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CLÁUDIA MADEIRA
23/03/2021
Claúdia Madeira, professora universitária, autora e investigadora de temáticas ligadas à performance, ao teatro, à dança, à performatividade e ao hibridismo artístico na sua relação com o social, lançou recentemente o livro Arte da Performance Made in Portugal - Uma Aproximação às Histórias da Arte da Performance em Portugal (2020, ICNOVA). Nele tenta uma história da performance arte em Portugal, abraçando os constrangimentos que tal objectivo impõe.
Aborda ainda conceitos como performance expandida, hibridismo, performatividade, performance artística e performance social.
Um marco na literatura sobre a arte da performance e uma leitura essencial para compreender o passado e o presente desta arte efémera no nosso país.
Por Clara Gomes
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Clara Gomes: Quais são as principais dificuldades na tentativa de definir performance arte? É um conceito operativo? É um conceito ultrapassado? O que o substitui?
Claúdia Madeira: Considero que a arte da performance se mantém como um conceito operativo, tanto no que diz respeito ao seu enquadramento histórico, uma vez que ganhou estatuto de categoria artística entre as décadas de 1960 e 1970, como, também, porque continuam a existir artistas na atualidade que reivindicam essa classificação para o seu trabalho. Pelo que não o vejo como um conceito ultrapassado, pelo contrário, vejo-o como uma dinâmica em expansão no mundo da arte. Contudo, é preciso dizer que há uma diversidade de práticas que cabem dentro dessa categoria. As suas fronteiras não são muito bem definidas e podemos dizer que há uma contínua mutação tanto na sua “forma” como nos seus “conteúdos”. O hibridismo é-lhe inerente pelo que mesmo a sua suposta ontologia, como a definida por exemplo por Peggy Phelan ligada ao seu carácter irrepetível, tem vindo a ser problematizada e mesmo questionada por diversos autores, como é o caso, entre outros de Philipe Auslander, quer pela mediatização que lhe está geralmente associada, quer pela existência de uma dimensão de reenactment ou re-performance que tem vindo a ganhar expressão.
Não acho que haja propriamente um substituto para o conceito, existem é simplificações e/ou hibridismos. Surgem cada vez mais projetos em que o termo arte, de arte da performance (performance art), aparece omisso e isso tem a ver com o facto das suas características terem vindo a expandir-se, diríamos, performativamente para a arte em geral. Vivemos num contexto em que as dimensões de apresentação, na sua distinção a representação, conjugadas com as de participação e de colaboração ganharam um espaço considerável nas práticas artísticas e, por isso, também a performatividade tem “invadido” várias disciplinas artísticas.
CG: Como é que o hibridismo ajuda nessa (re)definição da performance arte?
CM: O hibridismo, como já referi, é-lhe intrínseco, desde logo, porque a arte da performance resulta de uma relação entre as dimensões visual/ conceptual e performativa. É um conceito fugidio, unmarked como diz Phelan. No que diz respeito à sua redefinição podemos ainda afirmar que o hibridismo é o motor de mutação que tem levado não só ao surgimento de outras categorias artísticas que lhe estão associadas, como vídeo performance, foto-performance, ou fotografia para a câmara mas, também, como já afirmei, a uma simplificação na nomeação apenas como “performance”, ou a sua “divisão” em novos derivados como os reenactments e a reperformance.
CG: O que é a performance expandida?
CM: A performance expandida é justamente esse carácter mutante e protoiforme.
CG: Qual é diferença entre performance e performatividade?
CM: Qualquer dos dois conceitos apresenta dificuldades de definição e também de diferenciação um do outro. Sem tentar esgotar aqui as similaridades e diferenças diria que performance remete para ação, desempenho e que a performatividade é geralmente associada ao processo. Ambas podem ser aplicadas quer em dinâmicas sociais, atividades humanas no geral, e artísticas.
CG: Qual é diferença entre performance artística e performance social? Em que situações se tocam?
CM: A arte da performance frequentemente possui uma dimensão política e trata de questões de identidade, por exemplo de género ou “raça” ou ainda respeitantes a identidade “nacional”, referentes a questões fraturantes, reivindicativas e de resistência. Traduz um posicionamento que se faz através do corpo e que se liga a uma determinada performatividade social. A performance social remete para dimensões variadas, tanto traduz a nossa atividade humana comum, como remete para processos de competitividade, implicando comparação e hierarquia, de diferenciação de estatuto. Remete frequentemente para uma regulação normativa, dominante a que a arte da performance frequentemente reage.
CG: Citas Ernesto de Sousa que disse que a história das vanguardas é a história de uma ausência. Fazer uma história ou histórias das acções, quase sempre efémeras, da performance em Portugal é uma urgência?
CM: Sim, dedicar tempo à construção dessas histórias é uma urgência no sentido em que a “arte da performance histórica”, das primeiras gerações dos anos 60, 70 está em risco de se perder porque muitos dos participantes/ testemunhas estão a desaparecer. Mesmo que encontremos os seus arquivos, que se encontram muitas vezes dispersos ou incompletos, o papel dos seus protagonistas é muito importante para a recomposição destas histórias.
CG: Afirmas que uma história da performance em Portugal engloba conceitos e ontologias conflituantes, contestadas por vários agentes do campo. Quais foram as maiores dificuldades na pesquisa de uma história da performance em Portugal?
CM: A maior dificuldade é sempre a de aceder aos registos e às testemunhas. As histórias da performance como referi estão dispersas e são caracterizadas por uma enorme fragmentariedade. Há quem considere que qualquer história agora se traduz numa espécie de falsificação, e na verdade há muito de especulativo nestas histórias porque começa a ser cada vez mais difícil encontrar esses testemunhas e confirmar incongruências.
CG: Os artistas que desenvolveram performance em Portugal não o fizeram exclusivamente, foram – são – pintores, escultores, realizadores, escritores… Isso e o facto de, até há pouco tempo, nem sequer haver um mercado para esse tipo de arte levou a uma dificuldade na circunscrição do campo e no levantamento das acções/happennings?
CM: Sem dúvida, podemos afirmar que a “arte da performance histórica” emergiu num contexto de “não mercado”, sendo as suas ações dominantemente apoiadas pelos seus próprios participantes, que desenvolviam performance a par de outras profissões artísticas ou mesmo não artísticas, como professores, críticos, entre outras. Muitas performances tiveram lugar em galerias, com um estatuto experimental e sem lhes estar associado um valor de mercado. Foram esses críticos e artistas que desenvolveram os primeiros festivais, encontros e ciclos de performance. O momento mais institucional da arte da performance teve lugar na Fundação Calouste Gulbenkian, no ACARTE, em 1986, mas é interessante perceber que no prefácio desse mesmo programa a Doutora Madalena Perdigão afirmava que a arte da performance estava em transformação para outras formas, como as formas multimédia, a dança-teatro, o teatro-musical. E efetivamente, foram essas novas formas, como a denominada “Nova Dança”, e o “novo” Teatro que ocuparam depois esses palcos.
CG: Quais são os grandes momentos da performance em Portugal?
CM: Terão havido momentos performativos/ações performativas a que não temos acesso porque justamente perdemos o seu registo ou porque nunca se fez registo disso, contudo, temos agentes e ações que processualmente apresentam essas características: a conferência futurista de Almada Negreiros (entre outras), algumas ações surrealistas e mais tarde os happenings e performances da poesia experimental e da arte experimental. A partir dos anos 60, podemos dizer que o enquadramento estava pronto para a atribuição de um “nome” tal como aconteceu internacionalmente. Os anos 70 e 80 formam momentos de expansão do termo, do desenvolvimento e da circulação (inter)nacional dos agentes por festivais. Nos anos 90 houve uma retracção destes processos, o mercado de arte estabilizou-se, surgiram novos focos de interesse para galerias, museus, palcos e crítica e a performance também se modificou, surgiram novas gerações de artistas, tornou-se uma performance mais híbrida, houve até uma viragem para a música e para meios mais mediáticos. Houve um novo retorno da performance no novo milénio, a que chamo o novo ciclo da performance, entre finais da primeira década e inícios da segunda. Os movimentos sociais tiveram um papel importante nesse ressurgimento mas, também, várias exposições retrospetivas de criadores que fizeram também performance. O interessante é que alguns elementos dessas novas gerações tinham um grande desconhecimento dos artistas e das histórias da arte da performance histórica. Atualmente estamos na fase do reconhecimento dessa História em construção e da apropriação dessas histórias. Começam mesmo a surgir projetos artísticos de “homenagem”.
CG: Nos anos 90 os elementos que se enquadram na Nova Dança dão-se como inovadores em Portugal ignorando o trabalho dos que os haviam precedido (e irritando-os…). Um referencial histórico será importante para os performers dos dias de hoje ou será preferível que a performance arte se desenvolva aquém da história, da teoria, da academia e da crítica?
CM: Apesar de não haver uma resposta linear, já que para alguns o excesso de informação pode ter um papel dissuasor da criação, penso que o desconhecimento, por via do anulamento/omissão nunca é muito benéfico para o desenvolvimento de qualquer área. A história de arte da performance tem muito a contar-nos não só sobre dinâmicas artísticas mas, também, sobre dimensões político-sociais que ocorreram em Portugal, como a Ditadura, a Revolução, a Guerra Colonial, a entrada na CEE, etc.
CG: Que performance se faz hoje em Portugal?
CM: Diria que se expandiu, tornou-se ainda mais híbrida e, nisso, ou por isso, de um modo geral simplificou a sua denominação, perdeu o “arte” (de arte da performance arte) ficando apenas performance. Isso não quer dizer que não haja alguns projectos que possam ainda reivindicar o termo, ou que não possa de novo vir a ressurgir de forma mais acentuada. Mas hoje, como refere André Lepecki, vivemos na era da performance, e isso acontece em várias áreas artísticas.
CG: Recentemente vimos vários reenactments de performances em Portugal (na Plataforma Revólver, por exemplo). Por um lado, a reperformance parece uma forma de recuperar o histórico e de lhe dar actualidade e visibilidade mas, por outro, não serão acções conservadoras que vão contra a própria ontologia da performance e contra o que há de transgressão e risco nesta forma de arte?
CM: Richard Schechner, um dos responsáveis pela emergência dos Estudos da Performance nos Estados Unidos afirmou justamente que estávamos a vivenciar um período de conservação da performance. Outros como Hal Foster consideram que vivemos uma “zombificação” da performance. Eu diria que a arte da performance apenas está a fazer a sua passagem de uma arte marginal a uma arte integrada. Como quase sempre aconteceu com qualquer arte marginal. A reperformance, nesse sentido, faz parte desse processo de institucionalização e de construção de “repertório” aproximando-se do que acontece nas ditas artes performativas em geral. Penso que se verificam trânsitos nos dois sentidos: as artes performativas também estão hoje mais performáticas. Sobre a transgressão e o risco dependerá sempre de que tipo de reinterpretação é feita pelo artista, mas a existir um mesmo “guião” a expectativa obviamente muda.
CG: A performance tem morte anunciada? Foi/será substituída por novas formas híbridas? Quais?
CM: Não sou “futuróloga”, mas olhando para o passado tenderia a afirmar que não. As práticas artísticas tendem a metamorfosear-se, gerando-se na História ciclos de recuperação e renovadas hibridizações. Como já afirmei verificam-se no contexto atual vários trânsitos e “contaminações”: tanto há na performance uma tendência para a re-apresentação do seu histórico, para o “repertório”, como há nas restantes artes (das ditas artes performativas às ditas artes visuais) uma abordagem mais performática. Para além disso obviamente que o contexto atual, de pandemia, e de uma maior ligação aos meios tecnológicos e virtuais, terá implicações na performance, no que diz respeito justamente à complexificação de noções como presença/ausência; visibilidade/invisibilidade, entre outras. O que caracteriza esta área é uma enorme mutação e ao mesmo tempo reação aos tempos.
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Clara Gomes é performer, cineasta, docente universitária e investigadora integrada na área da comunicação do ICNOVA onde desenvolve investigação sobre Human Computer Interaction, os usos de plataformas virtuais e interfaces multimodais para a comunicação à distância, a performance e o netactivismo.