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ENTREVISTA


Rui Poças e Irina Popova na apresentação do livro Another Family, na 5ª Feira do Livro de Fotografia de Lisboa.



































Fotografia de António Saragoça.


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RUI POÇAS


Grande parte dos filmes que fizeram a história do cinema português contemporâneo saíram da sua câmara. Rui Poças está associado aos nomes dos realizadores que vêm construindo alguns dos mais importantes filmes nacionais. Aparte da sua carreira de director de fotografia, que o leva a viajar grande parte do ano, Rui Poças aventurou-se em 2010 num projecto ímpar de divulgação da criação fotográfica, a Pickpocket Gallery. A Artecapital foi falar com ele num momento decisivo para a galeria: o possível fecho, nos moldes em que tem funcionado, ou talvez um renascimento para outro formato.


por Liz Vahia e Victor Pinto da Fonseca


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LV: Trabalhaste com realizadores que construíram o cinema português contemporâneo, como Miguel Gomes, João Pedro Rodrigues... ou mesmo autores que vêm de outras áreas artísticas, como o André Murraças ou Miguel Clara Vasconcelos. Quase que poderíamos dizer que a imagem de um certo cinema português contemporâneo passou pelas tuas mãos. Conseguias caracterizar este cinema do qual és um dos criadores?

RP: O cinema português está neste momento, não sei se numa crise de identidade, mas num momento de grande transformação. Isso tem a ver também com o que está a acontecer no cinema no mundo inteiro. As circunstâncias da crise económica global, das dificuldades económicas, empurram também o cinema e as artes em geral para uma indefinição. Eu próprio não sei muito bem o que está a acontecer. Eu nunca me envolvi muito nas políticas do cinema e para poder responder-te a esta questão de uma forma assertiva, era preciso ter assim uma visão mais...


LV: Mas notas que há uma certa unidade nestes trabalhos dos últimos anos?

RP: O que acontece no cinema português e nos outros países também, é que cada autor tem a sua própria escola. É muito difícil encaixar os realizadores portugueses num grupo em que convivem vários autores. O cinema português tem essa característica, cada realizador ou cada autor tem a sua própria linguagem, o seu próprio estilo, e é difícil agrupá-los. O tipo de cinema que praticamos em Portugal tem a ver com a forma como os filmes têm sido financiados. É principalmente um cinema de autor, um cinema de “arte-ensaio”, como se chama noutros lugares. O que é muito interessante, pois o que se chama de “cinema comercial”, e que nalguns países é maioritário, aqui não foi o modelo corrente das últimas décadas. Muito do cinema que eu considero interessante, e que se fez cá, é fruto dessa circunstância. Para o bem e para o mal, houve durante alguns anos uma grande liberdade para os cineastas fazerem o tipo de cinema que eles acreditavam que era o cinema que deviam fazer. Isso foi um privilégio muito grande. Se o sistema de financiamento pode ter algumas fragilidades, também é verdade que este sistema permitiu que se fizesse um cinema muito livre. Podemos pensar, por exemplo, no [João] César Monteiro ou no João Pedro Rodrigues no ano 2000, ou no fundo, se pensarmos em todo o cinema português nos últimos 30 anos, ele só foi possível por causa disso. Viveu-se, e espero que se possa continuar a viver, a possibilidade de se fazer um cinema livre.

Nós temos esta coisa do “santos da casa não fazem milagres” e que é transversal a todas as actividades. Muitas vezes temos dificuldade em aceitar a qualidade dos nossos artistas, que estão aqui à porta de casa, que conhecemos. Não só há uma apreciação muito grande [no estrangeiro], como há um reconhecimento [dessa liberdade criativa]. Nalguns países onde esta possibilidade de um cinema com uma liberdade de expressão tão grande perguntam-me como é que é possível fazer esses filmes. O cinema é uma arte cara, e como tal tem tendência a exigir um controle de muitos agentes e as pessoas questionam-se sobre essa possibilidade em Portugal. É por vezes um tipo de cinema que as pessoas de alguns círculos não compreendem como é possível sustentar. Porque não responde prioritariamente a demandas “comerciais”.


VPF: As artes plásticas sobretudo as novas gerações de artistas e curadores interessam-se muito em fazer análise documental, ligações entre o texto e a imagem, colocando-se eles próprios como sociólogos e antropólogos, que tanto gostam de analisar e classificar. O cinema no entanto parece-me mais objectivo, de atrair a atenção das pessoas, por não poder deixar de se concentrar mais na componente visual.

RP: Se há uma crise do cinema ela tem a ver com a crise do lugar do cinema. O cinema passou a ser consumido de outras formas. Há uns anos só se podia consumir cinema no seu “templo”. Hoje temos um conceito de cinema bastante diferente. A forma como consumimos começa também a perder alguns dos seus rituais, muda-se o relacionamento de quem consome com o objecto. Há uma contaminação das outras artes com o cinema e um dos futuros do próprio cinema até pode ser esse. O cinema pode sobreviver em galerias, por exemplo. Podemos imaginar um cenário deste tipo, em que os cineastas podem continuar a produzir cinema porque o fazem também para um público da cultura e das artes num contexto diferenciado, que não é exactamente o do cinema narrativo, das salas... Hoje acontece muito convidarem-se cineastas para fazerem peças. De alguma forma, isto leva-nos a pensar que o cinema, na forma como o conhecemos durante 100 anos, pode morrer, ficar moribundo, mas ele pode vir também a sobreviver num movimento de transformação deste tipo. O cinema-arte, não o cinema-espectáculo, claro. Esse outro encontrará outros caminhos.


LV: Há um revivalismo de certos formatos de película, um regresso à materialidade do meio.

RP: É normal, isso tem a ver com o consumo. Também se anunciou a morte do livro e do vinil... O que é interessante nesta questão para mim é que de alguma forma é muito difícil que o cinema no século XXI tenha um retrocesso, volte ao lugar onde estava. Ciclicamente aconteceram grandes mudanças. Quando apareceu a televisão houve uma grande crise no consumo do cinema, as pessoas deixaram de ir às salas. Aí era uma coisa que tinha a ver com uma alternativa, mas era só uma (hoje temos muitas). Houve uma reacção por parte da indústria do cinema, apareceram os formatos grandes, o cinema scope, as cadeiras que abanavam... que acabou por dar um impulso tecnológico ao próprio cinema. Mas é difícil que isso volte a acontecer, que o consumo volte a ser idêntico ao que era antes.


LV: Vai tornar-se cada vez mais uma experiência individual?

RP: Isso é o que está a acontecer com tudo o que é comunicação. E com a arte também. Temos uma oferta muito grande e quase que temos um consumo um a um. Uma das preocupações que tive com a galeria Pickpocket, mesmo ao nível de espaço, foi pensar que em 2012 não faz muito sentido levar as pessoas a ver fotografia a um espaço, a atravessarem a cidade, se elas o podem fazer a partir de casa e de uma forma melhor. Ou seja, tens que dar mais qualquer coisa, um motivo que leve as pessoas a visitar um espaço físico especifico.


VPF: Tinhas associada uma programação de conversas, não tinhas?

RP: Tinha. Chamavam-se “Conversa com o Fotografo”. Uma das coisas interessantes no espaço, que aconteceu logo desde o início, era as pessoas deixarem-se ficar por lá em fóruns espontâneos, conversando com desconhecidos, tendo-se criado muitos grupos até (há pessoas que se conheceram ali e que hoje trabalham juntas). Curiosamente, e isto é uma ironia, o espaço é muito pequeno: rapidamente se vê a exposição e como mentalmente há um esforço grande para lá ir, pois a galeria não fica num local central de Lisboa, as pessoas acabam por ficar por lá a conversar um pouco (não há muita coisa ali à volta tão pouco). Para mim, o valor da galeria não tem tanto a ver com as paredes, mas com esse lado de interacção pessoal que acaba por se proporcionar. Eu não promovi isso planeadamente, foi uma coisa espontânea. Foi algo que eu não esperava, tal como não esperava ter aguentado o projecto Pickpocket tanto tempo. Surpreendi-me com a resposta e reacção das pessoas, que mostraram que não se importam nada se o espaço é rico ou se tem um glamour statizante.. que era uma mania de Portugal até há muito pouco tempo. Uma das razões porque fiz a galeria naquele espaço foi precisamente para contrariar esse lugar comum. E verifiquei cedo que foi aposta ganha. Também não tinha meios para fazer um espaço “pipi” se quisesse, mas de qualquer maneira não era essa a ideia inicial. Quando abri o espaço tinha chegado há pouco tempo de Berlim e achava que Lisboa precisava, e continua a precisar, de espaços deste tipo, mais “descomprometidos”. Já começa a haver espaços, mas muitas cabeças ainda estão lá atrás!… Na altura havia outra coisa que sempre me irritou e à qual quis reagir, que era alguma postura de superioridade ou de status, de elitismo que eu sentia nos locais da arte em Lisboa. Para mim, na verdade, era relativamente fácil montar um projecto destes: eu não sou galerista, não sou marchand de arte e na verdade nem sequer sou fotógrafo. Por isso não tinha nada a perder, só tinha a ganhar - podia, com a galeria, fazer o que me desse na cabeça. Porque não tinha satisfações a dar a ninguém. Também me interessava fazer outra experiência: criar um espaço com características particulares que não existia nesse momento, num gesto de contra-corrente: Primeiro, estavam a fechar tudo o que era galeria de fotografia. Quando abri a galeria ainda havia a Pente 10, mas logo deixou de existir. A certa altura e durante algum tempo a Pickpocket era a única galeria de fotografia no país inteiro. Depois, num momento de crise nacional (estamos a falar de 2010), e no meio da corrente da psicose da crise económica, com as pessoas a irem embora de Portugal, etc, fiz mesmo questão em fazer uma coisa à revelia: “espera aí, vamos é fazer o contrário”. E abrir de outra maneira, ter um espaço com outro ADN. Se não era com dinheiro, era concerteza com outra coisa. Com a vontade de fazer acontecer de outra forma. - Acabou por ser isso que me fez correr este tempo todo, saber que era possível fazer muita coisa com poucos meios e muita vontade.


VPF: Tinhas uma carteira de artistas que querias convidar para esse primeiro ano?

RP: Não. Eu não tenho nada a ver com isto da arte contemporânea, e foi completamente extemporânea a decisão [de abrir a galeria]. Foi até mais um acto de exorcismo burguês. Eu tenho miúdos pequenos e quando chega a Julho tenho sempre que fazer férias, por causa da escola. Em 2010 tinha as coisas planeadas de forma a cumprir umas férias tranquilas ao nível do sonho da classe-média. Acontece que de repente tenho uma surpresa desagradável do ponto de vista económico, sobressalto comum para freelancers como eu, e vejo-me forçado a repensar a temporada: aí troco o hotel das mordomias pelo campismo do chão duro. De repente, até que não era mau para os miúdos, que nunca tinham acampado. Mas ao fim de poucos dias já estava farto e queria era ir-me embora. Via as auto-caravanas e as roulotes a passarem e achava que aquilo é que era. Acabei as férias a sonhar com as auto-caravanas e a sua mística de liberdade. E no regresso a Lisboa passo casualmente por um stand de estrada cheio de caravanas e interrompo a viagem para o ver. Estava a sonhar e a fazer contas à vida quando vejo assim ao fundo de um corredor dos carros uma estapafúrdia mota dos anos 1960. Tinha um design tão feio, tão feio que achei maravilhoso. Fiquei completamente apaixonado pela mota, que estava para venda, restaurada e impecável. Já não queria ver mais autocaravanas. Vim para Lisboa e fui pesquisar sobre essa mota estranha. E cada vez mais se me apoderava mais de mim a vontade de ter aquela mota, num ataque de fetichismo e num momento muito inoportuno para isso da minha vida. Durante 3 dias consegui inventar para mim imensas justificações para comprar a mota. Mas in extremis, deu-me uma coisa do género “o que é que estás a fazer? Isto é um disparate, um capricho completamente burguês, materialista, tonto.” Seria um objecto para ficar parado, sem uso. Para eu ficar a olhar para ele e utilizá-lo raramente, uma vez ou outra. Esta história da carochinha serve para dizer que decidi mesmo não comprar a mota e com esse dinheiro que tinha acabado de inventar fazer outra coisa que fosse no sentido contrário, mas não sabia ainda o quê! Estávamos em meados de Agosto e um dia passo na feira da ladra. Ao descer uma rua pela qual nunca tinha passado vejo uma loja fechada há anos, e deu-me um impulso. Não tinha ideia de galeria nenhuma na altura, mas deu-me vontade de ver o espaço. Liguei, fui visitar o espaço, perguntei quanto é que era. Disseram-me um valor e eu ofereci metade, naquela “seja o destino a decidir”. Telefonam-me no dia seguinte a dizer que aceitavam a metade do preço. E de repente, tenho um contrato a fazer para um espaço em pantanas e não tenho nenhum projecto para ele. No último dia de Agosto estou a assinar o contrato. Entretanto, começam a aparecer sinais de que poderia ser uma galeria e um deles é a razão de ser da exposição que está actualmente na galeria. Dia 1 de Setembro meto a chave à porta e digo a mim mesmo que vou abrir uma galeria em 30 dias. Uns meses antes tinha estado em Berlim e achava que era boa ideia abrir um espaço despretensioso e “free style” como alguns que eu tinha visto. Dia 1 de Outubro abri com 2 salas e 2 exposições, uma de polaroids e outra de found photography. Desde o início da actividade da galeria que estava disposto a fazer sempre que pudesse coisas fora do formato tradicional de mostrar fotografia e até de mostar trabalhos de não-fotografos (existe?). Para a primeira sala quis fazer um projecto em polaroid e convidei uma amiga em Paris que fez um trabalho especifico para a inauguração. Na outra, tratei uma colecção que eu tinha de imagens achadas, que ampliei e fiz uma instalação com o espaço negro da galeria e uma iluminação específica. É a minha especialidade. Não se percebia bem o espaço, as imagens saíam da sombra e o percurso era determinado na sala por acidentes autónomos das imagens. Apareceu muita gente na inauguração, correu muito bem. Com um espaço pequeno, a rua ficou cheia, o que passou a caracterizar a própria galeria desde aí. Tentei sempre fazer desde o início um projecto site specific e oferecer ao público mais do que apenas as imagens.

Sempre me interessou desde a primeira hora ter a par dos fotógrafos [profissionais] também trabalhos do homem do talho ou do carteiro. Nunca me foi muito difícil fazer convites a pessoas. A Pickpocket teve no meio destas 65 exposições até agora algumas de pessoas que nunca sequer tinham pegado numa máquina fotográfica. Esse tipo de projectos sempre foi o que me deu mais entusiasmo: não procurar o convencional. Obviamente que apenas me interessavam as exposições com um conceito. Nunca quis fazer apresentações de portfólio. Para isso há o Flickr na internet. Procurava projectos com uma ideia, de preferencia que não fossem também projectos com os materiais prontos a chegar e montar, mas projectos com uma intenção e onde se pudesse trabalhar a concretização no espaço especifico da galeria ou até o próprio conceito - e metade das exposições foram assim. Para mim, a actividade e o cunho de uma galeria é mais do que uma escolha de autores. Se for só isso é um pouco desmotivante. A mim uma das imensas coisas que me motivou nas actividades da galeria foi essa seleção e também alguma proximidade na criação dos artistas das instalações feitas na galeria. A Pickpocket sempre foi um espaço de total liberdade e incentivá-lo era uma das minhas responsabilidades.


LV: Tinhas um interesse em receber projectos que dificilmente estariam em exposição noutros sítios?

RP: Desde o inicio me interessei por projectos mais marginais, no sentido em que dificilmente poderiam ser expostos noutros locais, pelo seu lado mais provocador ou até libertário, porque eram site specific ou porque simplesmente estavam longe de ter qualquer interesse “comercial”. Ainda hoje me parece mais estimulante fazer esse trabalho. De resto, existem espaços com vocações diferentes que aprecio, mas que francamente não tenho know how para seguir o modelo, nem tão pouco uma rede nem os meios para fazer esse trabalho tão especifico e dificil que é manter uma galeria nos moldes supostamente esperados: com vendas regulares, carteira de clientes e promoção musculada dos seus artistas.

Uma coisa que foi acontecendo e pela qual tenho muita estima foi alguns projectos terem seguido para outros espaços, depois de concebidos para a Pickpocket. Alguns eram mais complicados de isso acontecer, até porque foram feitos especificamente para as paredes da galeria e dificilmente encaixam num outro local. Uma coisa que me agradou e surpreendeu sempre durante estes anos foi essa capacidade das pessoas que lá expuseram de tentarem tirar o máximo partido dos poucos recursos que a galeria proporcionava, e isso também devido ao facto de eu não ter capacidade de produzir as obras.

Uma das características da galeria nos primeiros anos, o modo como ela era administrada, prendia-se com uma das dificuldades que eu tinha: a minha disponibilidade de tempo e o compromisso de fazer uma exposição de 15 em 15 dias. Devo dizer que cumpri esse objectivo doido no primeiro ano, em 2010, com 25 exposições. E mantive um ritmo parecido nos anos subsequentes. Nos primeiros tempos, antes de ter uma colaboradora a tempo inteiro, resolvi a questão da manutenção do horario de abertura da forma mais simples do mundo: deixando a responsabilidade da abertura da galeria na mão dos artistas (e de alguns voluntários, amigos da galeria). Isto permitiu logo desde o início dar um cunho especial à galeria, pois qualquer pessoa que lá fosse tinha a possibilidade de falar directamente com o artista que expunha, de forma descomprometida. O próprio artista podia ou não dizer que era o autor do trabalho a quem visitava a galeria, aproveitando para perceber a reacção das pessoas. Quando eu digo que as pessoas iam ficando e falando, também muito se devia a esta particularidade, uma vez que os próprios artistas se empenhavam em convidavar e receber pessoalmente o público, o que faz muita diferença.
Eu nunca quis pensar sériamente a galeria como um stand de vendas, porque até nem é essa a minha profissão. Para que é que me ia meter numa actividade tão complicada sem saber nada dela? E o tipo de pessoas que eu ia convidar não iam vender nada de qualquer maneira, por isso não podia ter pretensões a grandes vendas e nunca foi esse o objectivo prioritário da galeria. Esse reconhecimento libertou-me para a escolha dos artistas a convidar, no tipo de trabalhos a apresentar e no próprio público-alvo. No inicio, eu próprio tinha dificuldade em assumir que a Pickpocket era uma galeria, apesar de ostentar esse nome.


VPF: E esta próxima exposição que tens pensada?

LV: Está ligada também à génese da própria galeria, certo?

RP: No Verão de 2010, quando estava naquele processo de expiação da tentação materialista que contei, telefonou-me uma amiga a pedir-me uma opinião. Tinha em casa uma caixa com milhares de negativos, neste caso do pai, e me pergunta-me o que podia fazer com aquilo. Fui ver a caixa e fiquei impressionado: eram muitos, em medio formato e tinham muito bom ar. Naquele impulso de aceitar o que o destino me estava a oferecer, fui logo buscar um scanner de negativos e tratamos de começar a digitalizar aquilo tudo. Para testar o scanner acabado de comprar, peguei num negativo ao acaso e apareceu-me uma imagem de uma saída de um casamento à porta de uma igreja. O pai da minha amiga foi fotógrafo numa povoação pequena no Alentejo. A imagem scannada era um clássico de fotografias de casamento, com os noivos orgulhosos a saírem da igreja os convidados à volta - dava para perceber de imediato que se tratava de pessoas humildes a fazer um certo esforço de compostura - e de repente apercebo-me que algumas delas não têm sapatos! Fiquei imediatamente interessado em ver as outras 4 mil imagens! Acontece que o António Saragoça tem uma imensidão de fotografias que contextualizadas são de um valor extremo. Desde logo, por causa da época da maior parte das fotografias: inicio dos 60. Na altura ele era um jovem que percebeu a oportunidade de ganhar algum dinheiro tirando fotografias tipo passe, porque as pessoas tinham que ir a Évora, que ficava longe, para fazerem uma fotografia. Ele percebeu isso e comprou uma máquina fotográfica. Revelava em casa e fazia algum dinheiro. Começou por fazer fotografias tipo passe, mas depois já eram os batizados... e de repente era o fotógrafo informal da vila. O que salta à vista nas imagens é uma qualidade fantástica, que é um nivelamento do olhar: o retratado e o fotógrafo estão no mesmo nível, o olhar para a câmara é o de quem conhece aquela pessoa, vive com ela. Não são fotos de familiares, é toda a aldeia. Há uma coisa muito franca, as pessoas não arrumam nada, não fazem uma pose, não escondem a sua vida. É um trabalho duríssimo, por um lado, e também muito genuíno. Como eu vejo, o fotógrafo não tinha nessas fotografias um ponto de vista superior, como grande parte da fotografia documental que é um pouco “Vamos documentar a vida animal”. Isso impressionou-me e entusiasmou-me bastante. Há um interesse sociológico que se pode ver nessas imagens, mas também, para mim, mais importante ainda, um humor e um olhar não só cândido, mas com uma graça que é muito rara de encontrar. Durante muito tempo quis reservar o António Saragoça para fazer uma coisa em grande, porque achava que ele merecia. E poderia ser um projecto interessante, com a devida contextualização. Talvez um livro, até. Mas não chegou a acontecer. Ainda. E agora que a Pickpocket vai encerrar um ciclo de vida, faz todo o sentido terminar com este trabalho que mostra um Portugal pobrete mas alegrete, e também num gesto a la Vivian Maier, com a mala que deu um empurrão para a criação da Pickpocket.


LV: E as edições Pick, como é que surgiram?

RP: A ideia surgiu natural e gradualmente. Em 2011 cheguei a fazer uns catálogos de algumas exposições. Pretendiam cumprir o registo da existência das exposições e dar um pouco mais do que isso, mostrando, em complemento, outros trabalhos dos mesmos autore. Eram pequenas publicações que tentava que fossem acessíveis, mas ainda assim, não o eram tanto, considerando a fraca procura, embora de muito interesse para os próprios artistas. Nessa sequência pensei, à imagem da própria galeria, se não podia fazer uma coisa que fosse mais low fi, ou seja, tal como a própria galeria, que é pequena nas suas dimensões e que é um pequeno investimento para uma pequena bolsa. O que eu pensei então foi nas coisas que se faziam nos anos 80, as fanzines, produções populares em fotocópia. Foi com essa ideia que comecei a fazer estas zines. Continuo a chamar-lhe zines para lhe retirar o lado pretencioso e por serem produzidas num processo idêntico às zines dos anos 80. Não têm texto, não têm nenhuma palavra a não ser o nome do autor, basicamente, o conceito é a imagem a valer-se a ela própria. E depois pouco importa se o papel é bom ou mau, desde que a imagem esteja bem impressa. Um objectivo fundamental foi de ter um preço acessível (custa 4,00 euros). Com estas Pick desisti de fazer o catálogo “documental” e as zines passaram a ser um objecto complementar às exposições e até independente. Ou seja, o artista tem a exposição na galeria e a possibilidade de ter um trabalho complementar, que pode ter ou não a ver com a exposição. Desisti da ideia de perpetuar ou prolongar a existência da exposição em direcção a uma outra coisa, que é um objecto que vive por si. Mesmo depois de fechar a galeria, tenciono prosseguir com a publicação da Pick e estou a preparar os próximos números. Tenho pensado também iniciar outros formatos, agora que este está já consolidado. O facto de estar a terminar a aventura do espaço em Santa Apolónia não significa que vá abandonar alguns projectos iniciados. Como as Pickpocket Editions e uma outra coisa mais radical: uma câmara fotográfica (não-digital) chamada Pickpocket, numa série limitada construída de raiz em Portugal.