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BARTOMEU MARÍ
Este mês publicamos uma entrevista com Bartomeu Marí, diretor do Museu d’Art Contemporani de Barcelona (MACBA). Entre 1989 e 1993, Marí, esteve associado à Fondation pour l’Architecture de Bruxelas. Posteriormente passou pelo IVAM de Valência (entre 1993 e 1995) e foi nomeado diretor do Centro Witte de With de Roterdão, em 1996.A trabalhar no MACBA desde 2004, como chefe do departamento de exposições, foi nomeado diretor da instituição em abril de 2008, sucedendo a Manuel Borja-Villel.
Esta entrevista, conduzida por Víctor Palacios, foi publicada originalmente na revista Código, em 2010.
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P: Quais são os elementos, eixos ou ações que definem a personalidade do MACBA? O que é que o distingue dos outros museus de arte contemporânea com vocação similar?
R: É um projeto intelectual e corporizado, que une a potência mental e a sensualidade física, que não teme o culto simultâneo do conhecimento e do prazer. Nos últimos anos, o MACBA não só cresceu como diversificou a sua linguagem e a forma como se relaciona com os seus públicos. Distingue-se na vontade de tornar o mundo maior, de abrir trilhos em vez de recorrer aos já trilhados. O MACBA não atua segundo as leis de mercado ou as leiloeiras, e procura a coerência dos seus postulados estéticos com postulados éticos muito exigentes.
É um museu muito bem situado para ler a mudança do século XX para o XXI. E quer fazer essa leitura a partir da proposta e não só do diagnóstico. O museu produz, emite opinião, forma, critica… A minha intenção é que funcione dentro da linha de valor da formação, de uma educação não oficial, mas de igual relevância. Deve ser um museu feito a partir das intenções que impulsionam os artistas a mudar o sentido e o valor das relações que a cultura herdada estabeleceu. Eu concedo um papel central à intenção artística, à vontade de alterar um conjunto de coisas que não nos satisfaz.
P: Acha que no que respeita à Europa, o MACBA representa uma alternativa de modelo museológico? Como se manifesta na sua programação? Que narrações propõe no que toca ao velho eurocentrismo?
R: O MACBA representa a vontade de construir outro tipo de museu, muito diferente do modelo que domina o panorama do centro da Europa. O Estado espanhol é uma democracia liberal muito jovem: jovens são as suas instituições e este museu é uma delas. Tem de se construir tradição e temos a sorte de não carregar o peso do passado, que não nos convém.
Barcelona é a capital da Catalunha, que tenta ser nação e funciona quase como tal. A partir das periferias do sul, a nossa perspetiva dirige-se mais ao âmbito mediterrâneo: as diferentes culturas que se encontram nas suas margens ignoram tudo sobre os seus vizinhos e distribuem medos entre si. Nenhuma instituição na Europa está a tentar ler essa complexidade que queremos representar, sem esquecer os nossos laços com a América Latina. Mas desde os Balcãs até ao Magrebe, passando pelo Médio Oriente, há um mundo que nos é muito próximo e longínquo ao mesmo tempo, uma autêntica esquizofrenia geocultural.
P: A função de um museu é pedagógica ou crítica? O museu continua a ser o espaço público para a cultura crítica? É possível ser contestatário a partir do museu?
R: As duas coisas. Não faz sentido fazer pedagogia se não há em primeiro lugar um espírito crítico muito preciso. O museu pode ser um espaço para a crítica, mas que assuma as suas contradições — e não limites — ao divulgar a sua posição num contexto público. O que é o público? Habitualmente opomo-lo ao privado, mas nem o público é perfeito nem o privado, maligno. Depende da gestão que se faz dos valores que uma pessoa defende. Eu entendo que a missão do museu é primeiro a qualidade e o compromisso ético para construir um mundo melhor acima de tudo; depois, procuramos os instrumentos mais adequados para abordar cada projeto, porque tudo se joga no “micro”, na homeopatia, no dia a dia…
P: O edifício do MACBA foi desenhado pelo arquiteto Richard Meier e inaugurado em 1995. Que papel desempenhou este museu dentro da redefinição urbana e social de Barcelona? Como definiria a experiência de trabalhar diariamente neste imóvel? O que define os seus espaços expositivos?
R: A “pele do edifício” não teve alterações dignas de registo, mas no seu interior, a “maquilhagem” mudou radicalmente a natureza das salas. Meier atuou sem cliente e a minha teoria é que desenhou um museu de escultura não pensado para exposições temporárias. O MACBA funciona como algo radicalmente diferente de qualquer museu que se pensara nos anos 80 e se construíra nos anos 90, daí que talvez algum dia terá que se devolver o edifício à sua configuração inicial e construir outro de raiz.
P: O MACBA mudou a sua política editorial e aposta em publicações modestas e muito mais acessíveis, dados os seus preços de venda, para um público geral.
R: A crise económica obriga-nos a pensar no usuário dessas publicações. Nunca pusemos à frente a celebração de poder da instituição ou o ego do artista ou comissário. Temos o luxo de estar dentro do sistema público europeu que considera o acesso à cultura como um direito do cidadão. Sabemos que em 2010 não teremos meios para publicar um catálogo para cada exposição: investigamos as possibilidades de publicar através da internet e da impressão por encomenda, um pouco na linha dos Cadernos Portáteis. O MACBA tem também a obrigação moral de contribuir para que o catalão funcione como língua de difusão científica e a edição de livros especializados em arte não é um mercado rentável em si. O MACBA publica muito mais que catálogos, o que nos move é o lado científico das publicações, não o decorativo.
P: Jan Debbaut comentou-me que formar uma coleção é como escrever uma novela e que o segredo para conseguir uma leitura agradável e profunda consistia na forma de interligar todos os seus elementos.
R: De Jan Debbaut aprendi que cada diretor de museu deve ter a tenacidade de defender as suas ideias a todo o custo e a humildade de saber que vem depois de outros diretores e que mais se sucederão depois. Prefiro que sejamos julgados a longo prazo, não no imediato. Isso evitaria a pressão que faz com que por vezes alguns possam derrapar intelectualmente… A minha geração é mais pelo intercâmbio do que pela competição.
P: Nas últimas décadas surgiram uma série de escolas para formar curadores a partir de uma aproximação académica. No entanto, para muitos, curar é algo que só se aprende na prática. Pode ensinar-se curadoria e aprendê-la como noutras disciplinas?
R: Sim e não. Nesses centros dissemina-se informação que é, certamente, muito útil para quem queira trabalhar nesse setor. A minha amiga Barbara Vanderlinden disse um dia que nós (a nossa geração) éramos os últimos autodidatas que cedíamos a esses trabalhos. “Nós”, nessa época, éramos Barbara, Dirk Snauwaert e eu, que desde 1989 trabalhava na Fondation pour l’Architecture em Bruxelas. Eu “aprendi” trabalhando com artistas. A grande diferença é que “nós” não sabíamos o que era a convenção museológica porque não estávamos dentro e aqueles que vinham das escolas de comissariado estavam formados para se adaptarem a uma instituição existente. Mas, não nos enganemos, de certas escolas de curadores saíram indivíduos excecionalmente bem preparados que realizam um trabalho excelente…
P: Muitos diretores de museus, devido ao trabalho administrativo e burocrático que acarreta ser-se o responsável de uma instituição cultural, abandonam a prática curatorial. No seu caso mantém uma presença notável nas curadorias do museu. Como consegue combinar ambas facetas?
R: Sem dormir. Sem brincadeiras: se não posso estar implicado nas decisões, na preparação, nas montagens de certos projetos, se perco o contacto com os artistas, se deixo de ver exposições, morro. Tenho estado muito próximo ultimamente, mas tenho muita pedalada…
P: Acha que o museu continua a ser o recetáculo da cultura burguesa e dos valores universais?
R: Da cultura burguesa, talvez; dos valores universais, não. Sou filho de um camionista, nasci no campo, numa região muito pobre e sem contacto com a cultura burguesa. A minha bagagem incluía algo da cultura hippie, pelos meus vizinhos e pelo ambiente envolvente. Emigrei para Barcelona em 1983 para estudar e aí também não conheci a cultura burguesa, apenas a cultura da sobrevivência. Estive na Bélgica, vivi em Valência e na Holanda. Depois trabalhei no País Basco. Há alguns anos regressei a Barcelona. Continuo sem saber o que é a cultura burguesa. Tenho uma ideia de o que é a mediocridade e a falta de rigor, e isso é algo que não se limita a uma classe social nem está excluído dela. O museu não pertence a uma classe social nem a um grupo determinado.
P: Que tipo de experiências estéticas deve gerar um museu? Que importância tem, face ao conhecimento e formação ética da cidadania?
R: A economia da experiência — uma teoria de mercado que declara a combinação de diferentes tipos de experiências sensíveis como um produto mercantil — afeta o museu e todas as instituições dedicadas à arte. A experiência estética já não é monopólio da arte nem do museu. Em Barcelona, quase tudo o que me rodeia quando saio de casa está pensado para me provocar uma experiência estética. E o que encontro no museu, também? Não. O que o museu deve procurar hoje é a iluminação das inteligências de indivíduos num aqui e agora irrepetíveis. A arte foi vista em muitas ocasiões como algo contrário à moral dominante, foi vista como algo suspeito socialmente. E no século XXI, a lei elimina qualquer dissidência. Olhe o que aconteceu com a obra de Richard Prince (a fotografia de Brooke Shields) na Tate Modern. A exposição era insuportável, mas a lei que vigila a difusão de imagens pedófilas fez a crítica mais feroz: a obra foi retirada e o catálogo apreendido.
Preocupa-me, de todas as formas, que alguém possa pensar que a missão da arte ou dos museus seja normativa: que diga às pessoas o que tem que pensar ou fazer. Devemos ser conscientes de que o fascismo não desapareceu no final da Segunda Grande Guerra, mas que o podemos encontrar esbatido em instantes da nossa vida quotidiana. As ideias que precisam carisma para ser aceites no espaço público são um exemplo do fascismo do pós-guerra. Concebo a arte relevante como um antídoto. Interessa-me a arte que me ajuda a ser individuo e a saber relacionar-me com os outros, e a entender o que e quem sou. Nada que ver com a religião: não é transcendente, não há nada inalcançável, tudo pertence a este mundo.
P: Em novembro de visitou a Cidade do México no âmbito do Congresso Internacional de Museus. Qual é o seu diagnóstico sobre o cenário da arte contemporânea neste país?
R: Extraordinário. Era a minha terceira visita e isso dava-me uma certa comodidade. Já não era exótico. A Cidade do México tem tudo para ser considerada uma capital mundial da cultura. Se os mexicanos acreditarem nisso, sem complexos nem reboliços, encontrar-nos-emos no México com muito mais frequência. Ainda não entendo como funciona o país. É muito mais sofisticado que qualquer contexto europeu. A imagem que o país comunica para fora é a de um organismo com psioríase. A obra de Teresa Margolles na Bienal de Veneza contribuía para associar o México a um vetor da sua realidade quotidiana que não se deve confundir com a sua identidade.
P: Qual é a sua banda de rock favorita?
R: Schubert! Claro que não, é Joy Division.
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Disponível em: www.tinyurl.com/6mp3qa8
Link: www.macba.cat