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AIDA CASTRO E MARIA MIRE
Aida Castro e Maria Mire são uma dupla de artistas que explora em formatos múltiplos o campo expandido dos media. Investigadoras, artistas e docentes no ensino superior, conheceram-se na Faculdade de Belas-Artes do Porto no início de 2000. Aida Castro é doutorada em Ciências da Comunicação, na especialidade Comunicação e Artes pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, e investiga relações entre arte e tecnologia, das práticas dos imaginários e das mediações das práticas artísticas. É coordenadora do projeto (de)MONSTRAS: imaginários, corporalidades e materialidades anfíbias do ICNOVA. Maria Mire doutorou-se em Arte e Design pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (FBAUP), centrando seu trabalho artístico e de investigação nas questões da perceção da imagem em movimento e nas fantasmagorias técnicas das práticas artísticas, tendo realizado os filmes documentais-experimentais ”Parto sem dor" de 2020 e "Clandestina" de 2023. Nesta entrevista, a dupla partilha a sua visão sobre a prática artística colaborativa e os temas que exploram na sua obra conjunta – que se estende também ao campo da investigação em artes e media, e de que é exemplo o recentemente lançado número 59 da Revista de Comunicação e Linguagens, dedicado à condição da experiência e imaginário dos “Corpos-Media”.
Por Catarina Patrício
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Catarina Patrício: Como surgiu a ideia para este número?
Aida Castro e Maria Mire: A ideia deste número está associada ao termo corpos-media. Esse termo foi encontrado num projeto de investigação apoiado pelo ICNOVA, que teve a duração de um ano e que tem outro título, (DE)MONSTRAS: imaginários, corporalidades e materialidades anfíbias – e que reuniu várias investigadoras. E este termo apareceu como um termo chave deste projeto; e que nos levou também à ideia de demonstrar. Portanto corpos-media, para nós com a RCL, funcionou como uma espécie de teste. Uma espécie de abertura à comunidade, para poder participar e refletir sobre ele (o conceito corpos-media). Foi, é, um conceito operativo para pensar uma série de questões que nos interessavam. Questões que tinham também a ver com aquilo que já tínhamos trabalhado na Interact, na edição Dead Link, e com a possibilidade de trazer uma série de manifestações artísticas, ou uma série de corpos, que de facto não eram inteiramente os corpos tecnológicos, eram antes corpos híbridos, e que poderiam ajudar a problematizar este sítio de passagem entre práticas e materialidades. Houve aqui esse exercício de procurarmos encontrar esta proposição dos corpos-media, também a partir de um ponto de vista arqueológico, como estes corpos-media podiam ser os corpos fantasmagóricos do século XIX. Podiam ser os fantasmas, as figuras fantasmagóricas da tecnologia, e pensar quais seriam hoje essas materialidades do assombro.
No fundo corpos-media é uma categoria que nos ajuda a enunciar estes corpos que se demonstram – daí a relação com o título do outro projeto. Queremos dizer que se ganha uma corporalidade específica e queremos pensar a questão tecnológica com os corpos. Que corpos estão a ser imaginados nestas relações entre materialidades e tecnologia; e as materialidades tecnológicas que têm, como é que se demonstram especificamente – daí a questão dos media. Para nós, media tem um sentido muito expandido. Não tem o sentido dos media da comunicação apenas. E daí poder chegar às artes plásticas. Sabemos que, nas artes plásticas, os media são tratados de uma forma expandida, sobre a funcionalidade ou não funcionalidade tecnológica das materialidades tecnológicas.
CP: Em que traços se percebem as materialidades produzidas por estes corpos? Que imaginários reclamam os corpos-media?
AC-MM: Nós estamos a tentar perceber isso também dentro do projeto (de)monstras. Aliás, um dos objetivos do projeto, e o que estamos a tentar fazer a partir sobretudo deste número da RCL e das primeiras propostas de investigação, é construir uma arqueologia desses corpos-media. E tentar perceber que esses corpos são inseridos na ideia de fantasma – produzidos pelas materialidades tecnológicas, e que também é uma figura muito cara às práticas artísticas, como nos cyborgs ou em tecnologias muito anteriores. No fundo, como é que estes corpos mediados e transformados nos podem reenviar para imaginários e manifestações pós-humanistas — é isso que o número (da RCL) de alguma forma conseguiu desbravar a partir dos contributos que nos chegaram e que publicámos — isto é, toda a possibilidade de discutir que corpos-media são esses dentro de uma ideia de pós-humanismo que não se estabelece apenas na contemporaneidade, mas já nas fantasmagorias tecnológicas do século XIX, por exemplo, ou ainda nos hibridismos que não são apenas tecnológicos. E também há outra questão que assenta nessas possibilidades: nós considerarmos que elas têm que ser pensadas a partir do campo das artes. Porque as artes formam um campo muito produtivo para pensar o modo como esses corpos-media existem, até a partir da dimensão da tecnologia. Porque permite criar corpos completamente emancipados, autónomos e discursivamente complexos, fora de um conjunto de retóricas falsamente simplistas que estão mais associadas por vezes a uma dimensão funcionalista e corporativista. No campo da arte há um extravio completo dessa retórica, e muitas vezes esses corpos manifestam-se de uma forma tão pujante que há que reclamar essa existência por si.
Neste número foi mesmo muito importante o espaço que nós abrimos para os ensaios-visuais. Quisemos dar, desde o início, um grande enfoque aos ensaios-visuais e procurar ter muitos contributos. Para além dos artigos que obviamente conseguiram desenvolver teoricamente muitas destas questões, e de uma forma bastante profunda, achámos que o espaço do ensaio-visual dava a possibilidade de pensar estes corpos-media dentro do contexto artístico, e que era aquilo que mais nos interessava.
CP: Foram editoras da Interact #34, Dead Link, mediações das práticas artísticas, ideia que partiu do vosso vídeo Dead Link de 2020. É estimulante notar a forma como partem das artes para produzir ensaio. Separam teoria e prática, ou será um e o mesmo campo de trabalho? Pode o ensaio e o pensamento constituir-se como laboratório artístico?
AC-MM: Não separamos de todo, é muito curioso, não separamos naquilo que é o nosso trabalho coletivo. Não separamos até naquilo que é eventualmente o nosso trabalho individual. E achamos que é aí que a nossa intersecção é mais forte. Entre o enunciado e a prática, nós não vemos nenhuma divisão. As nossas operações são transfronteiriças, não há para nós um limite rigoroso entre enunciado e prática, pois a prática poderá também ser produtora de um enunciado teórico. Por exemplo, corpos-media é um termo feito de materialidades várias e acontecimentos práticos que se demonstram, mas também pode abrir um campo teórico e poético para enunciar esses mesmos corpos. Há sempre uma ideia de interligação entre tudo, entre as ideias, o pensamento, as ações, as formas. E daí essa questão dos corpos-media. Os próprios media são uma possível formalização do enunciado teórico. Mas ao mesmo tempo o termo condensa o seu próprio enunciado teórico e engole-o.
Aliás outra coisa que também sucede, também na resposta anterior, é a questão da linguagem. Porque muitas vezes estes corpos-media editam uma linguagem própria. Isso acontece também quando se trabalha em coletivo. Por vezes, surge uma linguagem própria produzida pelo próprio trabalho coletivo que tem que ver com as relações, que tem que ver com as discussões, com as materialidades a que se chega, com os enunciados imagéticos-teóricos e com sistemas de comunicação. E há aqui outra coisa importante: a hibridização de tudo. Porque as próprias metodologias são híbridas. São múltiplas, altamente diversas. E também são choques, ou seja, são coisas que estão agrupadas por choque – assim como o cyborg – ou por coisas muito distintas que não estão necessariamente em consonância ou de acordo. E daí a questão do corpo, também de se corporalizar assim. Ganha-se um corpo. Esse ganhar corpo é fazer um corpo-media – que há de ser sempre específico, pode ser através da própria linguagem, através de um filme, através de um texto. Vai ganhar uma forma.
CP: Trabalham em dupla desde 2017. Como começou a vossa colaboração? De que forma as vossas práticas artísticas e percursos individuais se complementam?
AC-MM: Nós conhecemo-nos há demasiado tempo (risos). E aqui o demasiado é abordado de uma forma positiva. Tem a ver com a sedimentação daquilo que são as relações e, por isso, é muito difícil para nós encontrar esse momento originário. De facto, desde que nos começámos a relacionar, começámos de alguma forma este diálogo com registos muito distintos: primeiro, mais à distância, cada uma com o seu corpo de trabalho, mas sempre procurando discutir; depois, tornou-se inevitável. Se calhar essa discussão, era já uma discussão mais profunda e, por isso, era importante para além de pensarmos juntas, fazer em conjunto. Mas de facto foi há muito tempo, quando ainda estávamos na Faculdade de Belas Artes do Porto.
Porventura o nosso desejo mútuo de indistinção entre a teoria e a prática, foi o que provocou essa aproximação. E também porque o território que nós partilhamos acaba por ser o território das artes visuais, apesar de haver sempre ramificações. Há incursões que fazemos autonomamente ao cinema, à curadoria, à escrita, mas depois quando nos voltamos a juntar a coisa bate sempre no mesmo sítio, sempre no mesmo tipo de desdobramento. Ou seja, não estamos no mesmo sítio que estávamos há 15 ou 20 anos atrás, mas há uma espécie de perspectiva ou de encontro ontológico que faz com que a coisa esteja sempre a funcionar dentro desse modus operandi.
CP: De que forma conciliam a prática artística com a investigação e docência? Quais são os principais conceitos e abordagens teóricas que informam o vosso trabalho artístico conjunto? E que modelos artísticos influenciam a vossa investigação académica?
AC-MM: Retomando a questão de não fazer a separação entre teoria e prática, mesmo no contexto das aulas há intersecção, há sempre um argumento e uma questão teórica a operar, sendo que ambas damos aulas no contexto das artes plásticas ou do cinema. Ou seja, fazemos muita questão de, quando se discute um problema teórico, se parta de um objeto artístico ou vá dar a um objeto artístico. Ou então provocar um objeto artístico – que são coisas diferentes. Ou parte deste objeto artístico, no sentido de ser uma análise, ou formula-se num objeto artístico. Ou então, ainda uma outra camada, é esse enunciado provocador poder produzir um novo objeto artístico. Estamos a falar de unidades curriculares minimamente práticas, e aí é quase uma questão de aproximação metodológica. Depois, ao nível daquilo que são as questões discutidas, nós as duas alimentamo-nos muito a partir da história da tecnologia. Em direções diferentes: uma mais guiada pela arqueologia dos media e do cinema, a outra mais pela arqueologia da técnica e da ciência. Outro ponto que nos junta é a questão da relação com a história. Há, de facto, uma vontade de relacionar, e de provocar ligações, que são ligações temporais, que são ligações enunciativas, e que têm a ver com o pensar o contemporâneo. Ou seja, há sempre essa vontade de pensar uma relação causal – mesmo os objetos que são dotados de uma certa aridez por serem tão contemporâneos. Pode ainda não ter sido produzido discurso sobre eles, e o exercício que nos interessa fazer não é um discurso que cristalize esses objetos enquanto enunciado, mas antes provocar ligações, que são processos históricos, processos sociais, processos tecnológicos. Às vezes são ligações bastante arriscadas.
Ainda sobre as aulas, há, portanto, essa tentativa de provocar, a partir de uma série de ligações, que também são ligações históricas e materiais, entre as materialidades dos media ou da tecnologia; há essa tentativa de estabelecer uma provocação que vai sempre gerar ou produzir uma linguagem própria. Ou de um trabalho prático, que também se insere nesta linguagem própria – a linguagem artística. Então não há como escapar à ideia de linguagem própria. O próprio campo em que damos aulas é favorável, de facto, a este tipo de aproximação.
CP.: Têm experimentado novas direções temáticas ou meios? Que projetos estão na calha?
AC-MM: Eventualmente uma dimensão mais performativa. Se calhar fomos sempre pensando o discurso em diferentes media, ou estivemos a aproveitar a discursividade dos próprios media, mas o que vai acabar por acontecer brevemente será então assumir o discurso enquanto ato performativo – isto é, assumir o próprio corpo enquanto media. Corpo-media.
Catarina Patrício
Doutorada em Comunicação pela NOVA-FCSH, na especialidade Cultura Contemporânea e Novas Tecnologias, realizou estudos de Pós-Doutoramento na mesma faculdade. Artista Visual, formada em Pintura pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa e Mestre em Antropologia pela NOVA-FCSH, Catarina Patrício é Professora no Departamento de Cinema e Artes dos Media da ECATI, Universidade Lusófona, desde 2010. Investigadora integrada no CICANT, publica ensaios e expõe obra artística regularmente.