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RUI CHAFES
A propósito da exposição “Incêndio”, actualmente patente na Galeria Filomena Soares, a Artecapital conversou com o escultor Rui Chafes sobre este seu último trabalho e sobre algumas características distintivas da sua obra. A “catedral ardida”, cujas colunas ainda se elevam ao infinito, espaço refúgio do ruído diário, foi o mote para uma conversa à volta da poesia, da beleza, do poder da arte, do espaço entre a vida e a morte, sobre o princípio e o fim.
Por Victor Pinto da Fonseca e Liz Vahia
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VPF: A existência da exposição "Incêndio" como uma catedral ardida, incendiada, representa uma visão de um templo, a ideia de que a arte é sagrada...ou antes, um destino poético, que nos queres transmitir da tua obra, em que as esculturas formam a própria substância da tua poesia e requerem o silêncio radical de uma arquitectura religiosa, da catedral lá dentro….
RC: Cada vez mais me parece essencial contrapor o silêncio, a concentração e a lentidão ao ruído do mundo. Temos vindo a avançar para um mundo dominado pelo pensamento pragmático e numérico e agora chegámos a um ponto em que, verdadeiramente, estamos dominados por máquinas que nos avaliam, condicionam e manipulam diariamente. Não estamos ainda num mundo “pós-humano”, mas para lá caminhamos se desistirmos de pensar e ter consciência do que nos querem fazer. As máquinas e o ruído estão por todo o lado, omnipresentes, nas nossas mãos, nos nossos pensamentos, nos nossos olhos, nos nossos ouvidos, nos nossos sentimentos, na nossa necessidade de amor…mas é por isso que, paradoxalmente, o futuro da arte é luminoso: nunca houve tantas possibilidades técnicas e, simultaneamente, tanta necessidade de resistir, de criar outros paradigmas da humanidade e daquilo a que chamamos espiritualidade. Sempre acreditei no poder da arte e vejo o seu futuro como forma de resistência a esta tirania do não-humano. Por essa razão tento criar essa tal catedral, esse espaço de silêncio radical, onde o tempo se imobiliza e temos lugar para pensar com a pureza do olhar e fazer nascer a matéria da poesia. Mas desta catedral já só restam os destroços.
VPF: Quando apresentas as tuas esculturas em casas da oração - como recentemente na Igreja de São Cristóvão -, consideradas instituições para se chegar à essência da fé, e encontrarmos uma relação com Deus, interpretas o espaço religioso do ponto de vista de um crente em Deus, ou as tuas crenças, o teu conceito de fé, passa por um lugar diferente fora da religião e da fé cristã? Ou simplesmente separas arte e religião, dois sistemas de energia psicológica diferente...
RC: Não me parece que seja possível, em nenhuma cultura antiga, separar inteiramente arte e religião. A nossa memória visual e musical está impregnada de uma história e de uma relação intensa entre arte e as manifestações de fé. Isto tanto é válido para a arte ocidental como para a arte africana, a arte dos índios americanos, a arte oriental ou de qualquer outra civilização em que queiramos pensar. No quase concreto da nossa cultura ocidental, temos abundantes exemplos de como, apesar da intenção “agnosticizante” do Modernismo em separar a arte da religião e do misticismo, os artistas continuaram a investigar, questionar e revitalizar essa relação tão arcaica, seja através do cinema (com casos como Robert Bresson, Carl T. Dreyer ou Pier Paolo Pasolini, por exemplo), da música (podemos pensar em Olivier Messiaen, Arvo Pärt ou até Karlheinz Stockhausen) ou das artes plásticas (o que dizer de Barnett Newman ou Joseph Beuys?). E, no caso concreto do cristianismo, existe uma questão permanente: estás mais perto de Jesus Cristo ou da instituição Igreja?... Todas estas questões nos levam a uma tentativa de nos colocarmos (ou de colocar o nosso trabalho) em alguma posição. No meu caso, como tenho dito, a minha religião é a arte, é essa a minha única devoção, mais importante do que tudo. Seja qual for o seu género, a arte está primeiro, tudo o resto vem a seguir. Não sei se respondi à tua pergunta.
LV: Estes espaços interessam-te também pelo comportamento que o público assume ao frequentá-los? Importa que haja uma mudança de atitude do público perante as tuas obras, nestes sítios mais efectiva do que num espaço branco?
RC: Sem dúvida que o comportamento do público se altera nesses espaços. Pude constatar isso por diversas vezes. As pessoas numa igreja, numa mesquita, numa sinagoga, num templo hindu, budista ou xintoísta tendem a falar mais baixo, a sussurrar, a adaptar-se à penumbra e ao silêncio. Penso que os white cubes (sejam eles galerias, museus ou outras instituições) são mais como hospitais, clínicas ou asilos para acolher uma arte órfã, uma arte sem lugar, uma arte que está doente. Esses espaços brancos e assépticos, são uma invenção do Modernismo e foram criados para separar a arte do mundo, numa tentativa de a isolar numa redoma de pureza. Mas a pureza da arte só existe na “sujidade” do mundo, sempre foi assim… a arte antes do Modernismo fazia parte do mundo, estava onde as pessoas estavam, nomeadamente nas grutas, nas florestas, nas igrejas e palácios. O público não se comporta da mesma maneira numa galeria, num museu, numa floresta ou numa igreja. Pessoalmente, tento manter sempre uma catedral dentro de mim (ou uma igreja, ou uma capela…) e isso consigo fazer acontecer em todo o lado, até numa feia rua de subúrbio cheia de lixo, com papéis e sacos levados pelo vento e casas em ruínas.
LV: Disseste-nos que o teu trabalho tem a ver com o negativo da forma, a sua sombra, “um espaço roubado ao espaço”. Há aqui um questionamento do objecto artístico, enquanto materialização? A forma limita?
RC: A forma é a única expressão plausível, aquela em que podemos acreditar. Mas não é definitiva, é apenas uma possibilidade, uma hipótese, no meio de muitas outras. De resto, tudo muda, nada mantém a sua forma. É a nossa condição.
As minhas esculturas são sombras, negativos do mundo; são, sobretudo, acontecimentos no espaço, que precisam de uma forma para se manifestarem. Gostaria que fossem só ideia pois nunca acreditei em objectos. Mas, para demonstrar essa ideia, não conheço nem domino outra técnica a não ser esta.
VPF: A natureza Darwiniana basta-se a si mesma e sobrevive (não precisa de um autor); é esplendor e magnificência antiga: de todas as verdades, a da Natureza é a melhor! A natureza parece ser uma inspiração para ti: as esculturas em ferro da exposição criam associações entre formas vegetais (orgânicas) conhecidas e desconhecidas, fundindo o natural com o artificial, fluem como uma floresta para o céu...
Num caminho aparentemente similar à natureza a evolução da arte acaba sempre por revelar a sua verdade?
RC: O trabalho dos artistas é um caminho cheio de erros, falhanços, becos sem saída, tentativas. Por caminhos melhores ou piores, com mais ou menos sucesso, todos vamos avançando em direcção a um destino utópico. Nada a fazer: um dia o nosso trabalho será esquecido ou não, apreciado ou não, valorizado ou não, compreendido ou não… o destino do nosso trabalho está completamente fora do nosso controlo. A verdade com que fizemos o nosso trabalho estará sempre presente na verdade que arte acabará por revelar.
VPF: Se atendermos ao sentido -que se usa- da palavra "Incêndio" de modo relativamente convencional, Incêndio, tem muito pouco a ver com o significado que lhe dás...Incêndio, é próprio de destruição! Pelo contrário, atribuis ao incêndio algo de purificador, e referes-te à memória...à memória eterna das coisas.... Em suma: A catedral incendiada consiste na ideia que a memória é mais real que a realidade? Que resulta impossível destruir a memória?
RC: Enquanto houver memória, haverá realidade. Estaremos vivos enquanto alguém se lembrar de nós, depois morreremos de vez. A memória, a palavra e o ritual serão sempre o que dará sentido e substância à realidade. É isso que o ser humano tem feito, desde há milénios, podes ver isso até nas tribos da Amazónia… é preciso dar o salto, levantar voo, falar com os espíritos, ganhar leveza, perder peso, dar sentido à vida e à morte. Dar sentido à chegada de cada criança, apresentá-la ao mundo e apresentar-lhe o mundo; dar também sentido a cada partida, a cada despedida. Sem isso, nada terá significado, existirão apenas a biologia e a química de uma realidade pobre e vazia… é pouco.
LV: No fim do texto de sala escreves que “A vida é combustão, ficamos sempre com o que nos resta depois do permanente incêndio.” Esta circularidade entre vida e morte, também se expande à tua forma cíclica de trabalhar, à noção de “família de esculturas”? Porque é que dizes que esta exposição fecha um ciclo?
RC: É verdade que trabalho por séries, em ciclos que se podem estender durante mais ou menos tempo. Esta exposição demorou três anos a realizar.
Custa-me muito fazer só uma escultura, normalmente interesso-me por expandir os seus limites e conhecer todas as suas possibilidades e variações. Isso cria “famílias de esculturas”. Sempre vi as minhas esculturas agrupadas em famílias, gosto muito dessa ideia. Penso que, nesta exposição, existem várias famílias simultâneas e faltam duas esculturas num dos alinhamentos. Esta é uma exposição sobre a despedida, sobre a morte, a partida.
VPF : .A tua escultura - se a tiver de a interpretar -, é uma combinação da razão e a ordem da mecânica concreta com uma forma de pensar estranha, misteriosa, que habita o mundo mas não lhe pertence (a tua voz interior...). Há na tua obra medida matemática intimamente ligada com a intuição que dá sentido ao teu dom de escultor!
Explicas os teus pensamentos através da tua confiança na arte (porque é raro fazeres uma obra que não tenha continuidade, como se um filme)? Procuras a arte realmente bela?
RC: Acredito no poder da arte, acredito que é das poucas forças capazes de combater a brutalidade do tempo, o esquecimento, a fatuidade do mundo, a futilidade dos seres humanos, a sua preguiça e desatenção. Não sei se procuro a arte realmente bela… encontro a beleza em muitos sítios, quase sempre inesperados. São raros os artistas que conseguem criar algo realmente belo e esses são os grandes artistas, sejam eles cineastas, fotógrafos, músicos, pintores, escultores, bailarinos, o que for. Eu, pela minha parte, sempre acreditei que o que é belo é bom e o que é bom é verdadeiro. Acredito nessa coincidência de beleza, bem e verdade. Procuro isso, sim, e encontro-o numa certa forma de pureza que tem a ver com a ética de trabalho de certos artistas, a maneira como fazem as coisas. Tento trabalhar assim, também, e nesse sentido procuro uma certa forma de beleza.
VPF: "A Natureza nunca traiu / O coração de quem a amou", Wordsworth.
No Romantismo todas as mulheres são natureza (a natureza é um domínio feminino). A mãe natureza delega a sua autoridade nas nossas mães individuais: o homem tem uma origem feminina da qual se procura (ou não) demarcar...
RC: No Romantismo alemão, Sophie von Kühn seria a eterna flor nocturna para Novalis, a imagem de uma natureza infinita, intimamente unida tanto à morte como ao início da vida, uma promessa de eterna floração, de futura maternidade para sempre incumprida - uma imagem utópica de Natureza tão doce quanto desesperada, tendendo ao Absoluto feminino.
Mas, na verdade, não existe nada de amável ou suave na Natureza, só quem tenha um olhar superficial é que poderá julgar isso. A Natureza é dura, cruel e totalmente amoral e “injusta”. Aliás, o conceito de justiça nem se pode aplicar, a força da Mãe-Natureza é absolutamente dominadora e devastadora e faz-nos sentir insignificantes perante o seu poder.
A propósito da “natureza ser feminina”: se observares bem o que se passa num infantário, verás que, na maioria das vezes, as meninas brincam com bonecas (e são maternais e protectoras) e os meninos brincam com armas e carrinhos (e são agressivos e ameaçadores). Poderíamos pensar que há uma propensão genética: as mulheres trazem a vida em si, os homens trazem a morte. Claro que não é possível generalizar nem normalizar superficialmente, mas não deixa de ser uma observação curiosa, qualquer pessoa o pode constatar…
VPF:Todos os teus desenhos têm história; os teus desenhos de sexualidade feminina remetem-me para os românticos que não negam o poder universal da mulher; vejo igualmente indícios de autoridade masculina com um tom de Sade, que trai o naturismo maternal de Rousseau!
Existe na tua obra um Romantismo simbólico para alcançares a maior beleza possível?
RC: Não me parece que exista simbolismo nos desenhos e nas esculturas que faço. O pensamento do Romantismo alemão esteve na base da minha formação e da minha educação e senti-me sempre muito próximo dessa visão e dessa concepção do Mundo enquanto espaço de revelação permanente. Quando traduzi os fragmentos de Novalis tinha 26 anos e fi-lo por me identificar absolutamente com aquelas palavras e por achar que também as pessoas que não falam alemão deveriam ter acesso àquela beleza cristalina.
Na verdade, não sei responder-te, não sou capaz de interpretar os meus desenhos… sempre achei que uma obra de arte só existe quando é vista e recebida por alguém. É essa pessoa quem dá significado à obra e é nesse momento que a obra de arte está terminada. Nesse sentido, uma obra de arte só possui o que já está dentro de quem a vê, e vice-versa, uma pessoa só encontra numa obra de arte o que já possui dentro de si. Cada pessoa completa uma obra de arte com o que traz dentro de si. Eu, pela minha parte, sempre desenhei apenas flores, nada mais…
VPF: Também me parece que o teu desenho passa pela criação de imagens a meio caminho entre a vida e a morte....uma visão sobre a passagem do tempo e a transfiguração do ser humano em busca da felicidade ou ferido de morte pela tragédia ou pela violência... O que podemos concluir sobre a origem dos teus desenhos?
RC: Da origem ninguém sabe, nem eu… As imagens que me interessam, em todas as obras de arte, estão sempre entre a vida e a morte. Não concebo outra maneira de apresentar a beleza e a leveza. A tragédia instala-se entre a vida e a morte, entre o início e o fim e todas as evocações, sejam elas vegetais, animais, florais, orgânicas ou minerais se aproximam de uma forma de sexualidade geradora que possui, simultaneamente, uma extrema proximidade com a morte. É paradoxal, mas também é essa a efemeridade do tempo. Na verdade, o que nos diz Novalis é que tudo é semente. As imagens, as ideias, as palavras… tudo se propaga e multiplica e tudo se contagia. As imagens e as palavras são sementes levadas pelo vento, em algum lado irão pousar. Nunca se sabe.
VPF: Para o Rui Chafes, prémio Pessoa:
"O mundo é para quem nasce para o conquistar / E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda /
que tenha razão." In, Álvaro de Campos, TABACARIA.
O princípio do poder é normativo e natural; o poder é a base da progressão social, mas não da imaginação! Não existe conformidade entre os sistemas de poder e os sistemas de imaginação...A arte é um pequeno deserto de criação espontânea?
RC: O poder pode insinuar-se por todo o lado, de maneira inesperada…por exemplo, acho que é muito preocupante que vivamos num “mundo de imagens”, em que tudo se pode tornar imagem e como tal ser utilizado. Imagens de todos os géneros, proveniências, intenções, tudo indiscriminado e, sobretudo, uma esmagadora maioria de imagens gratuitas, sem qualquer tipo de ética na sua concepção e apresentação. Vivemos numa “tirania das imagens” e as pessoas não se dão conta disso, é muito confortável para a nossa preguiça e desatenção. Mas algumas pessoas continuam a acreditar no poder da palavra, cada vez mais desvalorizada mas cada vez mais essencial. Quanto a mim, uma palavra vale por mil imagens, e não o contrário. É por isso que os artistas visuais têm absolutamente de criar imagens únicas e construídas com ética, imagens que façam sentido e que sejam realmente precisas no mundo: precisamos de imagens que não se deixem utilizar pelo poder, nem serem por ele manipuladas. O olhar de um artista ou de um grande cineasta será capaz de nos devolver a pureza do primeiro olhar e, dessa forma, mudar uma parte do mundo. Essa capacidade não está ao alcance de qualquer um, a maioria das pessoas lida com imagens-feitas, repetidas, correntes, inofensivas, clichés absolutos e desinteressantes, que não têm capacidade de instaurar nada de novo no mundo nem de o perturbar, apenas se acomodam inutilmente.
Esse normativo social criador de estatuto, dinheiro e poder não me interessa para nada. Nunca foi esse o meu caminho nem nunca será. O único poder que me interessa é o da imaginação, o que tem a capacidade de criar mundos e contramundos, abrir portas para mim e para os outros, seguir os caminhos que os artistas e as pessoas criadoras e inquietas me apresentam. A arte pode ser um contra-poder, se tivermos coragem e ética para a manter viva e independente, isenta e pura. Seja pela imagem ou pela palavra.
VPF: Qual dos heterónimos do Fernando Pessoa fala contigo?
RC: Lia muito Alberto Caeiro quando era adolescente. Achava fascinante e tão desconcertante, foi uma revelação para mim.