ou seja, uma obra com 20 anos de construção onde toda uma série de obseções são facilmente perceptíveis, isto sempre utilizando um mesmo formato, e uma mesma técnica.
Acho que voltei a sair do trilho.... da tua pergunta.
As imagens que colecciono para depois vir a trabalhar na série Crystal Girls têm que ter algo errado. Normalmente é a partir desse elemento, dessa farpa, que começo a trabalhar.
Não sou fotógrafo, nem capto nada a partir da realidade (ainda que por vezes tenha ghost photographers a trabalhar comigo) o que me interessa é a construção da imagem, a composição, a narrativa que posso propor ao trabalhar de determinado modo determinada ideia.
Quanto ao mágico, interessa-me fazer as coisas de uma forma elegante e potente. Tal como o mágico, a ideia é sempre deslumbrar e surpreender o espectador, para isso o domínio da técnica importante.
LV: Mesmo trabalhando sobre fotografia - e ainda mais esta fotografia datada e de um estilo reconhecível, popularizado - as obras que crias têm uma forte dimensão de presença material: pela composição, pelas figuras geométricas adicionadas... Há um escavar, um adicionar de matérias. Há uma sensação de trabalhares com o peso da imagem, de ires balançando elementos. Qualquer destas imagens que recolhes pode merecer ser intervencionada, ou há algo específico que determina a tua escolha?
NS: Depende das séries.... Na série PEEPs o que procuro é muito simples mas não é fácil de encontrar: um novo frame para uma película que já tem um Set e uma heroína pre-determinados. Imagem essa que obviamente traga algo de novo, que estilhace a sequência, que não seja uma repetição ou algo aborrecido.
Como se procurasse uma nova escultura para colocar no Petite Sablon (jardim de esculturas em Bruxelas).
Quanto ao lado escultórico das imagens, o trabalhar com as sensações de peso, equilíbrio, as figuras geométricas adicionadas, etc, se tivesse que nomear referencia seria um mix entre Richard Serra vs Buster Keaton.
A série Cristal Girls é muito mais complexa. É uma série mas não é uma sequência...
Aliás, é pensada como uma grande anti-sequência e por isso ongoing e morosa.
LV: A montagem nestas imagens é evidente, mas ao mesmo tempo o processo é tão perfeito que a sua feitura é como que apagada. Isso cria – e já criava nas tuas esculturas hiper-realistas – uma perturbação em quem vê. É um jogo com a tentativa instintiva de procurarmos sempre o reconhecível e identificável?
NS: Existe uma expressão sprezzatura de que gosto particularmente. Apresentar ao mundo algo que teve um trabalho complexo, mas que aparenta ter sido algo realizado ou simplesmente encontrado por mero acaso.
Ou por outras palavras e voltando ao exemplo das cirurgias plásticas, só têm êxito quando não nos apercebemos delas.
VPF: Obras tuas foram recentemente divulgadas em artigos na imprensa internacional, nomeadamente na Wallpaper e na The New Yorker Magazine...Esse reconhecimento veio de revistas não especializadas exclusivamente em arte (têm mais para além da arte contemporânea), o que significa uma ampla e notável divulgação para o teu trabalho.
Este reconhecimento internacional do teu trabalho tem-se reflectido num crescente interesse sobre as tuas obras?
NS: Sim, tem havido um enorme e crescente interesse nas minhas obras, excepto em Portugal. Esse reconhecimento mais mediático vem das comissions (features produzidos especificamente) para as revistas a que te referes, e ainda obras publicadas na acne, na du magazine, na elephant magazine entre outras... mas também há um reconhecimento do meio artístico, dos comissários e coleccionadores que vêm pelas exposições e colaborações recentes com o Michael Hoppen em Londres, Michael Fuchs em Berlin ou Roy Kahmann em Amsterdão, o Claudio Composti em Milão ou o Juan Silio em Espanha.
VPF: Ao longo da nossa conversa percebi que a arte é uma paixão que te preenche desde muito cedo; também a universalidade do teu percurso pessoal se iniciou cedo; se bem percebi, nasceste em Bruxelas (1972) porque os teus pais tinham saído de Portugal no final dos anos 60... e ambos eram artistas...
Corrige-me e conta-nos um pouco desta tua itinerância e da influência no teu trabalho ligada aos teus pais.
NS: Nasci em Bruxelas e tive passaporte de exilado até aos 4 anos. Vivi a minha infância numa casa atelier... Ou seja, nunca distingui, nem distingo, o dia a dia da prática artística.
Dos 13 aos 17 vivi em Londres, só depois venho para Portugal e entro directamente no atelier livre, um grupo de miúdos (entre eles o José Drummond, o Francisco Tropa, o Edgar Massul, a Marta Soares, o Rui Calçada) orientados pelo professor Pedro Morais. Logo de seguida entro na escola Ar.Co, ainda no tempo do Manuel Costa Cabral, e tenho o Rui Sanches, o João Queiroz e o Miguel Branco como professores e como colegas uma turma terrível: just to name a few, o Paulo Brighenti, o Pedro Paixão, o Pedro Gomes, o Rui Moreira, a Berta Elrich, o Diogo Pimentão, entre muitos outros.
Estes anos de formação, entre os 17 e os 25, que ainda incluem um par de residências em Londres, Paris, Veneza e Chicago, são determinantes e determinam o considerar-me um artista português. Porque na realidade não nasci aqui nem aqui vivi metade da minha vida.
VPF: O mundo da arte em Portugal é uma pequena circunferência (parece-me sempre que estamos sozinhos); vale a pena insistir e repetir: no contexto actual se não formos globais as perspectivas de desenvolvimento profissional acabaram. Numa análise geral - não é exagero afirmar - o teu percurso pessoal e profissional revela um enorme movimento, sobretudo na Europa.
Descreve-nos o trajecto que percorreste nos últimos 16 anos que permita aos leitores da Artecapital compreenderem melhor que forma tomou a tua mobilidade no séc. XXI.
NS: Se dependesse do mundo da arte em Portugal, já me tinham tentado fazer a folha. Com a crise, o verniz de muitos dos estabelecidos do meio estalou (risos) e tornaram-se muito maldosos. No entanto, penso que uma nova vaga de novos agentes nacionais e internacionais, residentes em Portugal por uma série de acasos, vai entrar rapidamente pelo meio artístico e dar uma nova frescura a um meio que estava a ficar muito monocromático e fechado sobre o seu umbigo.
Nos últimos 16 anos... Em 1999, aos 28 anos, fui para Berlin como primeiro residente português no Kunstlerahaus Bethanien. Regresso a Portugal passado esse ano em residência em Berlin. Fico em Lisboa, trabalho com as galerias Pedro Oliveira e Cristina Guerra, demoro 3 anos a dar o passo e por fim mudo-me com malas e bagagens para Berlin....
Entro para o artist runned space invaliden1. com o Rui Calçada e outros 4 artistas espanhóis. Comissariamos, produzimos, co-produzimos e expomos ao longo de 8 anos uma centena de artistas, 4 deles que acabariam por representar os seus países na Bienal de Veneza. No meio desse período termina a minha colaboração com as referidas galerias. Em 2014 termina a invaliden1 no seu formato artist runned space. Passo a viver entre Madrid e Berlin. Actualmente colaboro com 7 galerias espalhadas pela Europa, o que me obriga a estar constante em trânsito.