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SOLANGE FARKAS
Solange Farkas é curadora-geral do Festival Internacional de Arte Contemporânea SESC_Videobrasil, uma referência para a produção artística do Sul geopolítico, responsável por ter apresentado nomes de peso da arte internacional, como Akram Zaatari, Bill Viola, Gary Hill, Peter Greenaway, Marina Abramovic, Olafur Eliasson e Walid Raad. A edição deste ano decorre até 6 de dezembro de 2015, em São Paulo, e debate questões que dizem respeito a “diásporas, identidades híbridas, migração e viagens, narrativas pessoais, memórias, isolamento, tecido social e insularidade”.
Por Liz Vahia e Victor Pinto da Fonseca
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LV: Foi fundadora do Festival Internacional de Arte Contemporânea SESC_Videobrasil em 1983. Mais de três décadas depois, qual é o lugar do vídeo no panorama expositivo brasileiro, em comparação com o início dos anos 1980?
SF: No primeiro Festival (1983), o vídeo era um suporte ainda novo e desafiador para artistas do Brasil. Foi nesse período que chegaram ao país os primeiros equipamentos. Assim, aquela edição do Festival teve caráter pioneiro: foi um dos primeiros eventos no Brasil a abrir espaço efetivo para essa nova mídia. Foram apresentados vídeos, performances, instalações e uma feira de novas tecnologias. O tom geral do vídeo nacional era de crítica ao monopólio da TV aberta. O vídeo buscava um meio de exibição coerente com o que se anunciava como uma nova linguagem.
Ao longo dos anos, o Festival se transformou: de uma iniciativa local, voltada a fomentar e discutir o vídeo brasileiro dos anos 1980, ele se internacionalizou, colocando seu foco sobre o Sul geopolítico do mundo (a partir da década de 1990), e converteu-se em plataforma para toda a produção artística contemporânea, sem restrição de linguagem, suporte, mídia (desde 2011, oficialmente). Essas transformações foram possíveis porque o sistema artístico se redesenhou, culminando nas práticas contemporâneas que borraram as fronteiras entre as diversas manifestações artísticas. O vídeo saiu da “caixa preta”, ocupou o “cubo branco” e foi plenamente assimilado pelas artes visuais. Esse cenário fez com que, em diversos momentos dessa história, redesenhássemos o Festival.
Mas é curioso notar que, desde a abertura a todas as linguagens e suportes artísticos, a forte presença do vídeo no Festival (e entre os trabalhos premiados pelos júris a cada edição) é indicativa da consolidação de nossa trajetória e da força do vídeo no cenário das artes visuais.
LV: Foi também directora do Museu de Arte Moderna da Bahia de 2007 a 2010. Qual é a diferença de programar para um festival e programar continuamente? É difícil inserir regularmente o vídeo nos meios institucionais?
SF: É importante destacar que, para nós, o Festival não é considerado um “evento” pontual, que acontece a cada dois anos. É uma plataforma contínua de trabalho que pressupõe muito tempo de pesquisa, incluindo viagens a eventos de arte e ateliê de artistas em lugares os mais distantes.
Mas respondendo a sua questão da diferença entre o trabalho do Videobrasil e do MAM-BA, a primeira delas é que o Museu de Arte Moderna é uma instituição pública que, à época (2007-2010), atendia a objetivos específicos daquele momento, dentro de uma conjuntura política também específica. No que me diz respeito, um dos principais desafios durante a minha gestão no MAM-BA foi inserir a Bahia (um estado do nordeste do Brasil, fora do tradicional eixo Rio de Janeiro-São Paulo) no circuito nacional e internacional de arte contemporânea.
Quanto a inserir o vídeo nos meios institucionais, uma vez que se tratava de um museu dedicado à arte contemporânea, considero que essa mídia já estava plenamente assimilada no cenário geral das artes, como mencionei anteriormente. Mas, lá, ainda era muito importante difundi-lo junto ao público local, levando à capital Salvador desde exposições de artistas pioneiros, como Letícia Parente, Eder Santos, Cao Guimarães, além de criar projetos específicos, como o Cinema de artista, para contribuir com a formação do público local.
Já em relação à diferença do trabalho nesse museu e no Videobrasil, não somos uma organização pública, apesar de termos de certa forma uma missão que atende a fins públicos, por ser voltada à formação e à promoção da arte e da cultura. Temos uma liberdade maior de experimentar mais, de arriscar novos formatos, de propor sempre mudanças para o Festival e nossos diferentes projetos. Mas em ambos os locais, existe o mesmo desafio, que é cuidar da salvaguarda e ativação dos acervos das duas instituições.
LV: O SESC_Videobrasil foi responsável por trazer grandes nomes da vídeo arte ao Brasil. Na edição deste ano dá-se destaque a artistas ligados ao sul geopolítico. O festival é cada vez mais uma forma de chamar a atenção para a reflexão que se produz nestas zonas?
SF: Desde a internacionalização do Festival, nos anos 1990, percebi a importância de trabalhar nessa região como forma de promover e incentivar sua produção, e possibilitar acesso a obra dos artistas que trabalham nessa área. Inicialmente nosso recorte era geográfico (Hemisfério Sul). Com o passar dos anos, compreendemos que questões que eram importantes a essa região existiam em outros locais fora do circuito hegemônico das artes, passando a um recorte geopolítico (Sul geopolítico ou Sul global). Embora hoje tenhamos clareza de que o vídeo está inserido no contexto das artes visuais, achamos que ainda é importante trabalhar o Sul, pois é possível identificar a necessidade de atuar em prol de um campo artístico e cultural de regiões que ainda precisam inventar novas formas de circulação e visibilidade.
Até a edição anterior, o Festival tinha paralelamente uma mostra competitiva (de obras submetidas por artistas do Sul global via convocatória pública) e uma mostra de artistas convidados do Norte, na intenção de possibilitar trocas e diálogos entre os eixos Norte e Sul. São exemplares as exposições de Olafur Eliasson, Marcel Odenbach e Gary Hill, que ocorreram dentro dos Festivais, e de Isaac Julien, Joseph Beuys e Sophie Calle, que aconteceram entre os Festivais.
Este ano, o Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil radicaliza sua proposta e conta, pela primeira vez, com uma exposição coletiva de artistas convidados cujas trajetórias são referenciais no plano global, mas que falam desde o Sul. Os trabalhos dos convidados Abdoulaye Konaté, Gabriel Abrantes, Rodrigo Matheus, Sônia Gomes e Yto Barrada atestam a potência da produção artística desse recorte geopolítico e refletem a radicalização da proposta desta edição do Festival e do campo de ação da Associação Cultural Videobrasil. Somando a isso as obras dos 57 artistas selecionados via edital (projetos e obras), o Festival se consolida como uma das maiores plataformas de visibilidade da produção do Sul.
VPF: A navegação portuguesa do século XVI, uma das mais admiráveis aventuras da história global do mundo, foi talvez o primeiro evento que atraiu a atenção sobre o hemisfério sul, e a visão universal dos portugueses bem pode ter sido premonitório da globalização da economia.
Os descobrimentos foram uma aventura efémera para os Portugueses, mas a descoberta do Sul (misterioso) inaugurou o multipolar globalismo, e através do tempo a importância do Sul simbólico acentuou-se.
No seu conhecimento e intuição, donde é que provém especialmente o continuado fascínio do Sul?
SF: É importante desmistificar esse trânsito e visão de mundo que parte do Norte para o Sul. Havia no Brasil uma civilização indígena de complexa organização social e produção cultural que diferia da perspectiva ocidental. Um exemplo claro é a existência de uma constelação (o Cruzeiro do Sul) usada como instrumento de orientação, totalmente desconhecida pelos europeus até o momento do “descobrimento” em 1500. Nesse sentido, permita-me discordar: e se o Norte fosse a matéria ou material de fascínio? Nesse caso, o protagonismo é nosso, e não dos europeus. A visão estreita do Sul é de fato a aresta política a ser combatida. Não estamos aqui para negar o Norte, mas dar visibilidade cultural ao dissenso.
Portanto, basta observar o aporte sugerido por Okwui Enwezor na última Bienal de Veneza ao refutar a ideia de um continuado processo de descoberta, chamando a atenção para a relevância das várias noções de futuro, nas quais coexistem valores universais e especificidades locais. Estamos, desde já, construindo outras narrativas e problematizando as próprias razões da história.
VPF: De uma perspectiva geopolítica, o Sul já não é uma região de momentos, antes adquiriu uma importância internacional constante, que chegou na última década do século XX e acelerou no século XXI, com estados poderosos e movimentos político-sociais cada vez mais activos (o Brasil, o México, África do Sul, Angola, são exemplos óbvios). Simultaneamente, na década de 90, o nosso saber sobre a arte contemporânea que se faz no Sul, era muito mais limitado; dispúnhamos de poucos elementos de informação sobre a América Latina e a África, territórios que geograficamente não nos são muito fáceis de ver.
Apesar de cada edição do Videobrasil aportar uma vitalidade específica, transmitida pelas ideias e reflexões dos diferentes artistas, podemos esperar que juntas representem uma única obra, uma construção cultural, representacional, sobre a noção de Sul? Pode-se dizer que a evolução do passado ao presente, do Festival Videobrasil, inscreve uma memória que coincide com a história da região?
SF: Sim, acreditamos que, de alguma forma, reunimos em nosso acervo parte considerável da memória da produção audiovisual do Sul geopolítico.
Mas devemos partir de três termos distintos: diversidade, pluralidade e dissenso. A pureza de uma única construção cultural não nos cabe. A diversidade é a grande riqueza do Sul. Uma das maiores lições que o Sul pode dar para a compreensão artística — ou humana — é que não existe um único Sul. Ele é tão diverso quanto é o Brasil, de sul a norte, quanto é a Europa, etc.
Com a evolução das tecnologias de informação e comunicação e dos meios de transporte, regiões que antes eram inacessíveis hoje são mais fáceis de atingir. Quando comecei a trabalhar no continente africano, nos anos 1990, o acesso era uma dificuldade. Hoje, é muito mais fácil chegar até lá e também que a África chegue até nós — e não falo apenas do facilitado deslocamento físico.
Talvez a questão seja que, com os booms econômicos (a exemplo dos BRICS), o mundo passou a prestar atenção nesses locais, agora com mais autonomia. Mas nossa importância econômica enquanto colônia é bem mais antiga — para os colonizadores, ela vem desde sempre. A história sempre foi escrita do ponto de vista do colonizador. Hoje, o Sul pode construir sua própria história.
LV: No mesmo período em que decorre o festival, é inaugurada uma exposição paralela intitulada “Quem Nasce Pra Aventura Não Toma Outro Rumo – Obras do Acervo Videobrasil”, com curadoria de Diego Matos, coordenador de arquivo e pesquisa do Videobrasil, e que reúne uma seleção de obras do Acervo Videobrasil. Neste momento encontra-se também patente no MARCO de Vigo, Espanha, uma exposição, “Memórias Inapagáveis”, que é a primeira parte da itinerância deste acervo. Era tempo da Europa conhecer localmente o legado criado pelo SESC_Videobrasil?
SF: Edições anteriores do Festival tiveram itinerâncias pela América do Sul, América Central e África. Mostras de filmes e programas de vídeos a partir do Acervo Videobrasil, algumas das estratégias de ativação da coleção que vem sendo formada desde 1983, já haviam sido exibidos na Europa, América do Norte, Ásia, Oriente Médio. Com foco na produção do Sul global, o Acervo Videobrasil abrange obras que participaram do Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil, trabalhos doados por artistas, obras-chave da videoarte internacional, registros de performances, testemunhos, documentários, publicações e documentos, num total de quase 10 mil itens — 4.500 deles já estão catalogados e, agora, disponíveis para consulta pública no Galpão VB, nova sede do Videobrasil e abrigo deste acervo construído ao longo de mais de 30 anos.
Mostras do acervo acontecem já há muitos anos, inclusive na Europa, em parceria com outros eventos e instituições. Exemplos recentes, do período 2014-2015, são a GIBCA (Bienal de Gotemburgo, Suécia), WRO Biennale (Polônia), Delfina Foundation (Reino Unido), FUSO (Portugal), Carpe Diem (Portugal) e Centro para a Arte Contemporânea Zamek Ujazdowski (Polônia).
Mas, de fato, foi no ano passado que grandes projetos expositivos a partir do Acervo Videobrasil começaram a ser realizados — o primeiro deles resultou na exposição itinerante Memórias inapagáveis, exibida inicialmente no Sesc Pompeia, em 2014, e em seguida no MALBA (Argentina), MARCO Vigo (Espanha), e na B3 Biennial of the Moving Image (Alemanha). Até o final do ano que vem, outros países sediarão a exposição. A atual exposição no Paço das Artes é outro exemplo, que também terá vitalidade, ampliando os propósitos da exposição Memórias inapagáveis e construindo novas narrativas de uma história ainda em escrita.