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INÊS BRITES
07/09/2020
Inês Brites, nascida em Coimbra em 1992, vive e trabalha em Lisboa, ocupada entre recolhas virtuais e não-virtuais de objectos e imagens que constituem a sua grande colecção. “É uma colecção de objectos que não têm utilidade nenhuma ou que deixaram de fazer sentido para as outras pessoas”, diz a artista, que colecciona “coisas” desde que se lembra. Afirma que a sua relação com os materiais vem deste coleccionismo e da banalidade das coisas. A Artecapital conversou com ela via videochamada para saber mais sobre os seus processos, obra e visão sobre a actualidade.
Por Catarina Real
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CR: Achei muito engraçada a descrição que fazes do teu trabalho como uma loja de segunda-mão. Podes falar um pouco mais sobre esta analogia?, como forma de introdução às tuas dinâmicas e processos de trabalho.
IB: Descrevo assim o meu trabalho porque coleciono coisas desde que me lembro. Tenho uma vasta colecção de pedras e foi por adoptar uma pedra que comecei a colecionar coisas. Vou guardando itens que me chamam, de alguma forma, à atenção. De pedras passei para coisas na rua, como matérias brilhantes ou materiais estranhos. Depois fui incluindo ofertas de amigos que encontravam esse género de coisas e guardavam para me oferecer. É uma colecção de objectos que não têm utilidade nenhuma ou que deixaram de fazer sentido para as outras pessoas.
CR: Queres contar melhor a história dessa pedra que adoptaste?
IB: Quando andava na escola primária, encontrei uma pedra… completamente banal, mas muito branca e redonda. Quase um ovo, muito polida. Na altura tinha uma caixinha com uma joaninha em madeira que esbracejava e a joaninha tinha-se partido. Substituí-a por essa pedra e, não sei porquê, passei a chamar-lhe Brocas. A pedra Brocas passou a andar sempre comigo. Era como se fosse o meu animal de estimação. Ou como um tamagotchi, porque nunca cheguei a ter um.
CR: Também nesse statement falavas da relação entre o excesso de estímulos e as coisas a que já não damos atenção, mas que tu selecionas para dar atenção. Acho que isso que dizes aqui, olhando para o teu trabalho, é o que gera muitas coisas. Tens um discurso - e discurso também no sentido de imagem - que é muito pertencente às dinâmicas da virtualidade, onde há esse excesso de estímulos, mas complementado por estas colecções de coisas inúteis.
IB: Vejo as coisas como uma colecção também. A nossa geração cresceu com esta dualidade da realidade das coisas físicas e da realidade das coisas virtuais. E também eu, desde sempre, colecionei imagens. Pastas e pastas de imagens, que iam sendo organizadas por categorias diferentes, que coleccionava, retiradas da internet. O virtual esteve sempre muito em mim. Coleciono de maneira física e virtual.
CR: Uma realidade diferente em que o processo de acumulação é o mesmo?
IB: Sim. Vejo um pouco estas colecções, ou esta colecção no seu todo, como um vício. O vício de guardar e tentar não perder... tentar não perder esses estímulos visuais. Tentar continuar a lembrar-me, a guardar e a cuidar. Até com estas imagens, que nunca apaguei, e que continuo a guardar em discos rígidos.
CR: Escolhi dois trabalhos para podermos falar a partir deles, fazendo uma espécie de pergunta que se relaciona com o que vi mas também com uma grande característica que eu vejo no teu trabalho e que é mais ou menos transversal a uma geração, que é a articulação da vida “real” e da vida virtual e dos diferentes ou semelhantes significados que as coisas tomam nesses universos distintos. Escolhi estes dois porque me parecem ser bastante exemplares dos traços ou grandes linhas de acção presentes na tua prática. Peço-te que me fales um pouco do que é o trabalho para que depois possamos avançar nas questões que eles trazem. O primeiro é o “Destroy Youth-issue”, de 2020.
IB: Essa é uma publicação, realizada juntamente com sete outras pessoas, e foi agora lançada virtualmente durante o período de quarentena. A ideia surgiu do Ruben Falcão; ele convidou este conjunto de pessoas, formando uma espécie de colectivo, que vai lançando estes issues. Vamos lançar vários, ainda sem periodicidade definida, mas sempre em torno de um tema em particular. Este “Destroy Youth-issue”, que partilhei contigo, era centrado no Amor. O que fiz foram essas imagens, que dão a minha visão do amor.
Eu sempre escrevi muito, mas há alguns anos que estava bloqueada na escrita. Há uns meses recomecei a escrever e passei a ver a minha escrita como uma síntese. Uma escrita que é sintética, mas também é poética. Neste issue parece que a minha escrita é contrária às imagens que crio. Faço associações com o mar, enquanto falo de nós, das pessoas, e de como olhamos o amor e o desamor. As imagens, por outro lado, são irónicas. São feitas a partir de recolhas de fotografias da internet, com referentes sobretudo comerciais. São coisas de alguma forma superficiais, as que aparecem nas imagens. O que está na profundidade das coisas será aquilo que aparece no texto. Acho que ninguém sabe falar sobre o amor... nem eu na verdade.
CR: Falamos de um ponto de vista individual, da experiência que temos.
Não é de propósito mas tenho aqui este livro da Eva Illouz, “Why Love Hurts”, onde ela - fazendo uma descrição abusivamente generalista dos seus tópicos - fala também da hipersexualização das relações, promovida pelo capitalismo através de indústrias como as do cinema ou da publicidade, o que levou, a partir do seu advento, a uma maior dificuldade em criar laços afectivos. A angústia que isso provoca alimenta um sistema de consumo, diz-nos. Este trabalho posiciona-se como um espelho disso, desse desejo e angústia?
IB: Sim. Por exemplo, aquelas imagens de almofadas que podem ser usadas para fazer uma conchinha mais eficaz quando dormes com uma pessoa... Gosto de pesquisar este tipo de coisas no Ebay e na Amazon. Sou bastante viciada nestas pesquisas. São muito despersonalizadas e parece que subvertem o sentido original das coisas... ou seja, quando estás a dormir com alguém não estás a pensar como é que podes melhorar isso. Eu, pelo menos, não penso. Esse acto de dormir com alguém é tão íntimo, e tão próximo, que tu queres é estar a tocar ao máximo nessa pessoa. E é estranho ser criada esta almofada que torna este momento funcional.
CR: Até vejo esse exemplo como uma coisa útil, de alguma forma.
IB: Exactamente, há essa dualidade! Deixas de estar em contacto com a pessoa com quem dormes, mas ao mesmo tempo permite que durmas melhor ao lado dela. Eu acho muita piada. Ou, outro exemplo de almofada, que finge ser um abraço. Uma almofada com que dormes e que simula essa presença de alguém abraçado a ti.
CR: Tens mais algum exemplo deste tipo de objectos e imagens que pesquisas, algum exemplo particularmente caricato?
IB: Sobre este assunto em particular talvez não, mas tenho outras coisas... como casotas para cães que parecem sofás e exemplos do género.
CR: Outra peça que tinha apontada para falarmos é “Ser E.T. Não É Um Problema” de 2019, porque tem um título particular - e gostava que me falasses também sobre a dinâmica de escolha dos títulos -, mas porque é também exemplar de um grande corpo de trabalho.
IB: Os títulos vêm de várias formas. Normalmente é a última coisa que faço, que atribuo, depois de já ter o objecto feito. Alguns tornam-se uma espécie de instruções. Na mesma exposição onde apresentei essa peça, apresentei também “Varra A Sua Complexidade Para Debaixo Do Tapete”, e esse é um título que é uma instrução, como há vários. Tenho inclusive em stand-by uma ideia para fazer um livro de instruções, irónicas, que falam um pouco da relação entre pessoas. Os outros títulos, relacionam-se com as peças, em si. Esse que apontaste, em particular, vem da forma e da cor, como uma declaração de que a estranheza não importa.
CR: E como é que tudo se articula com as matérias, como o silicone e a cera, que são também uma recorrência?
IB: Como hei-de começar... A minha relação com os materiais vem, como falámos, do coleccionismo e da banalidade das coisas. Sempre tive um interesse na aparência das coisas entre o estado sólido e o líquido, e a ilusão ou engano de uma coisa que é sólida ser líquida e vice-versa. A cor esteve sempre igualmente presente. Até pela maneira como me visto isso é visível [riso]. Sou muito eu.
A determinada altura comecei a pegar nas coisas que me interessavam e chamavam a atenção e a assumir a minha personalidade e esse tipo de interesses no meu trabalho. Nunca irei fazer uma coisa super perfeita, as minhas peças vão ser sempre um bocadinho trapalhonas... precisamente porque sou assim. Estes materiais, como o silicone e a cera, têm essa potencialidade. Da forma como os uso nunca irão ficar completamente perfeitos. Não tenho muita paciência para esperar. Quando estou a fazer uma peça - tenho tanta pressa de acabar! - não tenho paciência para que o processo de a fazer seja demoroso, mas esse processo para mim, ao mesmo tempo, é bastante mais interessante do que a peça final. É até estranho, isto que digo. Sinto como se estivesse a cozinhar, num momento de espiritualidade. Como são materiais líquidos, e utilizo panelas e tudo o mais, cria-se uma relação íntima e caseira.
CR: Fazes estas colecções e ao mesmo tempo não as usas, usas uma espécie de imagens delas. Como é que se articulam essas colecções com essa virtualidade da imagem? Parece-me uma relação semelhante com a que estabeleces, por exemplo, com as imagens que já são digitais à partida, e por isso têm essa virtualidade. Embora uma virtualidade diferente.
IB: É uma boa pergunta. Antes de o silicone e da cera aparecem na minha prática eu utilizava os próprios objectos desta colecção. Chegou o momento em que isso deixou de ser suficiente. Mas o que não era suficiente nisso? Acho que era em termos de matérias. Tive de adicionar esta camada estranha de matéria. Quando revisto um objecto com uma matéria ou quando faço um molde a partir dele - e o molde é realizado para ser usado apenas uma vez, não se tratam de séries, ou reproduções - é como se eu estivesse a retirar a alma desse objecto. [riso] Como se retirasse a alma e a posicionasse numa espécie de ode a ele próprio. Ele fica ali para sempre, a alma fica guardada.
CR: Ao nível da imagem também, as matérias que usas encontram uma relação com estas imagens virtuais. Há um discurso que percebes que é o mesmo. Enquanto que se pensar nos objectos que dão origem às tuas peças, a Imagem não é a mesma. O teu interesse nos materiais não é só construtivo, parece ser sobretudo enquanto Imagem. O que encontra o eco na escolha/recolha das imagens virtuais... o estado líquido, os brilhos...
IB: É engraçado que vás a esse ponto, porque antes destas matérias aparecerem eu fazia muito fotografia. Até certa altura, gostava até de ter seguido fotografia. E sempre encarei o meu trabalho como este momento fotográfico: tu capturas uma imagem naquele preciso momento. E o que faço com os objectos é captar e retirar essa espécie de alma, ou figura, nesse exacto momento. Como uma fotografia. Não é uma reprodução. É aquele objecto particular que me atrai e, com o acto de lhe retirar a alma, o torno único. E o mesmo se passa com as imagens, exacto.
CR: Aproveitando a referência à fotografia... e talvez dando espaço para um momento mais especulativo: achas que instagramável é a nova categoria do que é artístico?
IB: Sim, talvez. Algumas coisas que faço são apenas para o Instagram. Alguns vídeos que tenho, por exemplo, em modelação 3D, que eram experiências com formas, como uma colher ou uma garrafa de vinho, a que adicionei imagens minhas, só os publico lá. E brinco um bocadinho. Nunca as apresentei, embora até pudesse. O Instagram tem uma possibilidade muito experimental e como és tu que geres, não tens de dar satisfações a ninguém para publicar e não dependes sequer de um espaço, potencia a liberdade para experimentar. Eu utilizo bastante.
CR: Tornou-se uma ferramenta essencial para o teu trabalho, desse ponto de vista da experimentação, mas também no acesso que outras pessoas possam ter ao teu trabalho, já que é uma plataforma que chega a muita gente?
IB: Creio que sim. Criei uma espécie de linguagem específica para o Instagram, e estes pequenos momentos que adiciono, estes vídeos, fazem uma introdução ao meu trabalho. Embora não o sejam. Eu não gosto muito de partilhar, por outro lado, fotografias do meu trabalho. Tenho um pouco de receio da banalidade que se possa criar em torno das minhas peças, dessa forma. Toda a gente tem acesso à internet, e quando publicas algo nas redes sociais, influencias a possibilidade de outras pessoas fazerem coisas iguais. E tenho algum receio disso, por isso é que tento criar essas introduções ao trabalho, que cumpram uma mesma imagética.
CR: Embora tenhas esse receio, não achas que essa possa ser uma boa consequência?
IB: Talvez seja. É sempre um elogio, de alguma forma. É difícil para mim perceber. Tenho amigos que não têm qualquer problema com isso. Talvez devesse estar mais em paz com essa possibilidade.
CR: Não me cabendo a mim responder, acho que só podes estar em paz. No sentido em que tudo o que nós vemos assimilamos, conscientemente ou não.
IB: Claro, eu tenho referências de outras pessoas no meu trabalho também. E não o recuso. Se calhar inconscientemente faço o mesmo. Há sempre uma dualidade nestas situações.
Ciclo de Amizades- Inês Brites + Lea Managil, Monstro-Marinho (2019)
CR: Para terminar, gostavas de falar um pouco sobre o “Ciclo de Amizades”, o que é, e como planeias que continue?
IB: O Ciclo de Amizades surgiu numa altura em que me apercebi que me interessava muito trabalhar em conjunto com outras pessoas. Este meio torna-se por vezes muito solitário. Cada um no seu atelier a fazer o seu trabalho. Há muito individualismo e parece que não existe muito a partilha. Queria contrariar isso, de alguma forma, e então surgiu esta ideia. Tinha falado na vontade de fazer uma exposição com a Lea Managil, mas não tínhamos muitas possibilidades de espaços. Foi coincidente com o dar por mim com um cantinho extra no meu atelier e completou a ideia de tornar esse bocadinho de espaço, um espaço expositivo e continuar a convidar amigos para trabalhar em conjunto comigo em peças que sejam das duas pessoas. Pretendo prosseguir, embora a quarentena tenha atrasado todos os planos.
CR: Há alguma coisa em particular que gostasses de acrescentar à nossa conversa, relativamente ao momento actual, talvez?
IB: Sobre o momento actual e sobre o que mudou na minha prática fruto dele, tenha algo a acrescentar... Tenho pensado muito nesta questão do contacto - acho que todos pensamos sobre isso de alguma forma, e acho boa essa reflexão - e dei por mim a reflectir sobre as relações que temos e as formas que elas tomam. Em especial a questão do toque, que tomamos por garantido. Eu sofri muito com esta ausência do toque, e comecei a escrever alguns apontamentos sobre isso. Comecei a pensar no toque como uma linguagem de contacto, cheio de energia, tensão e calor, que é inerte numa curta duração de tempo e que potencia a empatia e a intimidade e a ter a percepção de que a ausência ou o medo deste tipo de comunicação, pode ser perigoso. A partir destes pensamentos comecei a criar uma escrita terapêutica para este momento, embora ainda sem grandes conclusões.