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CÍNTIA GIL
“O que interessa ao Doclisboa são sobretudo filmes que trabalhem a partir de uma relação descomplexada com o mundo e com o cinema; filmes afirmativos que nascem do desejo de arriscar filmar.”
No rescaldo do Doclisboa, a Artecapital falou com Cíntia Gil, que desde 2012 integra a direcção deste festival que nos dá a “oportunidade de experimentar o mundo na sua riqueza”. A evolução do Doclisboa, dos apoios e dos públicos do documental cinematográfico, são alguns dos assuntos aqui abordados.
Por Liz Vahia
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LV: Conta-nos um pouco a tua aproximação pessoal e profissional ao cinema e ao Doclisboa em particular.
CG: Na minha infância ia muito ao cinema. O meu pai havia crescido num cinema da minha família, e portanto essa cultura foi-me naturalmente transmitida. Fui com 18 anos para a Escola Superior de Teatro e Cinema, mas ainda sem saber bem o que queria fazer. Sabia só que gostava de filmes. Não gostei mesmo nada – achei uma escola opressiva, onde pensávamos muito pouco, onde o risco era quase proibido. Saí de lá triste, zangada. Reconciliei-me com o Cinema quando estava estudar Filosofia e comecei a experimentar programar filmes, articular ideias através e com eles. Programar no Doclisboa começou como uma coincidência. Eu estava a trabalhar numa tese, passava o tempo a estudar em casa, vivia em frente da Apordoc. Conhecia algumas pessoas que lá trabalhavam, e quando foi preciso um programador perguntaram-me se não queria experimentar. E fiquei até hoje. Mas lembro-me de ir aos Primeiros Encontros da Malaposta ainda como aluna da ESTC e tentar perceber o que aquilo era, que formato era aquele. Acho que não sabia o que era um festival.
LV: Entre os Encontros da Malaposta e a edição deste ano do Doclisboa, muita coisa mudou na imagem e na relação do público com o documentário. Apesar de serem duas realidades distintas, achas que com o tempo se apurou o propósito que esteve na base da criação dos encontros?
CG: Não creio que seja tanto o caso de ter-se “apurado” o propósito dos encontros, mas antes de uma questão de transformação natural. Os Encontros da Malaposta foram criados numa altura em que não existia reflexão acerca do cinema documental, em que este era tratado como uma espécie de sub-produto da TV, deixando assim de fora (do circuito de exibição, da discussão pública, e dos financiamentos) o documentário cinematográfico. Era preciso pensar essa prática mais profundamente, fazer um estado da arte e compreender uma série de novos realizadores que apareciam (da Antropologia, em boa parte).
Hoje em dia o Doclisboa continua a querer ser um espaço de reflexão, um lugar onde o “estado da arte” do cinema do real é mais ou menos desenhado, um contexto onde as práticas deste cinema em Portugal podem ser enquadradas e compreendidas de modo alargado e em contexto internacional. Nesse sentido creio que o propósito se mantém. O que se transformou foi o próprio cinema, naturalmente. E a sua relação com os financiamentos, com o mercado, com os espectadores, enfim, o seu contexto e lugar, além de todas as transformações evidentes (linguagens, tecnologias). E o Doclisboa transformou-se também, acompanhando os filmes que foram sendo feitos, pensando-os e enquadrando-os. Foi um movimento natural.
É evidente que também houve uma profissionalização do festival, que hoje tem uma equipa todo o ano, tem parceiros e projectos em diversos países, enfim, tem uma responsabilidade mais alargada, na medida em que também tem muito maior visibilidade e reconhecimento. Mas até isso tem a ver com as transformações no mercado, no modo como a cultura se vive nas cidades e como a ida ao cinema se foi transformando.
LV: O Doclisboa contribuiu para uma alteração do estatuto do documentário junto do público. Pensas que isso se deu ao evento em si e à mediatização do formato, ou foi o próprio documentário que se alterou nos últimos anos e passou a interessar a um público menos especializado?
CG: Creio que o papel da Apordoc (e do Doclisboa, evidentemente) foi fundamental. Desde logo por ter contribuído inegavelmente para a existência de apoios públicos para financiamento de filmes documentais – e portanto um reconhecimento da tutela do documentário enquanto cinema, e um alargamento da quantidade e diversidade da produção. Mas também por ter promovido sempre, ao longo de todas as edições do festival, através de outros projectos (o Panorama, uma revista que chegou a existir, etc) uma presença do cinema documental junto do grande público, através de uma programação muito plural mas muito criteriosa, acompanhada de verdadeiros momentos de encontro e debate. As acções junto do público mais jovem foram também fulcrais para que hoje o público do cinema documental seja tão alargado.
LV: Consideras que a posição do documentário no panorama cinematográfico/artístico actual faz parte de um movimento maior de aproximação da arte ao real? Cada vez mais artistas abordam criticamente o contexto social e cultural em que vivem.
CG: Sim. Mas parece-me também que tanto um fenómeno como o outro têm a ver com uma cada vez maior problematização da noção de real, abrindo-a para campos cada vez mais alargados. As ideias de objectividade, neutralidade, até mesmo o acto de “documentar” foram profundamente questionadas. Também com a facilitação da produção de filmes houve lugar a que novos cineastas aparecessem, vindos de campos múltiplos. E o cinema do real começou a ser visto sobretudo como proporcionando experiências singulares do mundo, onde o espectador é convocado para a ideia de possibilidade, para uma imaginação partilhada. A crítica através deste cinema afastou-se da denúncia e aproximou-se de uma espécie de poética da análise em que talvez a ideia de “mundo possível” seja mais premente do que a enumeração dos factos do mundo.
Mas ao mesmo tempo devo dizer que se virmos por exemplo algumas coisas do Kiarostami dos anos 90, ou o Jeanne Dilman de Chantal Akerman, ou as coisas do Warhol, tudo isto já lá estava. Não há nada de novo agora, o que há é mais quantidade e diversidade.
LV: Este ano o Doclisboa teve algumas propostas de filmes sobre artistas. Há uns anos estes filmes eram vistos como um “produto fácil”, porque têm sempre os que gostam dos artistas e os interessados em arte como público garantido. O que há de novidade nestes trabalhos sobre artistas que o Doclisboa apresentou este ano?
CG: Não sei o que quer dizer “produto fácil”, muito menos “público garantido”. Assim como considero um erro partir do princípio que um filme não tem público, também o considero partir do princípio que haverá público. Num festival, sobretudo, um filme existe numa rede, num contexto de relações, e há um discurso sobre cada filme e sobre essas relações.
Por outro lado, não me parece que seja missão do Doclisboa procurar filmes particularmente “difíceis” ou inusitados. Pelo contrário. Nada no cinema deve ser feito para ser difícil, original ou único, parece-me. No caso concreto deste festival, parece-nos fundamental convocar em cada edição a história do cinema e da arte através de filmes em que o trabalho de alguns artistas é tratado de forma profunda. Assim, cada um dos filmes que apresentamos são perspectivas singulares sobre artistas mas também, eles mesmos, propostas de cinema. É isso que nos importa.
LV: Apesar da diversidade de produções actuais, o que é que poderias apontar como distintivo do documentário contemporâneo – ou das produções que interessam ao Doclisboa? Parece haver uma maior fluidez de géneros e abordagens e um envolvimento mais pessoal de quem os produz.
CG: Prefiro de facto falar do que interessa ao Doclisboa, por ser um pouco mais específico e simples de circunscrever. A aparente fluidez de géneros é, parece-me, resultado de um fenómeno bem mais interessante: começamos finalmente a perceber que a separação entre “ficção” e “real” tinha mais de epistemológico e menos de ontológico. Tinha mais a ver com o método com que nos aproximávamos do mundo, do que com o que o mundo é. E portanto essa distinção em cinema começa a parecer desnecessária, a perder interesse tanto no que toca o discurso sobre os filmes como os processos de trabalho. E mesmo a ideia de “hibridização” parece-me muito pouco interessante. O grande interesse deste momento reside no facto de as categorizações serem cada vez mais difíceis, instáveis, e isso é um desafio sobretudo para a programação e para a crítica. E creio que neste campo estamos muito atrás dos realizadores...
Assim o que interessa ao Doclisboa é sobretudo filmes que reconheçam isto e que trabalhem a partir de uma relação descomplexada com o mundo e com o cinema – sem sujeição a ortodoxias, sejam elas as tradições, sejam elas a exigência das modas e da sede de novidade. E que tenham uma capacidade imaginativa rica, que nos dêem a nós, espectadores, uma oportunidade para experimentar o mundo na sua riqueza e não como esquema simplificado. De resto, procuramos diversidade, filmes afirmativos que nascem do desejo de arriscar filmar.
LV: Já há algum “tema”, autor, ideia base para começar a trabalhar no festival do próximo ano? Ou isso vem com o visionamento dos filmes propostos?
CG: Já existem algumas ideias de possíveis focos e retrospectivas. Normalmente partimos de um conjunto de ideias para percebermos o que nos apetece mais programar em cada ano, o que é mais pertinente (sob várias perspectivas). Mas o Doclisboa nunca tem um “tema” que aglomere todas as secções. E o seu desenho vai sendo feito ao longo do ano, com os filmes que encontramos e aqueles que vamos pondo em relação com eles. Programar este festival é quase como fazer um diagrama: há dois ou três pontos mais ou menos fixos no início, e depois jogam-se relações, proximidades e distâncias, que vão mudando de forma e de proporção ao longo do processo, até ao momento em que somos obrigados, por razões logísticas, a fechar.