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ANTÓNIO BARROS
Alvoro é o nome da exposição de António Barros presente no Mudas - Museu de Arte Contemporânea da Madeira, até 31 de maio. Tendo a palavra tanta força na sua produção artística, o título é revelador da mensagem fulcral que esta obra recente acarreta. (Ou não?) Caminhamos por uma "floresta" morta de galhos virados ao solo, círculos e limites, embarcação com um vulto pousada em tapete grafado com um frame, fora do espaço marítimo a que pertence, inanimada num museu sem possibilidade da viagem, nem para quem se pretende transportar pelo Rio do Esquecimento a não ser pelo imaginário veloz, asas de anjos ou sfumatos, as figuras religiosas desfocadas e pás que tudo desenterram, penduradas, tudo fora do contexto, a cadeira vazia sustentada por colheres antes dos pratos vazios, tudo negro.
No domínio expositivo, já programado, teremos a mostra de Dá-me a mão, não as luvas, de 10 de março a 14 de abril, no CAOS _Casa d´ Artes e Ofícios, Viseu; e Inflammatio, de 26 de maio a 21 de julho, no CAPC _Círculo de Artes Plásticas de Coimbra.
Por Helena Osório
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Helena Osório: Recorrendo ou não à palavra, a poesia está na sua obra que chama a atenção para fenómenos naturais (natura / anti_natura). O que mais o preocupa no momento? O que pretende passar?
António Barros: Enquanto autor, gerador de uma obra, pretendo mostrar a obra. Não a explicar - como bem nos alerta Walter Benjamim. E é a obra tangível quem no seu concreto se afirma e enuncia. Emancipada. Ela é o próprio manifesto, em comunhão com o leitor e o que este lhe conquista. Não mais o autor como emissor. O autor, esse, antes regressa como integrante da partilha. Da comunidade. Da comunidade sem espectadores, mas em solta conjugação. Uma conjugação a ilustrar ainda a matriz de Novalis quando advoga que há que transformar a natureza em arte, e a arte numa nova natureza.
HO: A Ilha da Madeira onde nasceu, os seus fenómenos naturais, as alegrias e as tragédias do povo, as tradições e as emoções, são uma constante na sua obra que nos toca também profundamente como observadores. É esta a eterna inspiração?
AB: Alvoro, enquanto mostra sinalizada para o MUDAS, revela uma colecção de cerca de 25 peças, na dominante das situações geradas na inquietação do lugar. Uma arte de compromisso sociológico que mergulha nos sentimentos gravados pela condição geográfica, mas também nos seus referentes culturais e no que a própria natureza formula, anima, e constrange. Aí confrontamo-nos com uma condição identitária, e logo distintiva, de uma comunidade marcada pela resiliência. Há aqui três obras fundamentais cúmplices com as razões desta territorialidade: Valsamar; aL(a)ma; e Basalto uma arma de fogo. Mas as obras diversas aqui reveladas, portam uma dinâmica própria de consciência do lugar terra. Mas também do lugar mundo. E tanta da sua dimensão etérea e nervosa a que o Ser nos confronta para além do próprio lugar onde é gerado.
HO: A relação próxima com a natureza e com o natural está relacionada com o berço? De que forma.
AB: Nasci na insularidade atlântica, numa ilha em que a densidade vegetal lhe deu nome. Os campos de funcho são ainda um referente de convite. Também pela sua magia. A arte convoca a re_solução dessa magia. Esse mergulho na depuração do sentido que Herberto Helder também daí fez enunciar.
HO: Definitivamente, chama a atenção para os incêndios e outras calamidades que assolam o território português, com os limites que focam a impossibilidade do povo ser salvo ou de se salvar a ele próprio, nem por milagre. Será esta uma leitura, ou prefere deixar mais uma vez em aberto?
AB: Cada peça convida a uma leitura solta, vasta de soltura, atenta, disponível, conotativa. Vaga. Logo reveladora da identidade de quem colhe a leitura, e nunca de quem a enuncia no seu estar denotativo - no seu próprio caminho vago, ou no trilho dos "caminhos de floresta" (Heidegger). Há toda uma paisagem de magia a preservar. Pois ensina o caminhar que, ao revelares a magia da tua obra de arte, jamais terás uma obra de arte.
HO: Mas, o texto da comissária, Isabel Santa Clara, evoca precisamente o negro no vulcânico batido pelo mar, nas ruínas, nas águas revoltas, nos fogos, nos lutos...
AB: O negro confiança é, segundo alguns autores que estudaram a minha obra, identitário. Há um assumido caminho de lutos. De lutas. E as suas condições simbióticas. A "Resolução do Luto" surge convulsivamente trabalhada no meu percurso exploratório. Os objectos, depois resolvidos como obgestos (numa sinalizada dimensão de arte), mas antes vultos da contaminação gerada pelos "objectos transitivos", esses na senda do entender formulado por Winnicott.
HO: O silêncio das imagens dialoga com o observador de forma a sensibilizá-lo intimamente. Como um canto mudo... Qual é o ponto de partida para a selecção da fotografia que nos faz parar e reflectir sobre as próprias preocupações do artista que são, afinal, globais.
AB: Uma das vigorosas formas de comunicar é também o silêncio. E a obra de John Cage, bem o procura (d)enunciar. E estamos já a pensar na música contemporânea. Essa tão pluridisciplinar e orientadora que também me ocupou. O livro que publiquei "John Cage, Música Fluxus e outros gestos da música aleatória em Jorge Lima Barreto" tanto disso ilustra. A condição dos diferentes domínios disciplinares colocam-me numa progressiva e continuada exploração das palavras, e das imagens também, na comunhão dos seus silêncios. Do não dizer dizendo. Reinventando caminhos. Outros desígnios a quererem-se vigorosos. E é aí, nessa comunhão gregária, que o leitor é desafiado a inscrever-se na própria obra.
HO: Não se trata de uma característica desta fase em particular, ou dos mais recentes "assombros", mas do trabalho de António Barros no seu todo. O artista é um poeta e a poesia está na imagem, no texto, na voz que não se ouve e apetece gritar... Tem sido compreendido e acudido?
AB: Procuro gerar uma obra de partilha. Comungada. Desviada de massificações ou de volumosas movimentações. Mas de cumplicidade sempre acesa para a desconstrução do real que nos molda, e deprime, convidando para a alegoria da reinvenção e transcendência de si. No devir da festa. E como nos enuncia Gadamer - há que conjugar o símbolo, o jogo e a festa para que a obra de arte se formule no existir. Se resolva. Em alvoro.
HO: "Alvoro", trata-se de uma exposição itinerante... De onde veio, para onde vai... Quais são os próximos (ou possíveis) lugares de acolhimento?
AB: Não tem itinerância neste modelo curatorial. Há objectos inéditos, mas há peças oriundas de outras mostras que aqui se encontram, reencontram outras, mas algumas ficarão residentes nesta atmosfera, até porque diversas já pertencem à colecção do Museu de Arte Contemporânea da Madeira.
HO: Próximos projectos.
AB: Alvoro, no MUDAS, surge até final de abril, e nessa mesma conjugação tenho em preparação um livro - Alvoro - que procura testemunhar o processo da construção. Os desígnios do processo com o contributo colegial conduzidos por Augusta Villalobos. Toda uma cumplicidade formal que uma obra convoca, e se resolve no seu sentido de partilha. Nessa mesma publicação há leituras do programa Alvoro por José Tolentino Mendonça e Isabel Santa Clara.
Em toda esta atmosfera inscrevem-se ainda dois programas de edição: o objecto-livro Vulcânico Palavrador _Uma Elegia a António Aragão e, em antologia, a visitação crítica: Uma Luva na Língua.
HO: Uma Luva na Língua convoca Alvoro, Alvoro convoca Uma Luva na Língua?
AB: Neste meu projecto de livro sobre a minha procura de obra, e que terá por título Uma Luva na Língua, surgem várias leituras cúmplices de quem inscreve a minha Galeria de Afectos (mas não apenas). Tudo procura existir no dizer para estes, e destes, leitores, e não como sobra do que foi plasticamente dito. Mas como "so(m)bra" fundamental. Cenário de luz revigorada. Reinventante. Alvoro.
Helena Osório
Nascida em Benguela, Angola, é jornalista cultural, editora e escritora doutorada em Estudos sobre a História da Arte e da Música pela Universidade de Santiago de Compostela, com reconhecimento da Universidade do Porto. Mestre e pós-graduada em Artes Decorativas pela Universidade Católica Portuguesa. Investigadora do Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (i2ADS / FBAUP).
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Uma Luva na Língua
Todo este projecto nasceu para esta comunhão. Nós à volta, na quadratura de uma mesa. Livro_mesa. Mesa_Livro.
Giorgio Bassani, em "O Jardim dos Finzi-Contini", orienta-nos: "Se queres entender, entender realmente, como as coisas são neste mundo, tens de morrer pelo menos uma vez. E como essa é a lei, é melhor que morras enquanto és novo, enquanto ainda tens tempo para recuperares e começar de novo".
Uma Luva na Língua é uma procura dessa recuperação. Uma busca de um tempo que sucede a esse memento mori gerado pela morte anterior. Tempo suspenso.
É nesse ancoradouro que toda a minha obra formula raízes. Parte da morte, como território de consciência, para um caminho de contemplação. E para o tangível da vida. Um acto reservado. Íntimo. Alvoro.
"Thomas Mann constrói uma ordem na qual há tempo para a reflexão, para a cultura de uma consciência privada e para o mistério do Eros ("Morte em Veneza" pode ser entendido como uma meditação singular sobre o tempo suspenso)" é Steiner quem nos alerta. Uma Luva na Língua poderá ilustrar os desenhos desse tempo. Desse "tempo suspenso". Essa procura que me compromete nessa ordem. Uma requalificação do sentido.
A revisitação deste sentido esboçado no início do projeto Uma Luva na Língua (em gestação no arco temporal 2010-2018), parte da primeira "morte" (Bassani) sinalizado pelo referente Algias, NostAlgias (1979-80) e cruza com os desígnios hoje enunciados pelo programa Alvoro (2017-2018), este que agora se apresenta numa leitura icónica centrada na autoscópica insularidade atlântica da última década (MUDAS). Por isso a conjugação narrativa de Uma Luva na Língua com Alvoro e a sua oportuna interação programática numa enunciação cúmplice.
António Barros
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No Dia Internacional dos Museus será publicado o catálogo da exposição "Alvoro" bilingue com leituras do poeta José Tolentino Mendonça e da Comissária da exposição Isabel Santa Clara.