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LUÍS CASTANHEIRA LOUREIRO
20/07/2020
Luís Castanheira Loureiro (Coimbra, 1985) é Mestre em Arquitectura pelo Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra. Entre 2009 e 2016 exerceu actividade em Portugal, Lituânia e Suíça, mantendo em paralelo alguma produção crítica, sobretudo enquanto correspondente por Portugal e Suíça da entretanto extinta A10 New European Architecture (NL).
Fundou em 2016, com Ana Raquel Ruivo, a NO·NO Gallery*, que dirige actualmente. Até 31 de Julho é possível visitar a exposição "Leap of Faith", que refunda o projecto da galeria e apresenta o novo espaço.
Por Liz Vahia
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LV: Podes fazer uma apresentação do teu percurso e como é que chegaste ao contexto das galerias de arte?
LCL: Eu sou arquitecto. Trabalhei como arquitecto em Portugal, na Lituânia e na Suíça. Estas mudanças de país prenderam-se todas com questões pessoais, da mesma maneira que a abertura da galeria se prende com uma questão pessoal. Eu estava a trabalhar na Suíça, em Berna, e quando vim de férias no verão conheci a Raquel. Voltei para Portugal com uma licença sabática e o objectivo era estudarmos uma forma de voltarmos os dois para Berna. Mas fomo-nos apercebendo ao longo do ano de que isso seria muito difícil, pela área de actividade da Raquel, e que seria muito mais fácil eu voltar a exercer em Portugal como arquitecto. Entretanto, as condições de trabalho nos ateliers de arquitectura aqui em Portugal eram deploráveis. Ainda fiz uma experiência e trabalhei num atelier em Lisboa, mas despedi-me ao fim de três semanas. Montar um atelier por conta própria não era opção.
A galeria era um projecto, como tantos outros, que eu tinha na gaveta, e que provavelmente nunca iria arrancar, ou a arrancar seria muito mais tarde, e em que acabei por pegar como pretexto para me fixar cá. É claro que acompanhava a produção artística portuguesa, tinha algumas coisas também, embora não fosse propriamente um coleccionador, e tinha-me interessado sobretudo pela maneira como o mercado estava a mexer com a crise. Uma coisa que me parecia, por exemplo, era que a crise poderia tornar o aparecimento de novos projectos mais fácil, porque os que existiam teriam de se reconsolidar, se readaptar, e acho que nisso não nos enganámos, porque logo a seguir a nós apareceram uma série de outros novos projectos. É de resto muito provável que aconteça a mesma coisa agora. Mas foi uma decisão tão rápida que nem deu tempo para a Raquel e eu definirmos muito bem o que queríamos fazer. Não tínhamos uma ideia de programa nem certezas sequer sobre que tipo de projecto queríamos montar. Em virtude disso, o primeiro ano foi um bocado caótico, porque realmente a prioridade não foi a galeria, mas essa tal questão de ordem pessoal que motiva a sua abertura.
A determinada altura, no final do primeiro ano, fui percebendo que não só queria realmente montar um projecto de galeria num modelo clássico, como que me teria de dedicar a ela em exclusividade. Comecei a reestuturar o projecto, a pensar como é que ele seria dentro de um ano ou dois. No final de 2017 a galeria já não tinha muito que ver com o que tinha sido em 2016, e isto que está a acontecer agora vem ainda na sequência dessa reflexão. Foram entrando artistas novos, começámos a definir uma linha para a galeria e começámos também a pensar seriamente em investir num novo espaço.
LV: O antigo espaço foi como uma experimentação do vosso projecto?
LCL: Esse espaço surgiu porque nessa altura era a solução mais confortável, estava mais ou menos pronto, com mais ou menos condições de operar como galeria. A galeria para nós estaria ali em instalação durante um ano ou dois, ou seja, o objectivo era ver se do ponto de vista comercial podia funcionar, e reduzir ao máximo o risco. Durante os primeiros meses não fizemos nada com o espaço, depois fizemos obras mínimas tentando aproximá-lo da estética que tem agora, mas ainda dentro da ideia de fazer o mínimo por uma comunicação competente e eficaz do programa. Depois disso nunca mais investimos no espaço, porque tornou-se mais importante para nós pensar em novas instalações – o outro espaço tinha limitações quase impossíveis de contornar - e investir entretanto noutras coisas, sobretudo na internacionalização.
LV: Como se deu o salto para as feiras? E tinhas já artistas com quem gostarias de vir a trabalhar?
LCL: Nesse momento tinha algumas ideias muito claras sobre artistas com quem gostaria de trabalhar, mas seria absurdo tentar integrá-los num projecto que não estava bem definido. Num ou outro casos fui adiantando contactos, apresentando o projecto conforme seria em dois anos. Foi o que aconteceu, por exemplo, com a Ana Pérez-Quiroga, que acabou por entrar no final do ano passado.
As feiras surgem porque me pareceu, desde o início, que um projecto de galeria só faz sentido em Portugal, e neste momento em particular, se entendermos a galeria como um escritório a partir do qual fazes coisas. Isso sempre foi assim, sobretudo a um nível local, mas neste momento o mercado e a economia portuguesa não estão particularmente fortes e a sobrevivência de um projecto de galeria poderá estar em causa se não houver uma estratégia de internacionalização, de exportação. Para além disso, tens em paralelo um momento extraordinário de produção artística em Portugal. Tens uma geração incrível, um meio muito mais profissionalizado, tudo muito mais exportável. Temos sido muito bem recebidos fora, é-nos reconhecido muito mérito, muita qualidade. Então é juntar essa condição de alguma dificuldade em Portugal e utilizar Portugal como um ponto de partida, que é acessível, que é a tua casa, onde há bom tempo, há bons artistas, e exportar. E depois, claro, se isto é verdade para a consolidação do projecto de galeria também é verdade para a consolidação do trajeto dos artistas. O reconhecimento internacional é importante para o reconhecimento local, e o reconhecimento local abre novos caminhos para a projecção internacional. Há aqui uma lógica cíclica.
LV: Como surge o nome NO·NO? Uma dupla negação.
LCL: Este "NO·NO" para mim tem a ver com uma maneira de estar na vida. O que eu mais gosto na galeria é de estar próximo de um determinado ideal de vida, que em alguns momentos toca o anarquismo! A ideia de não dominar nem ser dominado. Visto de fora isso pode parecer contradizer muita coisa sobre o meio, mas na prática não podia ser menos verdade. Tens o teu trajecto, e se o fizeres bem ele não colide nem se sobrepõe ou é sobreposto por nada. Permite-nos promover uma ideia de hierarquia mais plana.
Por outro lado, interessa-me explorar temáticas que possam ser algo disruptivas e que sobretudo reflictam sobre questões sociais importantes. A arte para ser relevante tem que tocar essas questões.
Mas o ponto de partida do nome nem é esse. Algumas pessoas mais próximas foram sugerindo que mudássemos o nome da galeria para o meu nome ou para o nosso nome. A primeira hipótese seria absurda, porque embora seja verdade que o projecto artístico é dirigido sobretudo por mim tudo o resto é bicéfalo e há uma quantidade de coisas que são geridas quase em exclusividade pela Raquel. A segunda hipótese também não fazia sentido para nós, pelo menos neste momento. E então lembramo-nos de dedicar este novo momento da galeria à nossa filha, a Leonor. O nascimento da Leonor está profundamente interligado com os momentos mais importantes do crescimento da galeria e se calhar foi a forma que encontrámos de manter o mesmo nível de dedicação ao projecto, associando-o a ela. Todos os dias a Leonor vem à galeria e é muito compensador ver como gosta do espaço. Reconhece obras de alguns dos artistas (que são parecidas com obras que temos em casa), tem preferências óbvias e no geral parece saber que a galeria é dela. E é mesmo, naturalmente.
LV: Até final deste mês ainda podemos visitar a exposição inaugural da NO·NO, "Leap of Faith", com curadoria de Miguel Mesquita. Este título remete-nos para este momento de transição/transformação da galeria. É um acreditar com toda a certeza no projecto?
LCL: Ah sim, claro. A ideia do Miguel para a exposição, que nasce de uma série de conversas entre nós, é em grande medida a de projectar o estado de espírito que tem de estar por detrás deste tipo de gesto, o da montagem de uma galeria, ou no caso o da sua re-fundação. Uma ideia de crença inabalável numa coisa que, se demasiado escrutinada e usando princípios demasiado racionais, poderia ter tudo para parecer uma péssima ideia.
LV: A inauguração desta exposição – e da galeria – teve que ser adiada devido à situação da pandemia de Covid-19. Como é que viveram esse período de pausa no “salto” previsto?
LCL: O salto não deixou de acontecer, está é a ser um salto sobre redes de segurança que não tínhamos julgado que fossem necessárias. Estamos muito mais atentos às condições macro-económicas do que gostaríamos, estamos a avaliar de forma muito mais conservadora os investimentos e estamos constantemente a contemplar planos “B” para o programa. Mas o salto está a acontecer e está a ser um momento extraordinário para nós e para os nossos artistas.
Em termos mais práticos, a pandemia obrigou-nos a reflectir sobre questões que são agora óbvias para todos mas que não eram tão prementes antes e que terão seguramente continuidade depois da pandemia. A mais importante é a de endereçar uma fatia considerável do nosso público, que é uma fatia que por norma não visita o nosso espaço com regularidade, por não viver em Lisboa, ou no país. Passámos a complementar a nossa divulgação com vídeo de exposição, re-estruturámos o nosso site (e sobretudo o backoffice do nosso site) para tornar a comunicação com o visitante mais imediata, e tivemos muito tempo para pensar numa série de outras coisas. O período de pausa teve um universo de coisas boas, se bem que agora já podia acabar! O condicionamento continuado da economia, a partir de agora, vai ter consequências muito profundas e extremamente imprevisíveis. E desta vez as soluções de exportação poderão também elas estar condicionadas.
LV: Recebem contactos por parte de artistas que desconhecem, interessados no vosso projecto?
LCL: Nós recebemos muitas candidaturas, mesmo muitas, mas a única candidatura que retivemos em quatro anos foi a da Magda Delgado. Não é tanto por não considerarmos essas candidaturas, recebemos de resto artistas com muita frequência na galeria, mas é tão improvável que uma proposta acerte em cheio naquilo que estás à procura que regra geral não funciona. Um projecto de galeria é, ou pelo menos deve ser, uma coisa muito pessoal, e a melhor forma de garantir a sustentabilidade da galeria é usares a tua sensibilidade, a tua cultura visual e o teu gosto. Ou és bem-sucedida com essa premissa ou és mal sucedida. Não há mesmo outra forma de manteres uma ideia clara sobre o teu projecto.
Regra geral sou eu que acompanho o trabalho dos artistas. É muito importante para mim conhecê-los pessoalmente. Geralmente são pessoas com quem partilho ideologias de base, uma série de gostos e, não sendo isso necessário, tornamo-nos muitas vezes bons amigos. Este conhecimento anterior e estas afinidades são tão importantes que tento não me permitir a contorna-los (quando contorno sou não raras vezes recordado que a fórmula inicial era a que realmente funcionava).
LV: Queres adiantar algumas coisas do programa para o resto do ano?
LCL: Depois desta colectiva vamos ter a primeira individual do Carlos Mensil, e depois a primeira individual da Ana Pérez-Quiroga. O modelo das exposições será ligeiramente diferente neste período como forma de garantirmos a programação independentemente de avanços ou recuos na pandemia, pelo que estas duas individuais andarão muito próximas de project rooms. O uso do piso de entrada permite-nos trabalhar exposições em modelo visitável e não visitável e a escala das exposições é pensada para minimizar a dependência de fornecedores. Manteremos em paralelo uma colectiva, ou duas colectivas com trabalho recente dos restantes artistas da galeria e com alguns convidados. Durante o final do ano reavaliaremos se manteremos este modelo para o início de 2021.
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* Acervo entre 2016 e 2019. NO·NO a partir de 2020.