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JOÃO LEONARDO
04/08/2020
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Licenciado em História de Arte pela Universidade Nova de Lisboa, em 1996, frequentou o Programa de Estudos Independentes da Maumaus em 2003 e em 2009 completou o Programa de Mestrado em Belas Artes na Malmö Art Academy da Lund University, na Suécia, onde vive actualmente. Em 2005 foi o vencedor do Prémio EDP Novos Artistas. Beatas de cigarro usadas e novas, cigarros, maços de tabaco, sangue, esperma ou urina, são alguns dos materiais que constituem a base de muitos dos seus trabalhos. Em Portugal vamos poder ver obras suas ainda este ano no Porto e em Lisboa, em duas exposições colectivas.
por Sérgio Parreira
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Sérgio Parreira (SP): Fiz um levantamento dos materiais mais relevantes que tens utilizado como técnica plástica de criação: sangue, esperma, urina, próprio corpo (o teu corpo), beatas de cigarro usadas e novas, cigarros, maços de tabaco, nicotina líquida, tabaco em pó, whisky, cerveja, vinho tinto, cinzas de tabaco, copos de plástico descartáveis… Se tentares criar um distanciamento, entendo que talvez seja difícil, como descreves estes materiais/matéria de criação?
João Leonardo (JL): Sempre me interessou muito a materialidade das obras e sou muito apologista de trabalhos que usem uma certa economia de meios, que não precisem de um grande investimento de produção para se concretizarem, embora por vezes também faça o oposto. Em geral gosto de objetos que encontro, que não preciso de procurar ou de comprar propositadamente, pois estes já me rodeiam, ou fazem parte do meu quotidiano. Todos os materiais que apontaste têm uma relação com o corpo, entendido de uma forma expandida, sendo que alguns são exteriores e outros são mesmo interiores, vêm literalmente de dentro. Interessa-me a realidade concreta e física dos materiais; as ressonâncias simbólicas, metafóricas, metafísicas e psicológicas que cada um deles encerra. Interessam-me materiais orgânicos, banais, que encerrem em si mesmo a história da sua fragilidade e impermanência, completamente afastada dos materiais nobres como o mármore, o bronze ou a pintura a óleo.
SP: Na pergunta anterior eu estava exatamente à procura de algo que acabaste por referir e que eu tinha identificado como um elo condutor da tua obra: a relação com o corpo. Eu encontrei esta referência, tal como mencionas, sob variadas formas e talvez seja interessante abordá-la cronologicamente. Nos teus vídeos, entre 2002 e 2010, acontece uma exploração do corpo individual, físico e identitário. Concordas com esta leitura?
JL: Sim concordo, mas também questiono: O que define uma identidade? Um grupo social ou um conjunto de características homogéneas de um determinado grupo de indivíduos que se identifica com algo que têm em comum? Um nome? Um nome de uma coisa designa algo que se pode identificar, mas antes da linguagem existe o corpo… O corpo é aquilo que infinitamente nos identifica porque sem corpo simplesmente não existimos. Deste corpo como identidade surgem todas as obsessões com dietas e transformações de acordo com uma ideia muito subjetiva de beleza. Quando comecei a trabalhar em vídeo tinha uma ideia do corpo como objeto de desejo e explorei ideias de repulsão e atração.
SP: Esta exploração do corpo, nestes vídeos, nalguns mais do que outros, há uma vertente de experimentalismo que é muito interessante; despreocupada, mas simultaneamente obsessiva. Quando refiro obsessiva, é talvez no sentido em que crias desafios a ti próprio, que tens necessariamente de concluir, em que falhar não é uma opção… Podes falar um pouco desta fase e dos teus “processos”?
JL: Todos os vídeos desse período são “experimentais” no sentido em que não os fiz para nada nem ninguém em especial, a não ser para mim próprio. Sentia necessidade de os realizar e de os ver; de ver o que se pode fazer, até que ponto podia ir mais longe - entre aspas - mas também fisicamente e explorar o que me interessava; tipo escavar de forma mais profunda as minhas obsessões, mas obviamente com pleno conhecimento do que foi feito antes.
SP: De certa maneira acho que continuas a explorar a ideia de repulsão, mas deixa-me regressar a isto um pouco mais adiante. Ainda nos vídeos e desta fase de “experimentação” e exploração de obsessões “on record”, consegues enunciar algumas lições que possas ter retirado e como estas possam (ou não) ter influenciado a tua criação artística posterior?
JL: Não sei se poderia enunciar lições num sentido académico. Sempre segui processos mais intuitivos e muitos desses vídeos são de facto performances para a câmara. Foram influenciados por performances e vídeos com os quais tomei contacto nessa altura e que muito me impressionaram como foi o caso do Bruce Nauman, a Ana Mendieta, a Martha Rosler, o Harun Farocki ou o Chris Burden. Há uma forma de conhecimento e aprendizagem que não tem nada que ver com a teoria, passa pela experiência e por algo um pouco mais intuitivo ou irracional. Nesse sentido aprendi e cresci muito. Foram experiências que me permitiram evoluir e sobretudo perder o medo. Aprendi a não ter receio de cair no ridículo e isso é libertador para qualquer artista. Obviamente, que essa fase experimental também me ajudou a perceber melhor quem sou e o terreno ou percurso que me interessava explorar.
SP: Creio que em 2008, com um dos teus vídeos “Time after Time” e posteriormente em 2009 com o trabalho Timeline (Mais de 350 fotografias/Imagens) criaste um género de narrativas autobiográficas. Não sei se esta será a melhor denominação, corrige-me se não for. O que estavas a explorar e a tentar transmitir com estas obras?
JL: Podes designar esses trabalhos como narrativas autobiográficas, porque o são de facto. Apercebo-me com frequência que muitos artistas contemporâneos que usam o seu próprio corpo ou o seu olhar fotográfico evitam a todo o custo a palavra autobiografia, como se fosse algo redutor ou um discurso menos relevante, erudito e complexo. Vejo esse facto como uma espécie de preconceito que não acontece de todo na literatura, se pensarmos na ideia de autoficção por exemplo em Marguerite Duras ou a ideia concreta de autobiografia num autor tão recente como o Karl Ove Knausgård. Eu assumo essa categoria sem qualquer pudor ou reserva. Acho que um artista pode e deve falar do que conhece e muitas das vezes esse processo começa precisamente por si próprio. Claro que estes trabalhos são também reflexões sobre o tempo e uma certa ideia de mortalidade. Interessava-me a ideia de diário público, como uma exposição sem filtros, mas claro que isso é sempre e inevitavelmente muito subjetivo. Foram também feitos num período em que a fotografia digital se disseminou de forma mais acessível e democrática, aliás, ambos vêm de um vídeo mais antigo, o Sony Cybershoot (memory stick), de 2005, que se baseia também numa sucessão de imagens do meu arquivo pessoal, acompanhadas pela música dos Death in Vegas, que foi utilizada na campanha da Sony no primeiro telemóvel que eles lançaram com câmara digital de 2 megapixels. De certo modo, vejo estes trabalhos como precedentes do atual Instagram, que funciona como uma espécie de diário aberto / público, tal como o livro de artista de 1980 do Sol LeWitt, chamado precisamente Autobiography.
SP: Também durante estes anos iniciaste um momento “plástico”, que perdura, em que usas tabaco, nas suas mais variadas formas, incluindo as embalagens. Consegues recordar-te e descrever qual terá sido o teu primeiro trabalho em que a técnica era proveniente deste “grupo” de matéria que continuas a utilizar (tabaco)?
JL: A primeira vez que expus um trabalho que se relacionava diretamente com tabaco foi na primeira exposição individual na Galeria 111, em 2006. Foi o Calendário #1 e que era constituído pela coleção de todos os maços de tabaco SG Lights que comprei e que tinha guardado até aquela data. A peça em si, só foi materializada nessa data, mas enquanto work-in-progress existia desde que comecei a fumar e a guardar os maços, quando era mesmo muito novo.
SP: Uma pergunta inevitável, ainda fumas?
JL: Sim ainda fumo. Um maço por dia, todos os dias. Por vezes mais e raramente menos. Há qualquer coisa no número de cigarros num maço que contém a dose diária certa de nicotina. Se dividir um dia em 8 horas de trabalho, 8 de lazer e 8 de sono, às 16 horas que passo acordado, divididas por 20, dá 1.25 cigarros por hora. Sim, é conta certa para alimentar este vício que se mantém há 30 anos.
Detalhe de escultura em construção.
SP: Os cigarros, tabaco, beatas, … são uma constante no teu trabalho desde 2006 e como mencionaste. Entre 2006 e 2016, tens inúmeras obras todas criadas a partir de variações desta “matéria”. Vou isolar algumas que para mim são particularmente interessantes e sobre as quais gostava de saber mais e que apresentaste pela primeira vez na exposição One Hundred And Six Columns, Four Heads And One Table, Villa Concordia, em Bamberg na Alemanha: Untitled (Head #1 a #4) … O que exploras nestas obras?
JL: A série das cabeças de filtro são trabalhos figurativos em que a representação do corpo é menos literal do que nos vídeos, mas igualmente concreta, ligada ao real. Nessa residência na Alemanha, conheci um escultor que trabalhava como restaurador de peças do renascimento e que dominava todas as técnicas tradicionais clássicas de escultura em pedra, metais, moldagem em gesso, barro e cera. Com ele fiz um conjunto de moldes em gesso da minha cara e busto, e foram esses moldes que serviram de base para fazer as peças de filtros; no processo, enchi o espaço negativo do molde com a colagem dos filtros encontrados. Nestes casos, a maioria dos filtros eram de cigarros fumados por mim, não por uma questão conceptual, mas por estarem em melhor estado físico. Essa série tem muitas camadas de possíveis significados, que cada um é livre de interpretar como entender. Interessava-me o jogo formal com uma das categorias clássicas da escultura, o retrato, mas também o diálogo com a tradição funerária da death/mask, e, claro, a subversão do material usado, a ideia de repulsa, mas também de fragilidade.
SP: Untitled (Table) 2010-2011 é na minha opinião particularmente especial, e vejo-a de uma forma talvez romântica, como a mesa de trabalho e apoio à criação do artista. No entanto, devido à matéria/técnica que o artista/tu está a usar, esta analogia transforma-se numa provocação e provavelmente despoleta em muitos espetadores um sentimento de repulsão, como mencionaste no início desta nossa conversa. A minha pergunta inicial é simples; trata-se esta obra realmente da mesa de apoio do artista? E sendo esse o significado, quem é o artista que estás a introduzir/comunicar?
JL: Essa é uma excelente pergunta! São talvez esse tipo de questões que acho que um trabalho bem conseguido levanta, isto é, suscita-nos dúvidas mais do que nos dá respostas. Mas respondendo sinceramente, a mesa é praticamente idêntica aquilo que estava de facto no meu atelier durante os meses da residência. Ao transpor esse quase ready-made para o espaço expositivo, tinha em mente gestos ou ações precedentes similares como a transferência e mostra do estúdio do Lucas Samaras na Green Street Gallery em 1964, ou as peças monumentais do chão do estúdio do Dieter Roth, The Floor I (Studio-floor from Mosfellsbaer, Iceland), 1973–1992, e The Floor II (Studio-floor from Mosfellsbaer, Iceland), 1977–1998. O que me interessava aqui era explorar todos os pontos em que tocaste, nomeadamente um certo romantismo em relação ao espaço de trabalho do artista enquanto agente recolector, analista, processador e transformador de materiais e ideias. É também uma espécie de retrato abstrato, a forma como tudo o que vez está minuciosamente separado, organizado, identificado e catalogado; demonstra um cuidado tão obsessivo que talvez seja uma representação bastante mais fiel desse artista e isto em comparação com as peças das cabeças.
SP: Numa segunda instância, no início da tua carreira através do vídeo, e como referiste, exploraste com o teu corpo, ideias de repulsão e atração. Com estes trabalhos feitos de variações múltiplas de cigarros que por vezes tem representações e/ou temáticas “românticas” (clássicas se preferires, o busto, a mesa de trabalho…), sinto que estás deliberadamente a transferir a experiência (repulsão/atracão) que anteriormente exploraste com o teu próprio corpo, para o corpo do espetador…
JL: Concordo com a tua reflexão e faz sentido o que sentes. Mas não sei se essa transferência terá ocorrido de uma forma programática ou consciente. Talvez sim e olhando agora com algum distanciamento. Acho que as dicotomias estão muito presentes no meu percurso, a começar pela primeira exposição individual em que se podia destilar um conceito de vício e virtude. Sou do signo balança com ascendente gémeos, dois signos do elemento ar e que são por essência dicotómicos. É possível que tanto na arte como na vida esteja constantemente a tentar encontrar um equilíbrio ou síntese entre forças que se opõem.
SP: Na tua obra, há temáticas que eu diria que se auto explicam/inteligíveis, ou seja, que se inserem de forma orgânica, como acabas de mencionar com os “bustos”; também a mesa; outros autorretratos; representações de partes do corpo humano adulto, ou alusões “nostálgicas” a Portugal/e à nacionalidade. De onde surgem os fetos, chupetas e os bebés?
JL: Essa é uma pergunta de resposta complicada, mas vou tentar simplificar. Desde muito cedo, na minha infância, que me lembro de ver uma imagem de um feto humano, num livro escolar de Biologia ou Ciências da Natureza, como se designava na altura. Tenho quase a certeza que foi uma imagem do fotógrafo e cientista sueco, Lennart Nilsson, do livro A Child Is Born, publicada na revista Life em 1965 e que posteriormente foi amplamente divulgada. Essa imagem sempre me fascinou de uma forma inexplicável, muito profunda, embora na altura alheada das críticas feministas que depois surgiram: o isolamento e separação do feto da mãe, uma espécie de apagamento, como se a mãe/mulher fosse um objeto de gestação, e a posterior apropriação dessas imagens por movimentos antiaborto nos Estados Unidos nos anos 80. Independentemente destas leituras críticas, as imagens têm um valor científico objetivo, serviram para o desenvolvimento da disciplina de educação sexual, pelo menos aqui na Suécia (um país que já tinha legislação sobre o direito ao aborto desde 1938 e que passou a dar liberdade total de escolha às mulheres a partir de 1974) e são fascinantes, como ciência, independentemente de narrativas ideológicas e históricas. Uns séculos antes, esse mesmo fascínio e curiosidade deve ter levado o Leonardo da Vinci a fazer aqueles desenhos/estudos sobre o feto no útero que são igualmente, absolutamente maravilhosos. Ainda, mas muito mais tarde, no final do 2001: Odisseia no Espaço do Stanley Kubrick, há aquela imagem tão forte, tão visceral e plena de misticismo, como se o universo inteiro fosse uma energia de criação divina. Fiz muitos desenhos e pinturas na adolescência com esse motivo, coisas pseudo-surrealistas e ingénuas, mas precedentes de uma temática recorrente. Um dia perguntei a um amigo toxicodependente o que sentia quando usava heroína, ao que ele me respondeu que era uma sensação de calor e prazer absoluto, como ser envolvido num manto de proteção total, como voltar a estar dentro do útero da sua mãe. Lembro-me que essa resposta me tocou profundamente e senti uma grande empatia. Quando se pensa em representações ou alegorias da morte, a imagem da caveira é aquela que associamos de forma imediata. O que tento fazer com os trabalhos que mencionaste, é olhar para o oposto da representação da morte, o início da vida, a vida ainda antes de se nascer ou imediatamente após. Há uma teoria psicanalítica que interpreta os trabalhos do Edvard Munch como um retorno ao trauma do próprio nascimento. Que memórias auditivas são criadas antes de se nascer? Quando começamos a registar mentalmente as sensações de prazer ou de dor no nosso corpo? Quando inspiramos ar pela primeira vez? Quando choramos? Este são o tipo de questões que tenho em mente.
SP: O teu atelier (consequentemente muitas das tuas obras) é provavelmente um dos piores pesadelos para imensas pessoas que são antitabaco; em que a ideia do ato de fumar está diretamente relacionada com uma incursão na perturbação da saúde individual e pública, ou mesmo cujo entendimento dos fumadores é visto como criminoso por afetar o ambiente numa perspetiva mais global, assim como, ao se impor a “outros” indivíduos, muitas das vezes involuntariamente. Como geres estas realidades e adversidades?
JL: O meu atelier é um espaço sagrado de liberdade absoluta e só cá entra quem eu decidir convidar. Quanto ao resto, não tenho paciência para fundamentalismos! O antitabagismo em si é um movimento a que estou atento, por motivos óbvios, mas não me interessa particularmente, mesmo porque decidir ou não fumar é, e será sempre um ato de liberdade individual, como decidir comer chocolates ou beber café em vez de chá. Isso terá sempre de ser respeitado por muito que teimem em se opor. Uma coisa é haver legislação e proibições em espaços públicos, o que compreendo e aceito, outra coisa é o meu espaço privado e qualquer tentativa de ingerência na minha liberdade de escolha individual é absolutamente necessário resistir. Seria mais lógico simplesmente proibir a produção e venda de tabaco, mas isso nunca irá funcionar, há demasiado dinheiro em jogo neste negócio. Eu pela minha parte já planto as minhas próprias plantas de tabaco e espero um dia que deixe os cigarros só fumar cachimbo das plantas que cultivo. Evidentemente que acho horrível o descartar de filtros no espaço público e vejo essa ação irresponsável simultaneamente como uma metáfora e uma realidade concreta do modo como nos relacionamos e desrespeitamos o meio ambiente. Se não apago os meus cigarros no chão da minha casa e atiro as beatas para a sala, porque o farei na rua, na praia, no meu planeta? Os maus hábitos, como as mentalidades, são muito difíceis de se mudar, mas é possível e cada vez mais os fumadores têm consciência destes.
SP: Há trabalhos de vários artistas, em que as primeiras questões que me surgem estão imediatamente relacionadas com conservação e/ou restauro, seja esta enquanto o artista é vivo ou principalmente após o “desaparecimento” deste. Isto aconteceu-me com algumas das tuas obras, por várias e inúmeras razões:
1. As obras com cigarros ou tabaco, tem cheiro? Dás algum tratamento para atenuar o cheiro a cigarro?
2. No que respeita a conservação, existem alguns requisitos periódicos que as obras com cigarros exijam, ou está assumida uma degradação evolutiva natural?
3. Sugeres ou aconselhas algum cuidado específico a quem adquire uma destas obras? Ou, mesmo quando estão em exposição, existem algumas diretrizes ou sugestões a seguir?
JL: Quando levantaste a questão da transferência do sentimento de repúdio para o corpo do próprio espectador lembrei-me desta questão. De facto, há alguns trabalhos cuja componente olfativa faz parte essencial das peças, a mesa por exemplo, e aquelas peças circulares com as figuras dos bebés, Flying Angel / Falling Angel, 2013, e o The fall, 2013. Mas sou criterioso no uso do cheiro. Acho que funciona bem quando as peças estão totalmente isoladas, seja por camadas de cola ou verniz, ou isoladas em caixas de acrílico. O que acontece então é que a pessoa “imagina” o cheiro e nessa projeção pode haver ainda mais nojo ou repúdio. De certo modo estou a manipular as expectativas do público e isso interessa-me.
Em relação aos aspetos de conservação, tudo o que existe degrada-se, pois nada do que existe escapa à lei da entropia. No entanto, o material das beatas é papel e plástico. Existem papéis ou papiros desde o antigo Egipto, há séculos, e que estão muito bem conservados, basta terem as condições certas de humidade, temperatura e luz. Já o acetato de celulose, que é um tipo de plástico dos filtros, irá igualmente preservar-se, tal como está, pelo menos por 200 anos e se não for encharcado em água. Mas claro que com o tempo, tudo se degrada e isso é inevitável. Para os conservadores pode ser que seja um desafio interessante.
Quanto à última questão, nunca senti necessidade de dar nenhuma diretriz especial ou específica, a não ser coisas muito óbvias, que se aplicam a qualquer trabalho, por exemplo as telas pintadas com nicotina líquida, se receberem luz solar direta vão ficar mais castanhas, mas isso é um cuidado normal que o colecionador ou museu iria ter com qualquer outra pintura ou fotografia. Já em relação às peças com filtros elas são objetos sólidos, muitíssimo mais resistentes do que se imagina, e se o vidro acrílico se partir basta substituir.
SP: Agora e se me permites, um retorno ao romantismo, neste caso menos subjetivo. Talvez nas obras mais no início da tua carreira, referências e representas com alguma frequência o conceito “amar” ou simplesmente as palavras Amor/Love. Queres desenvolver alguma ideia sobre esta constatação indiscreta em forma de pergunta?
JL: Eu quero ser amado. Acho que toda a arte de todos os tempos e que existe desde sempre é sobre o amor, o sexo e a morte. Poderia escrever um ensaio sobre o assunto que me questionas e acabava por não conseguir dizer nada. Há coisas que não se traduzem em palavras. Talvez seja um pouco romântico, mas há uma frase que de certo modo resume aquilo que acredito sinceramente “The greatest thing you'll ever learn is just to love and be loved in return.”
SP: Como é viver em Klippan na Suécia?
JL: Os invernos na Escandinávia são desoladores pelo que o espaço onde se vive tem de ser uma prioridade. Viver numa localidade pequena tem todas as vantagens da vida no campo, isto é, muito espaço e qualidade de vida que nunca teria se vivesse no centro de uma cidade. Optar pelo campo é poder trabalhar e receber amigos, jardinar, ter a minha própria pilha de compostagem, apanhar cogumelos na floresta; é poder ir comprar ovos frescos a um vizinho que tem galinhas… ao mesmo tempo, obviamente que tenho todo o conforto da vida moderna e estou sempre online, e a distância física torna-se relativa. Além disto, também estou perto de Malmö e Copenhaga pelo que frequentemente vou “à cidade” ver exposições ou outros eventos que me interessam.
SP: Tens alguns projetos em curso, ou num futuro próximo, que gostasses de partilhar?
JL: Em relação a projetos futuros, toda a situação da pandemia veio alterar muitos planos que tinha, sobretudo pela impossibilidade ou dificuldade de viajar. Mas posso adiantar que estou a trabalhar em novos projetos, sobretudo para exposições coletivas confirmadas: uma com curadoria da Eduarda Neves, a apresentar no Porto, em Novembro, outra com curadoria da Inês Grosso e da Rosa León, a apresentar no MAAT em Lisboa, também em Novembro, no âmbito dos 20 anos do prémio EDP. A convite da editora Stolen Books, estou a desenvolver um projeto que irá ser um livro, mas ainda não temos nenhuma data específica para a publicação. Também estou a planear uma exposição individual com a galeria 111, no novo espaço em Lisboa, mas ainda não consigo adiantar uma data. Em relação à atividade aqui na Suécia, há umas semanas foi-me atribuída uma bolsa de trabalho de um ano, da Swedish Artist Grants Committee, o que me irá permitir concentrar na produção de um novo corpo de trabalho, sem ter de me preocupar tanto com constrangimentos financeiros, e que irei apresentar em data e local a definir em breve. Mas com isto da pandemia nunca a palavra "breve" se revelou tão vaga e incerta…