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JOANA APARÍCIO TEJO
13/04/2020
Joana Aparício Tejo (Évora, 1997) vive em Lisboa desde 2015, é licenciada em Pintura pela Faculdade de Belas Artes de Lisboa (FBAUL) e uma das responsáveis pelo festival SOMA 2019, que tem como principal objectivo estimular o encontro de diversas práticas artísticas através de uma mostra de exposições e eventos pontuais, desde concertos, performances ao vivo, conversas, sessões de cinema e escuta sonora.
Em 2019 foi selecionada para a 4a Edição do Prémio Millenium BCP Arte Jovem.
Por Catarina Real
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CR: Como sei de antemão que a construção colectiva tem ganho alguma relevância no teu percurso, ou nas tuas ideias, talvez me possas começar por falar do festival SOMA (realizado de 1 a 8 de Junho de 2019), que co-organizaste juntamente com Alexandre Alagoa, André Silva, Bernardo Ferreira, Beatriz Chagas, Carolina Fangueiro, José Maria Sotomayor, Madalena Anjos, Madalena Caramelo, Manuel Pedro Fonseca, Pedro Tavares, Tiago Santos e Zy: o que é, como acontece e de onde surge. No vosso texto de apresentação pode-se ler que “SOMA é um festival que visa proporcionar um encontro na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. O evento surge de uma vontade em repensar a Faculdade enquanto um espaço expositivo, tendo como principal objectivo estimular o encontro de diversas práticas artísticas. Assumido enquanto organização independente, sem quaisquer fins lucrativos, o SOMA consiste numa mostra de exposições de alunos, ex-alunos e artistas convidados. Conta ainda com eventos pontuais desde concertos, performances ao vivo, conversas, sessões de cinema e escuta sonora, a acontecer de 1 a 8 de Junho.", podes-me avançar um pouco mais sobre ele?
JAT: As pessoas que estiveram envolvidas nesse projecto foram decisivas para a forma como aconteceu. Éramos, os da organização, fundamentalmente pessoas que iam sair da Faculdade de Belas Artes nesse ano (2019) e a ideia que fez com que aquele festival existisse veio de uma vontade que esteve sempre presente em nós: tirar mais partido daquele que é o espaço por onde tantos artistas passam e fundam as suas práticas. O que fizemos foi criar um lugar para as coisas aparecerem, para que as ideias que tínhamos em comum pudessem ganhar formato físico, fossem elas exposições, conversas, ciclos de cinema, performances, concertos. Queríamos abordar o o diálogo no espaço em que o diálogo surge e de onde as coisas nascem.
CR: Vocês organizaram a primeira edição deste festival, era uma coisa que não existia?
JAT: Julgávamos que sim, mas não. Soubemos durante o SOMA que não era a primeira vez que existia um festival na faculdade, organizado por alunos, em formatos bastante semelhantes e com as mesmas directivas.
CR: Qual é o retorno que podes dar sobre a experiência de organizar o festival?
JAT: [risos] Havia uma dose de inexperiência e ingenuidade da nossa parte que contribuiu para que a experiência de organização não fosse muito boa. Mas tivemos muita ajuda e a aprendizagem acabou por ser óptima. Sentimos que foi um acontecimento bastante negligenciado, inclusive por parte da faculdade e das suas burocracias, o que foi um entrave. Sabíamos que teríamos de lidar com alguma resistência, e era também nossa motivação dissolvê-la, mas isto pôs alguns travões às nossas iniciativas e trabalho.
CR: Há algum momento que assinales como o ponto alto do festival?
JAT: Da minha parte posso avançar que as conversas foram muito importantes. Foram só duas, mas trouxemos pessoas que já não habitavam aquele espaço há muito tempo, ou nunca o tinham habitado, e isso trouxe-nos uma sensação de alcance. As conversas e as performances foram para mim os acontecimentos mais afirmativos dentro de todo o festival, pelo alcance, e pela reunião de ideias distintas num mesmo momento. No que toca aos nossos objectivos ou motivações colectivas, apesar dos vários constrangimentos, tudo poderá ser assinalado como ponto alto.
CR: Há no teu trabalho uma sensação de velocidade; o fazer com o que está mais à mão é uma questão de urgência ou de apaixonamento pelas coisas que são próprias ao quotidiano? Coloco-te esta questão pela presença de elementos como, por exemplo, a cortina de casa de banho, mas também de materiais “impróprios” ou “impuros” à pintura, à qual me parece que ainda estás vinculada disciplinarmente. Ao referir-to, lembro-me de gestos como os de Rauschenberg, a pintar em roupa de cama por já não ter outro suporte.
JAT: Tenho vindo a aperceber-me de que há um grupo de materiais sobre os quais o meu interesse recai, e que são recorrentes na minha prática, como é o caso da borracha acrílica. É um dos meus materiais favoritos - adoro-a! - porque, para além de ser impermeabilizante, é extremamente pastosa e tem um branco horrível. Esses grupos de materiais vão-se agrupando de tempos a tempos, fazendo pequenos núcleos que passo a explorar. Ao princípio são materiais que não conheço mas que me apelam, por alguma componente matérica, ou mesmo pela sua utilidade. Gosto muito deste tipo de particularidades das coisas que são úteis. A forma como os vou utilizando é muitas vezes ingénua, diria, no sentido em que o que me acaba por me interessar é perceber até onde é que podem ir, não obedecendo aos procedimentos correctos, ou tentando torná-los materiais de pintura quando não o são. Foi a partir do momento que eu compreendi que estes grupos de materiais me interessavam, e me esforcei por fazer deles um veículo para a pintura, que o meu trabalho passou a deixar de ser pintura, num sentido clássico. Ou continuou a ser pintura, mas deixou de estar tão preso a uma ideia de plano, e passou a ter volume, muitas vezes remetendo para um universo decorativo. E ficaram mais frágeis, o que me interessa muito também. Quando faço estes grupos de materiais acabo por me restringir bastante a eles, e é de uma maneira intuitiva que vou avançando no seu estudo, não sem alguma ingenuidade, porque é sempre a tentar que tudo dê um bocadinho mais de si.
CR: Ao mesmo tempo que pareces descrever um método científico, de perceber o alcance de cada material, testando-o até ao limite, me falas de uma cientificidade invertida ou improdutiva porque parece que desejas que todas as experiências falhem, de alguma forma, para que possas continuar a explorar esses materiais.
JAT: Exacto.
CR: Poderia também direccionar a questão à referência ao teu próprio lugar - e aí quotidiano ou comum entra também no sentido da excepcionalidade do indivíduo - com a referência a títulos de obras como “Intimicy Play” ou “From My Collection”.
JAT: Tenho vindo a aperceber-me melhor da importância da intimidade, inclusive com o espaço em que trabalho. A minha intimidade e o meu conforto, de uma certa maneira infantil que me é própria, são referências para o meu trabalho, e acabam por tocar nas noções de conforto e intimidade mais gerais, que nos pertencem colectivamente. Quanto aos títulos, quando atribuo títulos aos meus trabalhos penso sempre que cada título, para existir, deve servir para expandir a obra. Acho que se é para haver um título, este nunca pode ser restritivo. Muitas vezes é um certo sentido de paródia que cumpre esse alargamento e expansão da leitura das obras e ela serve-me para ir além de algumas barreiras que um título poderia implicar. É o que acontece com os títulos que referiste. “From My Collection” é um título que aponta para o decorativo, é o título que acentua a linha muito ténue entre aquela pintura em plástico e um objecto utilitário, como o é uma cortina de casa de banho. É o título que nos fala da riqueza daquela cortina. Foi uma ligação que eu achei interessante estabelecer com essa subjectividade sobre o que é precioso; se as coisas que nós usamos todos os dias e tomamos como nossas e que fazem o nosso conforto, ou se os emblemas em que as coisas se podem tornar.
CR: Qual a diferença entre as obras com título, ou que o merecem, para as outras obras, sem título?
JAT: É apenas a maneira como eu estou com elas. Há muitas obras às quais eu só dou títulos passado muito tempo, quando consigo criar alguma distância para com peças que foram postas no seu canto e das quais me afastei emocionalmente. Mas há muitas peças que acabam por não ter título e não é por elas me dizerem menos. Acho que diz simplesmente respeito à relação que eu crio com elas. Há sempre obras que são mais assertivas que outras e essas normalmente têm títulos. As mais silenciosas, as que não são tão exibicionistas, acabam por ficar sem título.
CR: Há também uma questão que eu identifiquei na tua prática. A Dobra. Algo que nos dá duas faces, que retira a pintura de um plano apenas de imagem (embora como tal permaneça) para nos dar duas perspectivas; um dentro e um fora; um direito e um avesso. Dobra é curiosamente o nome do livro da poesia reunida da Adília Lopes em 2014 e uma ideia pertencente ao universo deleuziano. Dobra é uma coisa que nos retira do plano único mas não é suficiente para nos dar ainda um objecto.
JAT: Talvez não a palavra, mas a imagem de uma dobra é algo que me vem muitas vezes à cabeça, como aquilo que possa ser um elemento simbólico, no que diz respeito a essa indistinção, na minha prática, entre a pintura e a escultura. Eu digo sempre que o meu trabalho é pintura, e a dobra é de facto um elemento curioso para vir ao de cima quando penso nisso.
CR: Achas que essas distinções ainda são pertinentes?
JAT: Acho que não, acho que não. Eu acho que penso em pintura, mas acho que esse tipo de restrições e limitações são muito pouco coerentes. Mas continuo a achar que penso em pintura. Simplesmente sou dessas pessoas que diz que pensa em pintura, mas não acho que as coisas tenham limitações disciplinares. No meu caso eu faço imagens, alegorias. E acho que isso cabe em qualquer meio.
CR: Em que sentido é que usas a ideia de alegoria?
JAT: Como uma alusão meio decorada e simbólica de qualquer coisa. Quando falo em alegoria, é alegoria a uma imagem tradicional, num sentido também paródico, enquanto recontextualização de conceitos. As minhas imagens - imagens enquanto proposta de imagem - são um bocadinho isso porque não são inertes, não são concisas, muitas vezes são muito confusas. Há muita coisa - o que se vem a acentuar nos meus trabalhos mais recentes - e no entanto o todo é muito fechado. É esse sentido de alegoria que refiro, esta coisa de usar muitos meios para falar de algo numa forma simbólica, que seria uma imagem. Mas também muito mais para além de uma imagem.
CR: Tenho alguma dificuldade em fazer perguntas, quando vejo o quanto algumas perguntas se tornam desnecessárias, porque ou estas se tornam comentários ou então, há outro plano de compreensão que é perdido, o da imagem em si. Os pontos de que falamos foram coisas que eu identifiquei na tua prática como essenciais, em correspondência, claro, com a minha forma de ler o mundo. Tens alguma coisa que assinales e que esteja presente quanto à tua prática que queiras partilhar?
JAT: Talvez a questão do "decorativismo", de que falamos brevemente, e que tenho vindo a reconhecer que esteve sempre comigo e que neste momento é um grande foco do meu trabalho. Foi muito interessante quando o comecei a perceber, principalmente pela resistência que ainda existe quanto ao termo, a blasfémia que é dizer que uma obra é decorativa. O que começou a interessar-me: o que é que poderia haver de tão negativo nisso?
CR: Há uma diferença, sobretudo nas palavras, e para mim acentuada, quando usamos a palavra formal e a palavra decoração, ou decorativo. O decorativo seria uma repetição que se esgota, qualquer coisa que aplicas e é desnecessária. Percebo o uso da palavra decorativo quando fazes uso de alguns padrões que são recorrentes, mas mesmo quanto ao que dizias de encontrar uma série de materiais, e de lhes esgotares as possibilidades, numa esquizofrénica relação para-científica, para mim não me parece um processo nada decorativo mas de compromisso com uma exploração formal.
JAT: Dentro do que é uma linguagem formal digo que a minha é decorativa pela imposição que faço a um material que não possui determinadas características a comportar-se como se as tivesse. Vamos imaginar: a tinta de óleo é concebida com determinados atributos e é o material de eleição para a prática da pintura. O que eu sinto muitas vezes é que com determinadas tintas, mais precárias ou menos nobres do que o óleo, eu quero pintar a óleo. Como se fosse óleo. Faço um esforço para que a precariedade de certos materiais alcance a nobreza de outros, replicando-lhes efeitos como, por exemplo, os empastamentos. Mas há uma dimensão “decorativista” nisto, porque parece que não devia ser aquele tipo de brilho, de textura ou de cor. E então está ali mas não devia estar, para corresponder à imagem da pintura a óleo que eu tento fazer, está ali mas devia estar outra coisa. Esta era uma crítica que eu ouvia imenso quando ainda estudava nas Belas Artes - e da qual eu gostava! Já não me interessava usar o óleo para fazer pintura a óleo, interessa-me usar a borracha acrílica para fazer pintura a óleo. Eu pinto com esse material. E aí há uma grande dimensão de... parece que o material peca por aquilo que está à procura , está e podia não estar. Uso decorativo neste sentido. A forma como comecei a explorar mais o “decorativismo” de que te falo passou também por ter interesse em fazer coisas que aludem ao universo prático, da decoração. Coisas que usamos para decorar os nossos espaços, roupa, a parte do nosso quotidiano pessoal e íntimo. E sempre de forma muito infantil.
CR: Infantil?
JAT: Ganhei um vício a essa palavra, mas não sei se é a certa. Uso-a porque olho para muitas coisas que faço, sobretudo as que faço de forma mais intuitiva, e elas vão sempre pegar em formalismos e figurações e imagens de coisas que parecem que têm uma ambiência muito infantil. E são ingénuas. Fui-me começando a aperceber disso, entre a pressa e o que está à mão, como dizias antes.
CR: Face à situação actual, tens alguma posição sobre o papel que o artistas podem vir a tomar, durante a quarentena, mas também no mundo pós-epidemia?
JAT: Tenho pensado que tudo o que está a acontecer pode criar espaço para um boom em termos artísticos, mas só o poderá ser se for assente na colectividade. E também na abdicação da autoria. Fundamentalmente, creio que há uma grande necessidade de solidariedade, não sei se o tipo de solidariedade a que se tenta aludir, e que a maior parte das pessoas é capaz de prestar e cumprir. Este episódio está a criar espaço para o reconhecimento da falta que as coisas fazem, em grande medida, coisas colectivas. Não só pela saudade que o isolamento traz dessas coisas mas também por acreditar na frescura com que elas poderão voltar. Para um panorama artístico e um “voltar à cena” rico, este terá de ser assente em ideias de colectividade e talvez de comunidade também.
CR: E vês-te a seguir por esse caminho, o da colectividade?
JAT: Provavelmente sim. É também fácil para mim de sentir, neste momento, um certo egoísmo no que toca ao desenvolvimento de trabalho artístico. Seja pela impotência ou pelas limitações. Quando tenho espaço para pensar de forma sã e racional, tenho muito essa vontade. Em trazer mais coisas de outros sítios para a minha prática e não ser tudo tão egocêntrico.