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PEDRO CABRAL SANTO
Pedro Cabral Santo apresentou recentemente Unconditionally, no Colégio das Artes da Universidade de Coimbra, uma proposta onde explora alguns dos temas que percorrem a sua obra. Desde o início dos anos 1990 que mantém o interesse em usar diversos meios, nomeadamente video, instalação, texto e escultura, onde a imagem se combina com a linguagem para construir um olhar atento e crítico à proliferação imagética da nossa contemporaneidade. Artista, curador e professor, tem bastante vincado o papel que a arte e os artistas podem desempenhar.
Por Liz Vahia
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LV: As obras do Pedro são objectos híbridos, inclassificáveis como esculturas, instalações, vídeos... digamos que não se conseguem enquadrar numa só categoria, há uma mistura grande de formas e propostas.
PCS: Eu não tenho nenhuma preferência por meios expressivos em detrimento de outros meios expressivos. Não sou um escultor-escultor, não sou um pintor-pintor... Eu tenho é uma grande facilidade em lidar com a matéria e essa situação permite-me flutuar à vontade entre diversos meios, diversos suportes. Na realidade, o que acontece é que eu procuro adequar o meio ao trabalho que estou a realizar. Se é um trabalho que está próximo da esfera escultórica, eu rapidamente me aproprio desse meio. Se eu preciso de utilizar a imagem em movimento, eu depressa me acerco dessa imagem, isto é, há uma subjugação desses meios aos objectivos do trabalho e não o contrário.Tem sido sempre assim. Obviamente que me sinto mais próximo do campo da escultura, do campo da instalação, como é visível no meu trabalho, contudo, não é fácil para mim afirmar-me como escultor.
LV: Há um certo encantamento pela tecnologia, mas é uma tecnologia que é utilizada de uma forma muito “doméstica”, não é uma tecnologia que faça recurso a grandes maquinarias ou processos industriais.
PCS: É um dos temas que eu costumo abordar, esta questão da utilização tecnológica, dos gadgets, etc., pela nossa sociedade contemporânea. A forma como eu uso isso é sempre de uma forma simples, nunca é uma forma complicada. Não consigo pensar para além desses objectos, têm que ter uma ligação muito próxima a mim para poder trabalhar com eles. É nessa área de proximidade que me interessa trabalhar com o aspecto da tecnologia, o lado electrodoméstico. Contudo, a problemática que esses electrodomésticos levantam são universais. Um secador é uma nave espacial, uma arma espacial, mas também serve para secar o cabelo.
LV: Os bonecos que costumam aparecer nas suas obras estão em sítios estranhos.
PCS: O mundo visual que me rodeia é de tal maneira massivo, que é também fonte para trabalhar. São imagens que nos rodeiam por todo o lado, séries de televisão, o cinema - essa dimensão cinemática - os posters, os cartazes... enfim, essas imagens que estão espalhadas por todo o lado também me ajudam.
LV: Há uma área de interesse particular que é a ficção científica e de uma época específica.
PCS: A ficção científica que eu gosto de trabalhar, que me interessa, é a ficção científica que herdei da minha infância. A outra não compreendo, já não me interessa sequer, nem a consigo consumir. Mas o que é que me interessa mais na ficção científica dessa altura? Interessa-me a ideia de utopia, a questão de uma sociedade utópica. Não tem tanto a ver com a parafernália tecnológica, mas com o indivíduo, o poder construir-se de facto uma sociedade diferente. Sociedades que eu não diria perfeitas, mas sociedades muito capazes de englobar o defeito. É nesse sentido que eu estou sempre a recuperar a ficção científica dessa altura. A exposição que eu fiz chamada Voyager foi toda dedicada a esse tema, e basicamente a metáfora residia no seguinte: a Voyager é uma sonda americana que foi lançada para descobrir o sistema solar e a partir de certa altura ficou completamente sozinha, sem controle, mas continuou a funcionar e neste momento já está para além do sistema solar. Eu penso que é isso que a arte deve ser, uma coisa que está para além do sistema solar e já não é passível de ser controlada, mas continua a funcionar, continua a transmitir imagens que já não percebemos, imagens que já não estavam programadas. É nesse sentido também que a ficção científica me interessa, a ideia de coisa que flui no espaço sozinha, no vácuo, mas que continua a trabalhar.
LV: Há uma certa constância de “homages”, referências a essa cultura popular ou outras obras de arte. Sente a necessidade de ligar a sua obra a um caminho anterior?
PCS: Eu tenho uma obra já com algum tempo e há uma relação muito particular e muito especial com a poesia e com os poetas. Aí está parte do meu trabalho. Tenho exposições inclusivé que foram construídas em torno desses autores. Por exemplo, o About emotions and heart attacks foi uma exposição gigante com 18 peças e foi toda construída em torno do T. S. Eliot, a partir de um texto extraordinário chamado Four Quartets. O Eliot tem sido um artista poeta, ensaísta, que me tem dito muito, um homem extraordinário por quem eu tenho uma grande admiração. A forma, diria quase profética, como conseguiu prever todo um resultado, um trópico da sociedade e da cultura em particular. Interessa-me o T. S. Eliot, essa força que ele tinha. Mas não é só o Eliot, o trabalho Light, Color and No Sound é uma obra feita de homenagens a quatro poetas americanos, um deles obviamente é o Eliot, o outro é o Amiri Baraka, Adrienne Rich e Bob Kaufman. São todos muito diferentes, alguns deles muito novos e ligados a uma espécie de fase mais underground americana dos anos 1970/80, outros são mais do início do século [XX], mas de qualquer maneira a ideia é sempre a mesma, que é a de recuperar a poesia e intrometê-la nos meus assuntos. Sinto muito essa necessidade. Ou por exemplo, o trabalho Red Line, que é só sobre um poema do Allen Ginsberg, American. A poesia é, pois, o local onde eu constantemente gosto de me encostar, é fonte de muita coisa, porque eu tenho uma grande admiração por esses artistas. O caso, por exemplo, da última exposição que eu fiz, há lá um poema, que pouca gente conhece, há ali uma referencia extraordinária ao Paul Celan: “a morte de uma flor”. Foi a partir de uma pequena frase dele que eu construí toda a narrativa. O que eu tento ali fazer é mostrar o caos que se sobrepõe a uma imagem de contemplação, como se fosse isso possível e de facto é assim que a vida é, absurdamente simples. Há ali um lado muito ligado à poesia e aos poetas, ao Pessoa, nomeadamente a dois heterónimos que ele tem e que me fascinam e sobre os quais trabalho há muito tempo, o Álvaro de Campos e o Alberto Caeiro. São duas referencias que eu estou sempre a citar no trabalho que faço e também grandes artistas que eu de vez em quando vou lá (ex: o Manzoni, o Courbet ou o Penone). Acho que é qualquer coisa de extraordinário quando um artista reconhece outro artista e fá-lo de uma forma graciosa. Isso só pode ser feito quando há uma relação saudável e uma relação pessoal, intimista. Todos os artistas a quem eu tenho feito homenagens são artistas que têm a ver com o meu modo de pensar o mundo, com o meu modo de representar o mundo. Tento, de forma humilde, ser capaz de construir um objecto que realmente consiga evocar a força destes artistas. São artistas que normalmente têm, como dizem os espanhóis, um “desarrollo” técnico e profissional extraordinário, a par com personalidades fortes, não são curadores de montras, não fazem parte desses artistas que eu considero curadores de montras. Não me interessa isso para nada, acho isso uma coisa absurda até. São homens e mulheres extraordinariamente fortes, sem medo da vida, sem se esconderem atrás de esquemas e eu dou imenso valor a isso. Alguns pagaram com a própria vida. Quando eu associo o meu trabalho a outros autores é, por um lado, sobre este ponto de vista da poesia, aquilo que é o substracto da alma e da arte, e por outro lado aos artistas que conseguem de alguma forma produzir poderosas imagens a par de conteúdos fortes, vigorosos, não se limitando apenas ao puro espanto retiniano. Todos nós, à partida, ficamos encantados com o por do sol e o nascer do sol, isso basta-nos, mas eu acho que esses artistas fazem mais do que isso. E não são só estes artistas dos últimos cem, duzentos anos. Um outro artista pelo qual tenho grande admiração é o Miguel Ângelo. É extraordinário que aquela peça, a Pietà, segundo as palavras do artista, seja um marco da tragédia e do pensamento político mais importante que a humanidade alguma vez viveu. O Miguel Ângelo, quando faz a Pietà, aquele homem gigante que está ao colo da mãe, penso que queria significar o fracasso de um projecto de vida iniciado por aquele homem. É completamente fascinante pensar que um artista como o Miguel Ângelo consegue ter a consciência do impacto que pode produzir uma peça, uma imagem num tempo futuro, eterno. Tem uma força que ultrapassa tudo e chega a este momento em que nós estamos e continua a ser aquilo que era quando foi construído. A força daquela imagem não é possível de ser parada. Há quem olhe para aquele trabalho e ache que aquilo é meramente um desenlace técnico ou tecnológico. Tenho pena das pessoas que pensam assim.
LV: Isso remete-nos para um lado de intervenção social do artista?
PCS: Estou consciente de que a arte nunca esteve alheada da sociedade. Não conheço nenhum artista que tivesse construído um trabalho alheado da sociedade. Eu acho é que não se deve é ser panfletário. Acho que não é tanto a ideia de que os artistas devam assumir na sociedade uma função que designamos tipicamente política. Toda a arte é política, não tenho dúvida absolutamente nenhuma. As ferramentas que tem para se exprimir são aquelas que são próprias da arte, são próprias da forma como comunica, e ela comunica de uma forma extraordinária, através da emoção, da ressonância, dos conteúdos implícitos, das subtilezas... A forma como a arte, e as artes visuais em particular, comunica é de uma riqueza háptica, não é só retiniana, como disse. As artes não funcionam da forma como as outras coisas funcionam, nesse sentido eu acho que a arte não deve ser panfletária, para isso há outras máquinas de comunicar mais eficazes. A arte não tem esse desidrato de ser panfletária, mas a arte tem o dever de estar atenta ao mundo e de comunicar com o mundo. “Como?” é o que eu pergunto, mas depende depois do artista e da forma como ele usa as suas estratégias e esquemas. É nessa procura que está a riqueza. Há um artista, Oteiza, um escultor extraordinário, que àquela pergunta tão chata mas que as pessoas fazem constantemente – “O que é arte?”, o Oteiza respondeu laconicamente (e o que ele respondeu eu concordo e assino), “isso é muito fácil, a arte é uma coisa muito simples, parte de uma relação que os artistas estabelecem com a matéria, seja ela qual for, a partir da qual produzem ou tentam produzir significado. O resultado também é simples, é sempre a produção de uma realidade interior.” Eu acho que isto é a fórmula mais interessante que ouvi e que é produzida por um artista, não é produzida por um teórico, é por um artista que me dá rapidamente uma solução para este problema “O que é a arte?”, ou o que é a arte visual, porque as outras dimensões (sonoras, etc.) já não percebo nada, sou só um consumidor (risos). Por isso é que ela tem uma dimensão política, é sempre uma produção de sentido, seja o amor, seja a morte, seja a paixão... todos os actos da nossa vida são políticos, não são actos inocentes, são construídos na base da dialéctica e com a dialéctica procura-se produzir coisas nos outros. Eu penso que toda a arte é política, a arte não é nada sem a política, não tem sentido.
LV: Essa dimensão da comunicação é muito importante no seu trabalho, até pelo papel que a linguagem tem nela.
PCS: O termo comunicação é um termo extraordinariamente complexo para se usar no interior da produção artística. Na realidade, não é bem aquele chavão emissor-receptor-comunicação que estamos a falar nas artes plásticas e que funciona tão bem no jornalismo. A arte, mais do que comunicar, expressa. Essa é a expressão correcta, um artista produz uma obra que é, se tudo correr bem, produto da sua auto-expressão, eu acho que é por aí que ela comunica. Quando vemos aquelas pinturas extraordinários do Chagall ele está a comunicar connosco obviamente. Quem é que não fica completamente maluco a ver aquelas coisas? Aqueles homens a dormir sobre a cidade! Não é fácil transmitir aquilo tudo numa linguagem que não seja a linguagem visual, mas toda a gente entende aquilo. Ou quando estamos a ver um trabalho do James Turrel, nós ficamos ali a completamente rodeados daquele azul intenso que não sabemos bem onde acaba e onde começa. É a mesma coisa quando estamos sob influência dos azuis do Giotto. O Giotto percebeu muito bem como é que aquilo tudo comunicava com as pessoas, que fica embebecida lá dentro, perde-se para sempre. O que há é uma impossibilidade de todos os artistas terem essa eficácia, por isso nós elegemos uns em detrimento de outros. Eu próprio quando me comparo com estes homens e mulheres, sinto-me mal, sinto-me fraquinho, pequeno. Aquilo é tão bem feito que eu até me sinto mal por querer fazer parte do mesmo fluxo do que parece tocado pela perfeição. É nesse sentido que eu entendo a dimensão da comunicação.
LV: E a linguagem conceptual?
PCS: Assim como toda a arte é política, toda a arte é conceptual, não há uma arte que recaia no anátema de uma arte não pensada ou meramente intuitiva. Toda a arte é intelectual, toda a arte é pensada e fruto do esforço. Toda a arte que é verdadeiramente arte, ou que procura ser arte, tem que ter esforço. As minhas exposições individuais, que são a minha força, demoram muito tempo, um ano no mínimo, e envolvem um processo de investigação que é muito grande. Para além de um processo de investigação material, onde eu estou sempre a testar-me, há todo um processo de investigação que é teórico: as leituras que eu preciso fazer, os sítios que eu preciso de visitar... Confunde-se essa coisa da arte conceptual com uma corrente artística dos anos 1970 e não se consegue perceber que se está a falar de coisas diferentes. O que existe felizmente é uma grande variedade, aquilo que é a herança do mundo contemporâneo, do mundo pós-moderno, e que já começou na altura da arte moderna. Há uma abertura enorme, um léxico extraordinário, temos milhares de formas e modos de produzir imagens, temos as categorias tradicionais e acrescentámos outras que hoje são banais, como a vídeo instalação, a instalação ou a performance filmada. Todas essas coisas hoje estão perfeitamente assumidas, adquiridas como fazendo parte do jogo, já ninguém as põe em causa, a par ainda da pintura, da escultura, que são ainda as linguagens-mãe destas coisas todas.
LV: Como é que aparece o vídeo no seu percurso?
PCS: Eu sou dos mais antigos artistas da minha geração a utilizar a imagem em movimento nas artes plásticas. Esse fascínio teve a ver com o início de tudo, eu no princípio fui estudar cinema, fui para o conservatório de Lisboa e andei lá algum tempo. Andava dividido entre a escultura e o cinema e fui para o cinema. Depois percebi que não estava fascinado pelo cinema, mas pela imagem em movimento e quando percebi isso saí imediatamente. Não tenho competência para o cinema, é um dispositivo complexo, mas o que me interessa dali é a imagem em movimento e é essa imagem em movimento que, mal surgiu a oportunidade, comecei a trabalhar. Tive o primeiro contacto na Holanda, onde estive a estudar e onde vi uma exposição com o Bruce Nauman, o Dan Graham... foi uma coisa extraordinária, tinha 18/19 anos. Foi um mundo novo e complexo e obrigou-me a estudar um pouco toda a questão da imagem em movimento e como ela se foi desdobrando e sobrevivendo até chegar às artes visuais, até ser incorporada nas artes plásticas de uma outra forma. Quando comecei a minha actividade de artista plástico, por assim dizer, comecei imediatamente a trabalhar essa dimensão. O meu primeiro trabalho foi de 1990 e foi muito inspirado no trabalho da Joan Jonas. Pus uma data de colegas holandeses em Roderdão com cartazes a pedir boleia para Vladivostok. Perdi esse trabalho porque eram umas cassetes U-matic. Ainda não era nada, mas fiquei sempre com aquela coisa de ter perdido as cassetes, que eram grandalhonas, daquele que foi o meu primeiro trabalho. Volta e meia regresso ao cinema. Tenho o Take me to the place where I belong, que é uma espécie de filme imaginário com todos os autores que eu gosto até 2001, é a última actualização, porque aquilo já teve várias actualizações. É como se fosse um filme imaginário, está lá o Mastroianni a contracenar com o Gregory Peck, como se isso fosse possível. Tudo aquilo é traduzido num genérico infindável, o filme é um genérico que nunca acaba. Essa dimensão cinemática mantém-se no meu trabalho, onde aparecem narrativas lineares e uma dimensão performativa que eu gosto de utilizar.
LV: Esta última exposição, Unconditionally, começa com a projecção Selfish. É a Imagem a reflectir sobre si própria?
PCS: A Voyager foi o fim de um ciclo, há ali um processo de auto-flagelação. Aquelas grandes exposições que eu fiz, em que construí um espólio de objectos e de imagens imagens – ill communication, Unlovable, About emotions and heart attacks, Voyager, Tilt –, são tudo exposições de quebra, há qualquer coisa de quebra ali sempre presente. A Voyager, que tinha uma sub-exposição chamada Fireworks, foi uma exposição com a qual eu quis fechar um ciclo de coisas que até essa altura tinham feito sentido. Com Unconditionally, que demorei dois anos a engendrar, já estão a aparecer outras coisas no meu trabalho, coisas que eu não mexia e que estavam para trás. Esta exposição assume um lado poético muito vincado, mas por outro lado um conjunto de pressupostos de conteúdo político muito assumido. Há um afunilar, esta exposição tende a afunilar coisas que eu adquiri e que fazem parte da minha forma de estar no mundo. As outras exposições iam fechando, iam depurando, depurando, e esta parece que é ao contrário, permite-me abrir muito o meu campo expressivo. Eu tenho muito material para trabalhar a partir de agora, que nunca poderia trabalhar num outro regime, por questões de mal funcionamento da minha cabeça, admito. A peça Selfish abriu-me a porta que eu nunca tinha aberto até então, que é a porta da concessão, e sei da gravidade que isto tem. Pela primeira vez assumi que o artista também é um ser egoísta e reclama toda a atenção do mundo e é totalitário nessa disputa. No fundo, Unconditionally é “incondicionalmente sim, sou egoísta”, “incondicionalmente sim, procuro ser um homem, um cidadão activo no mundo”. É quase uma impossibilidade, como é que se consegue ser as duas coisas? Eu acho que é essa questão que é ali representada. Começa a ser muito mais esse o problema, o lugar que o artista ocupa na sociedade, como é que o artista sobrevive.
LV: É membro do Pogo Teatro. Participa na escrita, cenografia, performance.
PCS: Uma dimensão muito importante no meu trabalho é esta ligação ao Pogo Teatro. O Pogo Teatro, que é tudo menos teatro, é acima de tudo uma escola de fusão de imensos materiais, onde me tem permitido trabalhar muitas coisas que estão à volta das artes plásticas, como por exemplo a fotografia, o texto narrativo, a performance como actor. Um sítio de experiências e de coisas que eu tenho testado e incorporado depois no meu trabalho de uma outra maneira. O Pogo tem uma identidade própria, tem uma forma de actuar que anda entre a vídeo-instalação, o vídeo-teatro, a performance, e isso permite-me ir testando coisas e trabalhando com actores, que é uma coisa que os artistas plásticos normalmente não fazem. Não quer dizer que os utilize daquela forma mais normativa, mas aprendo imenso com coisas que eles fazem. Nesse sentido, tem sido uma escola fantástica. Este ano todo estamos a preparar uma exposição sobre a Grécia que vai ter objectos de diversas naturezas, metade deles filmados na Grécia aquando das últimas eleições.
LV: Complementa o seu trabalho?
PCS: Muito! Tenho feito coisas que se não fosse o Pogo não tinha feito, não era possível de serem feitas. Tenho peças, por exemplo, Exit (“For you guys”), que foi feita em co-autoria com o Rui Otero, ou por exemplo a peça dos super-heróis que se não fosse o Pogo eu não tinha conseguido realizá-la, era demais para mim conseguir fazê-la. Ainda outra peça importante que fizemos chamada Sente, que mistura registos videográfico, sonoro, um elenco de actores, e isto seria impossível de fazer sozinho.
LV: Fez parte também do Autores em Movimento.
PCS: Foi um colectivo artístico que nós criámos ainda no tempo da escola. Conheci na ESBAL um conjunto de artistas muito interessantes, como o Alexandre Estrela, como o Rui Toscano, o Tiago Baptista, como o Paulo Mendes, como o Miguel Soares, o Carlos Roque... Esta comunidade de pessoas que eram muito novinhas, tinham o interesse comum de querer produzir exposições e fazer o seu próprio caminho. A coisa mais importante foi conhecermo-nos ali e ter tido a coragem de começar a fazer coisas sem estar à espera que nos convidassem. Foi aí que eu comissariei a primeira exposição. Infelizmente foi devido à morte de um colega artista, o Miguel Mendonça, que nós fizemos o Faltam Nove para 2000, em 1991. O grupo que ali estava foi crescendo de forma diferente, mas foi muito importante esse contacto. Os Autores em Movimento surgiu justamente dessa necessidade de conseguirmos mostrar o nosso trabalho tendo ainda um outro objectivo, que era convidar artistas mais velhos, consagrados, e tentarmos construir exposições integrando os trabalhos deles, respeitando sempre esse trabalho de pessoas mais velhas já com um determinado lugar no mundo artístico português e não só. Foi muito curioso que as respostas foram todas muito positivas. Os Autores em Movimento foi constituído por mim, pelo Tiago Baptista, pelo Paulo Carmona e o José Quaresma, e nós conseguimos em três eventos (Greenhouse Display, Jetlag e X-rated) juntar cerca de cinquenta autores à volta do projecto, entre artistas plásticos, escritores e poetas. Além de arranjar espaços, fazia parte do projecto conseguimos editar uma revista-catálogo (editámos três), mas era muito difícil por aquela gente toda a trabalhar, no fim o esforço foi demais e estávamos esgotados.
LV: Desde então, e além da produção do seu próprio trabalho artístico, o Pedro dedica-se a projectos de curadoria.
PCS: A minha atitude face à curadoria não tem nada a ver com a curadoria no sentido mais profissional. Eu não sou um curador nesse sentido, o que eu tenho feito é ajudar jovens artistas, pois a maior parte destas coisas são de jovens artistas que me procuram para os ajudar a fazer exposições. Ou então, artistas pelos quais eu tenho muita consideração, como é o caso do Manuel João, para o qual fiz a curadoria da Casa na Cordoaria Nacional, ou o Pedro Saraiva, com o Gabinete>Linfa no Pavihão Branco, ou uma experiência extraordinária que eu fiz aqui há pouco tempo no Pavilhão 31, Distopia, em que consegui juntar trabalho do Jorge Molder, do Fernando Amaro, do Domingos Rego, do António Olaio, da Isabel Baraona, do Sandro Resende e do Valentim, numa experiência que se eu não a fizesse ela nunca teria sido feita. Há também o caso do Fernando Brito. Era urgente dar visibilidade ao trabalho do Fernando Brito e conseguiu-se fazer um catálogo, produziu-se uma entrevista, um texto. Porque a obra do Fernando Brito estava em risco de desaparecer completamente, ao ponto de começarmos a fazer a exposição e não sabermos tão pouco onde é que as coisas estavam. É este desprezo, esta falta de atenção, que faz com que depois não tenhamos nada. Há um mês atrás fui com uma turma minha a Évora, à Fundação Eugénio de Almeida, e depois fomos ao museu de Évora, que é um museu diverso, e estávamos a ver uma pintura e eu digo “aqui está o Pedro Alexandrino”. O Pedro Alexandrino foi um pintor extraordinário que nós tivemos, fez muito coisa, mas pintou muito pouco coisas interessantes. Se o Pedro Alexandrino tivesse produzido um corpo significativo de trabalho pictórico, nós tínhamos resolvido o problema deste espaço-tempo. Um pintor fabuloso, dotado, inteligente, culto, cultíssimo, não tem obra neste sentido. O Domingos Sequeira também tem muito pouca obra interessante, tinha que pedir licença régia para pintar. O Gregório Lopes é um mestre extraordinário com uma obra toda desfragmentada, toda a desfazer-se. Isto pode parecer uma lamúria, mas não é uma lamúria, é para percebermos que estivemos sempre a um passo. Quando eu falo do Fernando Brito é porque o Fernando Brito é outro Pedro Alexandrino, é outro Domingos Sequeira, é outro Gregório Lopes. Só que já não estamos no século XVI, XVII ou XVIII, estamos em 2014. Portanto, a necessidade de fazer aquela exposição foi enorme, eu e o Ivo Martins demos muito para aquela exposição, obviamente que não dava para fazer tudo, mas que pelo menos um documento ficasse.
LV: Era importante nessa época não ser só artista?
PCS: Os anos 1980 foram uns anos muito ricos, uma época riquíssima, de muitos acontecimentos, de museus, galerias, etc. Por um lado há essa riqueza e há o aparecimento de artistas notáveis em Portugal, e há depois uma geração que aparece a seguir e que está ali sem espaço para expor, porque aquela geração de 1980 é muito forte e é uma geração que ainda continua a trabalhar muito bem. Havia de alguma forma um esforço de encontrar espaços e tentar mostrar trabalho. Nessa altura não fui só eu que comissariei exposições, toda a “minha geração” fez exposições: o Alexandre Estrela, o Rui Toscano, o Paulo Mendes, o Carlos Vidal... Houve tanta gente... Também tivémos a ZDB que nos ajudou imenso, e no Porto tivémos o Artemosferas e o Maus Hábitos. Estes sítios no Porto e em Lisboa foram muito importantes para nos ajudaram a fazer esse trabalho. A geração de 90 não foi proposta – foi imposta.
LV: Esse ímpeto para a acção é algo que tenta transmitir aos seus alunos? Como é a relação com eles?
PCS: Neste momento sou professor convidado da Universidade do Algarve, do curso de Artes Visuais, o que é uma grande honra para mim. Aquilo que eu acho que é mais importante na minha relação com os alunos é justamente a forma como eu consigo transmitir a minha experiência. Acho que é isso que um professor de artes visuais práticas tem a fazer, é conseguir ser eficaz em trabalhar com os alunos, passando, transmitindo a sua experiência. O resto são problemas burocráticos, administrativos, é super desinteressante. Essa parte, o contacto com os alunos, que passa por organizarmos exposições com eles, passa por visitas de estudos, que é uma coisa que eu faço sempre com eles, é levá-los ao estrangeiro ver autores do período clássico, modernos, contemporâneos... Dar-lhes tudo, o máximo. O resultado destes 20 anos a dar aulas é basicamente o seguinte: ao fim tudo parece funcionar. Há algo mágico, há ali um problema de magia simpática que funciona e os alunos percebem e constroem de forma espectacular. Se vão ser artistas ou não, não sei, já não me diz respeito, mas eu observo que eles conseguem fazer coisas extraordinárias antes de acabar o curso. É isso que me deixa encantado.
LV: Os seus alunos estão a formar-se num período difícil para as artes e a cultura em Portugal. Como é que vê essa situação?
PCS: O tempo que estamos a viver agora, em termos culturais, é de uma enorme depressão e decepção. E porquê? Porque de facto se este tempo veio trazer alguma verdade escondida, essa verdade é que a cultura não interessa aos “portugueses”. Eu tenho muita pena que este conjunto de factos aterradores que paira sobre nós irá perdurar durante muito tempo. A questão não é tanto se o os Mirós devem ficar em Portugal ou não, é se de facto nós temos ou não uma visão cultural sobre o assunto e não uma visão financeira, porque isso já sabemos à partida. Nós à partida podemos querer cá um núcleo alargado de pinturas ou de esculturas do Miguel Ângelo, mas isso não é possível, não vale a pena discutir isso pelo dinheiro. A oportunidade não se faz pelo dinheiro, faz-se pelo momento e o momento é aquele que nós quisermos que seja. A cultura também é um conjunto de oportunidades do momento. Quando começamos a ver que há quadros de muito valor histórico que saem pela porta do cavalo, há uma senhora chamada Paula Rego que quase foi despejada da sua casa, se os Mirós não interessam para nada o melhor é livrarmo-nos deles, se... Se há um concurso para atribuir dinheiro da DGArtes que estabelece como princípio de maturação a atribuição a géneros e minorias, há aqui um problema muito complexo que eu não sei quem é que tem que resolver, mas é um problema que nos tem sempre acompanhado. Nós não temos nada por causa disto. Este problema estava lá antes da crise económica, estava era escondido num pseudo-discurso, mas agora que os problemas chegaram a cultura ficou logo pela linha de baixo. Quem está a fazer cultura neste momento em Portugal são pequenos heróis que com o seu esforço vão conseguindo construir a custo zero praticamente, e por outro lado uma minoria de protegidos e favorecidos que também vão construindo, mas de outra forma. Há uma grande separação e não há nada no meio.