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ENTREVISTA


Christine Buci-Glucksmann. Fotografia: João Urbano

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CHRISTINE BUCI-GLUCKSMANN


DIÁLOGO SOBRE AS IMAGENS CRISTALINAS E O PENSAMENTO NA ARTE (*)

Desde a publicação, em 1984, do seu La Raison baroque, cujo título é já todo um programa do campo de reflexão da autora, Christine Buci-Glucksmann tem vindo a construir um trabalho no domínio da reflexão sobre a Estética ocidental que não hesita em distender-se entre horizontes afastados: entre o Japão e a emergência de elementos não ocidentais na cultura europeia; entre o alto e o baixo – as tensões entre as transparências imateriais e as petrificações de sentido; e, finalmente, entre as próprias categorias kantianas – as estéticas do tempo e as estéticas do espaço.

Por Jorge Leandro Rosa



P: Christine, o percurso do seu trabalho no domínio da Estética, que tem mais de vinte anos, creio, parece-me todo ele atravessado pela problemática do pensamento na arte, ou, melhor dizendo, por essa ideia de uma arte que pensa, do gesto artístico capaz de pensamento. Aí, a Christine tocou, por exemplo, as questões do Barroco, a ideia de arte no Renascimento italiano. Ora, o problema que vejo sempre reaparecer nesse tipo de concepções prende-se com o facto de que, quando pretendemos pôr a arte a pensar, fazê-la pensamento, surpreender esse acto do pensamento contido na arte, obtemos quase sempre deslizamentos, aporias. Que me pode dizer a este propósito?

R: Quando trabalhei sobre o Barroco, pareceu-me, de algum modo, que a visão barroca era, ela mesma, um pensamento. Daí que ela se pudesse desenvolver como uma retórica. Havia aí, como digo no meu último livro, «um universal sensível» diferente, sem dúvida, do modo lógico de pensamento e, de algum modo, prolongando essa ideia no meu trabalho e, em particular, no meu texto Du Baroque à la Philosophie de l’ornement, procurei sempre pôr em relevo esses universais sensíveis. É esse o motivo pelo qual, no meu primeiro livro de Estética, La Raison Baroque, falei, precisamente, dessa «razão barroca». Ao princípio, segui uma pista à la Benjamin. Creio que a grande contribuição de Benjamin foi a proposta de um conceito de tempo como Jetztzeit, quer dizer, como pré-pós-história da arte. É no interior desta pré e pós-história da arte, de algum modo nessa articulação dos tempos, que pensamento. Foi essa concepção do Barroco que tentei desenvolver. Significa isto que há, se se quiser, e a título de exemplo, um pensamento barroco do claro, que encontrei na cartografia de Veermer e que pode ser encontrado em Proust através do pequeno banco pintado no muro amarelo. Mas há também um barroco da sombra que me levou a trabalhar Shakespeare, assim como Pessoa, aliás, a propósito dos poderes da sombra. Portanto, um pensamento do nada. Um pensamento do nada que é como a espiral de Borromini (1) que dá para o vazio em La Sapienza e que suscita a ascensão do pensamento. Não será por acaso que as grandes retóricas barrocas, sejam elas italiana ou espanhola, foram retóricas que procuravam uma metalinguagem que pudesse dizer o nada. E isso a fim de romperem, no fundo, com o dualismo de toda a metafísica ocidental. Está aí o foco da minha atenção, já que a metafísica obrigava a escolher entre o ser ou o nada. Isto conduziu-me a uma concepção que, anos depois, reencontrei na Ásia: ser capaz de ver as virtualidades dinâmicas pensáveis e pensadas do nada.


P: Significa isso que o trabalho da Christine constitui uma crítica do pensamento estético formal na cultura europeia?

R: É, sem dúvida, uma crítica do formalismo no modernismo à la Greenberg (2), e isto porque estive sempre atenta às passagens entre artes e, mesmo, às passagens entre a arte e a arquitectura, como é o caso em La Philosophie et l’ornement. Pareceu-me também que havia na revolução digital e no virtual uma nova articulação epistemológica entre, por um lado, arte e técnica e, por outro, entre arte e ciência. Aí, estamos bem distanciados do modernismo enquanto formalismo, acompanhado do seu aspecto oposto, a institucionalização do formalismo.


P: Um autor que a Christine conhece muito bem, Max Weber, falava do mundo moderno como lugar do desencantamento. No centro deste conceito, podemos encontrar um paradoxo que, segundo ele, era inerente à própria evolução do Ocidente: a ideia de que seria através da própria dissolução do sentido que o racionalismo ocidental teria podido impor-se no mundo. No centro desta perspectiva, podemos detectar o problema dos media, em sentido lato, a omnipresença do dinheiro, das técnicas de circulação do capital e da cultura. Como encara este problema a partir da sua abordagem das estéticas modernas?

R: Creio que será preciso diferenciar a mediatização da arte, ela mesma, que se traduz, aliás, institucionalmente, pela multiplicação de bienais, pelo desenvolvimento do museu num processo muito importante de formação do que são os novos templos da arte e, por fim, pelo desenvolvimento das novas tecnologias. Não são aspectos idênticos entre si. O desenvolvimento de novas tecnologias vai introduzir uma nova epistemologia da arte, que analisei em três tempos: por um lado, a formulação de um conceito, no sentido geral do termo, mas sobretudo, encontrar artefactos que traduzissem essa ideia e, consequentemente, poder elaborar esses artefactos a partir de novos modelos da ciência, como é, por exemplo, o caso das arborescências, dos fractais, ou mesmo a teoria contemporânea «das cordas». A partir daí, podem ser produzidos certos efeitos. Assim, julgo que, aí, não estaremos imediatamente numa mediatização, mas sim numa relação nova, como dizia Foucault, entre o saber e o poder. Esta relação, de algum modo, epistémica, que se traduz em novas formas da arte, como é o caso de Miguel Chevalier, traduz, em suma, o impacto das novas tecnologias em artistas que trabalham com a fotografia.
No caso da mediatização em massa, podemos situar-nos num espaço ambíguo, que tanto pode dar a conhecer certas coisas, como fazê-las desaparecer ao mesmo tempo. Dou um exemplo: a multiplicação das bienais e o seu eco na massificação comunicativa da arte. Aí, podemos dizer, por um lado, que se trata de uma forma de massificação do espectáculo em geral e, por outro, dado que existem bienais em, Bamaco, em Xangai (onde fui quando preparava um livro sobre a arte contemporânea chinesa), em Istambul ou em Abu Dhabi, trata-se de uma situação que faz emergirem novas formas de arte e, consequentemente, uma conjunção, um hibridismo, que produz o que chamei os «entre dois» culturais, entre o Oriente e o Ocidente, entre o Norte e o Sul. Daí podem surgir, muito provavelmente, efeitos de conhecimento. Quando entramos em contacto com essas experiências, como em Bamaco, onde há novas bienais, como aquela dedicada à fotografia, que dão a conhecer novas formas artísticas, pergunto-me se estamos ainda a falar propriamente de «mediatização». Hoje, dispomos do arquivo virtual de todas as culturas do mundo. Daí que, no meu ponto de vista, o grande problema resida na articulação de todas essas culturas. E será na articulação entre as culturas e nas culturas, nesse processo que chamei a «mundialidade», que não se resume à mundialização, que poderá existir criação, e criação nos mundos virtuais.


P: Então, se bem compreendi, aquilo que a Christine chama os «efeitos de conhecimento» deslocou-se de algo que era próprio da cultura ocidental, como é o caso da questão da representação, para algo que tem mais a ver com um confronto com os limites dessa cultura ocidental, não será assim?

R: Sim, estou cada vez mais convencida que, para além da concepção estritamente liberal e económica, ou mesmo guerreira, da mundialização, que se traduz igualmente por um mercado da arte omnipresente, será necessário opor, numa linha que encontramos no pensamento pós-colonial de um Appadurai (3), aquilo que já aqui referi como a mundialidade. Quer isso dizer que, no fundo, todo o acesso ao mundial é feito através do local, o que deve ser motivo de reflexão. Nem todas as mundialidades são idênticas. Daí parecer-me que passámos de uma cultura da estabilidade, de uma cultura dos objectos, dos objectos que podem ser trocados, dos objectos captados pelo circuito do valor, para uma cultura dos fluidos, das instabilidades. Falei já de uma «estética do efémero», por exemplo. Temos aí a possibilidade de pensarmos novas formas de troca, de hibridação cultural, de encontro, na perspectiva inversa da do choque de civilizações.


P: Falemos do espectador. O espectador clássico era aquele que possuía um património cultural de algo fechado na sua herança. Veja-se, por exemplo, o caso de um Adorno e o choque que experimenta perante a cultura americana. Hoje, parece ser a obra de arte, ela mesma, que põe em questão esse património. Qual é a posição epistémica do espectador contemporâneo?

R: Para mim, e contrariamente a certas visões mais «fechadas», parece-me haver um alargamento do domínio do espectador, quer dizer, temos arte na cidade, há interferências cada vez mais importantes entre os paradigmas da criação artística, como é o caso dos paradigmas arquitectónicos. Penso no Guggenheim de Bilbau, capaz de refazer a cidade, o que será, por si só, criação da possibilidade de uma nova tarefa cultural e, por que não?, de um novo espectador. Julgo também, e isto na linha de um Duchamp, que o espectador está cada vez mais implicado nas obras. Está implicado na «imersão» própria das instalações. Está cada vez mais implicado em instalações interactivas, onde a nova geração aceita o jogo das interacções artísticas. Está não só implicado na obra, como se torna ele próprio uma dimensão da obra, que era o que pretendia Duchamp.
Creio, então, que o espectador é hoje, ao mesmo tempo, um espectador alargado, bem para além do estrito património cultural, e é, também, um espectador implicado no processo da obra.


P: E o que se passa com o autor? Essa figura clássica, por excelência?

R: Aí, a partir do momento em que o autor repensa a sua relação com o espectador na obra, e era esse o «efeito Duchamp», a sua aplicação, deveremos repensar também a obra, aquilo que Gilles Deleuze designava como «regime da imagem». Podemos falar de uma «utopia cristalina», de uma imagem cristalina, de uma imagem de vidro, que foi dominante (nas utopias do vidro e do cristal), em todo o século XX. O espectador estava tomado por essa utopia cristalina, aquilo que Worringer (4) chamava a «abstracção cristalina» presente no que se chamou a arquitectura do vidro, desde o início desse século. Da mesma maneira que estava tomado pelo cinema. Estava tomado por um jogo de espelhos, de multiplicações. É isso que pretendem os igloos de Mario Merz, tal como os dispositivos de um artista que muito aprecio, Robert Smithson, criador do vórtex onde nos multiplicamos. Também a Land Art procurou implicar o espectador. Podemos dizer que a cesura vem daí.
Esse regime, que analisei através das práticas arquitectónicas, artísticas, mas também naquilo que me parece ser uma escrita cristalina presente no romance moderno, representa a passagem da imagem cristalina a um novo regime da imagem, a imagem fluida. Appadurai fala das scape, paisagens que podem constituir paisagens sociais, comunidades urbanas imaginárias, que comunicam por meio informático. Ele fala de ethnoscape, fala de ideoscape, etc. Creio, então, que esta imagem fluida, que é inteiramente programada, influenciou profundamente a arquitectura, através de um Novak e da sua arquitectura num «floating space», ou seja, num espaço de fluidez. Estamos aí num processo onde o criador e o espectador potencial estão tomados por toda uma fluidez. Herzog & de Meuron fazem paredes virtuais, paredes de imagens virtuais com espectador. Podem ser feitas projecções imensas, no metropolitano, por exemplo. Miguel Chevalier planeou fazer todo um metropolitano de dispositivos interactivos, onde o espectador pode passear nesse metropolitano, totalmente tomado pelo jogo das imagens, aspecto que estava já pensado naquilo que é o próprio da criação de autor.
Creio, então, que a imagem fluida, através de todos os seus exemplos, mostra-nos que nos encontramos numa nova época. Uma nova época, quer para o artista, quer para o espectador. Mas esse é um processo moroso.


P: E o corpo? É ainda qualquer coisa capaz de resistir à imagem fluida? O corpo e a carne.

R: Bom. Trabalhei bastante sobre algumas artistas-mulheres: Cindy Sherman ou Orlan. O que me apaixonou, no que se refere, por exemplo, a Orlan, é que ela se faz híbrida ela mesma, quer dizer, ela realiza auto-retratos híbridos, utilizando as outras culturas...


P: O que é parte do seu próprio percurso artístico...

R: No seu próprio percurso. Vejam-se as operações em que ela modifica o seu corpo, bem conhecidas de todos nós. Agora, ela produz hibridações de si através do virtual. Tal como podemos dizer que Cindy Sherman está sempre a fazer o jogo de máscaras, um jogo de si mesma, que aproxima as linguagens da arte da linguagem do palhaço. Por exemplo, Mariko Mori faz de si um híbrido de cyborg.
Bom, evidentemente, a carne resiste. Mas a carne também é transformada. Significa isto que já não estamos no conceito de «carne», na acepção de um Merleau-Ponty, e talvez nunca aí tenhamos estado! Quero dizer, nesse preciso conceito de carne. Deleuze criticava Merleau-Ponty a propósito desse seu conceito de carne, no fundo demasiado cristão. Talvez que o corpo e a carne não sejam a mesma coisa. Porque, na carne, há algo semelhante a uma «interioridade» da encarnação. Mas no corpo existe o que Nietzsche bem viu, no fim do Zaratustra, quando fala do dançarino que atravessa o vazio, apenas apoiado na corda. No corpo, existem possibilidades que se aproximam do virtual, enquanto acção e reacção, a potência do corpo, a sua transformação, que vão para além da carne. Não sei se...


P: Sim.

R: Há, evidentemente, um bíos do corpo. Mas, hoje, sabemos que esse bíos está cada vez mais disponível para a sua transformação. É com o nosso corpo que pode existir um «eu-pele», como dizem os psicanalistas. Quer isso dizer que o corpo é a primeira fronteira com o mundo. Hoje, estamos numa primeira etapa da exploração desse «eu-pele», pela precisa razão de que estamos numa etapa de exploração das hiper-superfícies. É a etapa da «coragem da superfície», como dizia Nietzsche, onde o corpo está plenamente tomado por esse processo. Não será por acaso que, em três culturas, uma americana como Cindy Sherman, uma francesa como Orlan e Mariko Mori, que é japonesa, portanto em três culturas que, apesar de tudo, são muito diferentes, assistimos a essa exploração das potencialidades outras do corpo.


P: Efectivamente. Mas não será a carne a última resistência a esse trabalho estético sobre a forma corpórea? A Christine conhece certamente os trabalhos de Giorgio Agamben sobre as relação entre zoé e bíos...

R: Certamente. Talvez seja essa a última resistência, já que se trata da resistência de algo destinado ao efémero e, portanto, à morte. Uma resistência que efectuamos todos os dias. Uma resistência que, direi mesmo, se faz contra a morte. Mas aqui trata-se também de uma forma de resistência contra a morte. Trata-se de uma redenção do efémero contra a morte. Estou de acordo consigo: existe aí, sem dúvida, uma fronteira inultrapassável: o indivíduo biológico, que foi tão bem analisado por Simondon, e de que o meu amigo tanto falou. É uma fronteira certamente inultrapassável. Mas aquilo que mais me interessa, e para o dizer nos seus termos, seria precisamente essa dialéctica da carne e do corpo. No fundo, a carne situa-se do lado da encarnação, enquanto o corpo se encontraria no lado de uma constante ultrapassagem dos limites. Todos nos encontramos entre aquela e este.


P: A estética do virtual, com todas as suas possibilidades de imersão, parece, à primeira vista, em posição propícia ao reencontro da «obra de arte total», o célebre Gesamtkunstwerk. Contudo, parece-me a grande maioria dos artistas contemporâneos que conheço se encontra muito afastada desse tipo de ambição. Porquê?

R: Penso que a obra total, que era o sonho das vanguardas (a Bauhaus, por exemplo, foi a criação de um lugar da obra total, reunindo aí todos os artistas, arquitectos, os artesãos do vidro, etc.) ou, para recuar um pouco mais, Wagner...


P: Existem toda uma história e toda uma narrativa da obra total...

R: Sim. Para mim, trata-se, ao mesmo tempo, de um sintoma romântico, na origem, por que é aí que o conceito aparece, e de um sintoma vanguardista. Aquilo que chamei as «passagens da arte», quero dizer, as passagens, na acepção forte do termo, como o são, hoje, as passagens pós-orgânicas, as passagens virtuais entre as chamadas artes plásticas, a arquitectura e o design, não constituem uma «obra de arte total». Isso quer dizer que o conceito por mim proposto encontra equivalências, mesmo formais. E é esta busca de equivalência que me forçou a reinterpretar todo o século XX, a própria modernidade, sobretudo no meu Philosophie de l’ornement, a partir da questão do ornamento. Podemos constatar que o ornamento vai ser excluído. Veja-se o célebre debate vienense, onde o ornamento vai ser declarado, por um lado, um «crime», como nas palavras de Adolf Loos (5), ou um estilo, como Klimt, o Art Nouveau e, sobretudo, Alois Riegl (6) o reivindicarão através de uma estilística tanto aberta aos Maori, como aos mundos grego e muçulmano. Crime e estilo! Toda a história do modernismo fez do ornamento um crime implícito, quer dizer, excluiu o ornamento como se fosse uma peruca, um embelezamento, uma segunda natureza que...


P: ...Nos desviava da totalidade...

R: ...que desviava da totalidade e, sobretudo, que era o indício de um triplo recalcamento que analisei. O ornamento, sabemo-lo bem, é curvo, é espiralado, opõe-se à linha recta, é uma questão de mulheres! Pertence à erotização feminina. Pertence também aos primitivos, como é claramente dito em todos os textos de Loos, e pertence também ao Oriente.
Quando conhecemos os nossos próprios recalcamentos, apercebemo-nos de que todo o modernismo (incluindo a arquitectura) rejeitou o ornamento. O mérito da pós-modernidade reside, precisamente, no apagar dessa fronteira. Vimos os escultores transitarem rapidamente para motivos espiralados e ornamentais. Vimos todo um conjunto de pintores americanos, com os quais trabalhei, como Lydia Dona, reintroduzirem um novo espaço ornamental, de bandas, de cartografias, em suma, de motivos fractais. Vimos também os arquitectos introduzir e reintroduzir as formas em elipse, as formas retorcidas e truncadas, como no Guggenheim. Não esqueçamos que o que sustenta a estrutura é uma flor, uma flor abstracta que se abre em ramagens que são as salas de exposição, assim como em troncos retorcidos, que formam expansões abstractas. Apercebemo-nos, então, deste regresso do ornamento na arquitectura, o ponto de ter sido realizada recentemente, em Basileia, uma exposição sobre a «nova arquitectura e a questão do ornamento».
Então, e para ir ao fundo da pergunta, apercebemo-nos que já não nos encontramos, de forma alguma, na «obra de arte total», o que não significa que a arquitectura tenha sido essa obra total que retomasse as artes plásticas, mas estamos, efectivamente, em passagens. Passagens entre arquitectura, artes plásticas e design, por exemplo, que nos mostram o regresso de formas pós-orgânicas, de um certo barroco tecnológico, tudo aquilo que julgávamos esquecido. Então, nessa óptica – e, evidentemente, a revolução digital vai nesse sentido –, podemos dizer que não se tratará do regresso vanguardista das totalidades, mas serão antes estas passagens que aplicarão novos diagramas e novos modelos de abstracção.


P: Seria possível dizer que é o espaço que se anima, que se torna, ele próprio, dinâmico e fonte de dinamismos? Tratar-se-ia da ultrapassagem do espaço cenográfico, que é um paradigma bem ocidental. Encontra-se esta estética do espaço nas suas análises da cultura japonesa?

R: Inteiramente! O Japão foi, para mim, uma experiência decisiva. Passei um ano lá e, depois, escrevi o livro que se intitula L’Esthétique du temps au Japon, du Zen au virtuel. Aí, estamos numa sociedade onde o espaço dos fluidos toma um aspecto que não é apenas o dos fluidos da circulação, mas também o dos fluidos que invadem a cidade e que a desdobram em fluidos «ecrã». A noite cria um desdobramento que podemos encontrar, como penso, em toda a arquitectura japonesa. Um arquitecto com quem muito falei, Toyo Ito, descrevia-me essa busca da «imagem pós-efémera», quer dizer, uma arquitectura que inscreve o espaço no seu movimento, mas que também inscreve o tempo nesse movimento: o tempo das estações, o tempo electrónico, o tempo das horas. Também o encontramos em Jean Nouvel, na torre de Agbar, em Barcelona, que muda de cor em função das horas do dia ou da noite. Temos aí um novo modelo do que, para responder à pergunta, chamarei simplesmente de espaço-tempo. No fundo, para retomar dois termos japoneses, que muito me ocuparam, trata-se do ma, ao mesmo tempo o vazio e a passagem (o que produz o vazio faz-se passagem), lugar de acolhimento do outro, e, termo que me parece ainda mais importante, o mujo, a impermanência das coisas, o que significa que essa impermanência positiva me permitiu passar, nos meus trabalhos (e, talvez na vida, não sei), de uma estética do efémero melancólico a uma estética do efémero em sentido positivo, quer dizer, como aceitação do devir, da passagem, do intervalo presente nas coisas, do intervalo na vida. No fundo, o efémero nietzschiano. Há aí um ponto de encontro, que muito me fascinou, entre o Ocidente e o Japão, que faz com que as formas, mesmo mais do que fluxos, sejam energias. E esta concepção da forma como energia modifica definitivamente a forma e caracteriza o período em que estamos.


P: Este aspecto da energia convoca, evidentemente, o problema da técnica. A Christine conhece o pensamento de Heidegger em torno do Gestell. Pensa que a técnica é ainda algo capaz de dominar a busca estética ou será que as coisas se passam ao contrário?

R: No meu livro L’Esthétique de l’éphémère, fiz a crítica da ideia da técnica como «armadura», como arraisonement e tudo o que a acompanha, quer dizer, a concepção do mundo, o conceito de «concepção do mundo» que é correlato do que mantém em conjunto o «arraisonement» (Gestell) e a concepção do mundo: o eu subsistente, o eu cartesiano, o sujeito da representação. Parece-me que já não nos encontramos nessa época. Evidentemente, a técnica tem ainda uma função de domínio, não o nego. Mas, por mais que não fossem todas as investigações da ecologia, a busca de uma técnica outra, sabemos que o arraisonement se faz catástrofe, o arraisonement é a catástrofe. Daí eu acreditar que a investigação sobre a técnica também é transformada por este diagnóstico. A investigação no domínio da arte, precisamente, serve de suporte a uma investigação epistémica e artística diferente.


P: Última pergunta: qual é, hoje, o estatuto do pensamento estético? O seu lugar no quadro do trabalho da Christine Buci-Glucksmann?

R: Na minha perspectiva, a Estética não é nem a ciência do belo, nem do sublime. Ela já não constitui um inquérito capaz de atingir valores concebidos em si mesmos, tal como quiseram Kant e, no fundo, Hegel. Estaremos numa fase, para o afirmar em termos que pertencem a Foucault, em que a Estética é antes um espaço crítico que pensa visibilidades. Quer dizer, acções, complexos de acção, reacções. Ela é polissensorial. Esta estética polissensorial é uma estética alargada em relação aos conceitos tradicionais e clássicos da História da Estética, que se fazem, aliás, acompanhar da História da Arte, e parece-me muito importante para dar a pensar, através de uma crítica imanente, a mundialidade. Se não tivermos uma concepção alargada do estético, não poderemos pensar o fim do dualismo binário, seja o do sul e do norte, o feminino e o masculino, o negro e o branco, o Oriente e o Ocidente. Assim, esta concepção da Estética é uma concepção crítica que deve ser pensada na própria imanência crítica da mundialidade.

JLR: Muito obrigado, Christine. Foi um prazer.




NOTAS

* Entrevista de Jorge Leandro Rosa a Christine Buci-Glucksmann, publicada na revista Nada n. 13, Julho de 2009. A entrevista foi realizada no dia 17 de Setembro de 2008, no Institut Franco-Portugais, em Lisboa, em colaboração com os organizadores da Conferência Efémero, Criação, Acontecimento, em que a autora de Tragique de l’ombre foi a principal oradora.
(1) Francesco Borromini (1599-1667). Interessado nas ruínas da Antiguidade, desenvolveu um estilo arquitectónico que associava a linguagem clássica a um imaginário simbólico muito pessoal.
(2) Clement Greenberg (1909-1994), teórico do modernismo enquanto resistência ao nivelamento cultural produzido pelo capitalismo.
(3) Arjun Appadurai (1949), antropólogo e sociólogo indiano que tem relacionado as problemáticas da modernidade cultural e da globalização.
(4)Wilhelm Worringer (1881-1965) foi um dos primeiros historiadores da arte a atribuir à arte abstracta uma dignidade artística equivalente àquela de que gozava a arte figurativa.
(5)Adolf Loos (1870-1933), arquitecto e pensador da arquitectura na Viena do fin de siècle. É autor de Ornamento e Crime, que associa a evolução cultural ao abandono do ornamental nos objectos utilitários.
(6)Alois Riegl (1858-1905), historiador da arte. Propõe uma história do ornamento que não esteja submetida a uma leitura materialista, então em voga, da função ornamental. Segundo Riegl, a história do ornamento deve ser autónoma e prende-se com o conceito de Kunstwollen, «vontade de arte». Não é de descartar um eco nietzschiano na sua obra.


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