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JOSÉ BARRIAS
“O corpo da minha obra reflecte realmente a minha dupla condição de vida, a qual oscila entre uma quietude duradoura e um desassossego permanente”, diz-nos José Barrias, artista português que reside há 47 anos em Milão. A sua prática artística, caracterizada por um cruzamento de linguagens, desenrola-se entre o desenho, a pintura, a fotografia, a instalação, estando os traços da memória íntima e cultural muito presentes nas narrativas visuais. Neste momento com uma exposição patente na Plataforma Revólver, em Lisboa, José Barrias conversou com a Artecapital sobre esta mostra e a sua condição de “habitante dos intervalos”.
por Liz Vahia e Victor Pinto da Fonseca
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VPF: Na exposição “Inside Outside”, na Plataforma Revólver, em Lisboa, convidaste Bárbara Fonte, uma jovem artista, para expor contigo; é admirável ver o resultado da arte de ambos conviver de igual para igual ainda que a arte dos dois seja muito diversa. A Bárbara é uma artista que utiliza o dramático, tu és um artista com um processo criativo poético mas que igualmente sabe ser dramático! Concordas com esta primeira impressão?
JB: As primeiras impressões equivalem a sensações à flor da pele. Não tenho portanto que concordar ou discordar de uma tua impressão epidérmica. Não posso discordar da pele que te envolve os ossos e te reveste a carne e os órgãos de vivências e sobrevivências que não conheço. É isto afinal aquilo que uma lição de anatomia nos ensina: aberto o corpo o dentro passa para fora e assim por diante, cirurgicamente, se a operação analítica prossegue... Inside Outside eccetera é, a meu ver, uma espécie de exercício anatómico. São as peles das nossas perguntas abertas que indicam as matérias que revestem as razões ósseas que sustentam as nossas respostas, sabendo porém que inevitavelmente a pele de cada resposta é sempre um postigo (às vezes uma janela, outras um portão) que dá para outra paisagem cutânea que reveste ainda e ainda novas perguntas... Eccetera. Dito isto, pergunto: onde começa e até onde se dilata a pele da poética "dramática" de Bárbara Fonte e como é que esta se liga ao fio da conversa à flor da pele que o meu iter discursivo lhe solicitou? Uma resposta possível poderia ser afirmar que a razão essencial de cada diálogo habita sempre a diferença que o nutre, mas também que a razão que o estimulou e estimula foi e é a plataforma que o uniu, formando e amplificando o nosso percurso expositivo sob a forma de obras abertas a pensamentos, impressões, sensações (retinianas e não) que escorreram e escorrem entre nós e, sobretudo, para além de nós. Só assim uma exposição adquire a dignidade da existência, onde o êxito consiste e depende do facto de termos sido capazes de ligar a singular complexidade das nossas linguagens à simplicidade das evidências expostas, seguros do facto que estas podem ser recolhidas por quem as observa e vê como ecos de um lugar-comum. Só assim pretenções, vaidades, exibicionismos de vária ordem, puderam ser contornados. Penso que neste sentido aberto e plural a nossa exposição cumpriu e cumpre a sua razão de ser com uma "naturalidade" exemplar.
LV: Caracterizou a exposição “In Itinere”, em 2011 no Museu de Serralves, como um “testamento poético” de ajuste de contas com o seu percurso. Em “Inside Outside”, a memória permanece ainda como assunto nestes trabalhos que apresenta, no entanto, o corpo físico, a materialidade humana e animal, é uma figura forte em toda a exposição. Balança com as sombras e as imagens fugidias dos desenhos. Acha que há aqui uma ideia de recomeço, um ciclo de vida e morte, uma conjunção de presença física e emocional?
JB: Entre o tu que na pergunta anterior me foi dado por Victor Pinto da Fonseca e o você que nesta me é dado por Liz Vahia evidencia-se uma das características que considero marcantes para o "tratamento" do meu trabalho. Porque neste existe de facto uma espécie de fenomenologia bi-polar caracterizada pela coexistência das experiências da proximidade e da distância. O corpo da minha obra reflecte realmente a minha dupla condição de vida, a qual oscila entre uma quietude duradoura e um desassossego permanente. Trata-se de algo que me une e separa (nesta ordem) da língua e da terra onde ordinariamente vivo (a Itália) e, ao mesmo tempo, que me separa e une (nesta ordem) à língua e ao país onde nasci (Portugal). Julgo ser esta a razão que "desenha" fisicamente a minha vida e a minha obra, configurando-a como uma coleção de ecos, uma oscilação permanente dos retornos. Eu sou um habitante dos intervalos. Sombras como verdades da luz, plumas como brisas e vanitas, linhas desenhadas como labirintos, fios de cobre ou de ouro entrelaçados como perspectivas e horizontes, mapas, paredes e chãos, flaneries, sonhos, fechaduras, fantasmas, suspensões, livros de horas, moscas e aranhas como intrusos, inesperados visitantes das superfícies desenhadas, pintadas, escritas, emergem no e do meu trabalho como elementos de beleza purificada e sinais de fogo e de cinza. Eccetera.
VPF: Na cultura europeia, vem-se fazendo a ideia de quão inseguro e incerto se tornou declarar o "novo" na arte contemporânea; a arte não tem mais uma relação revolucionária e inflexível com a ideia de continuidade histórica; antes, se declara o valor do "novo" como um indefinido estado perpétuo de repetição do que já existe.
Nesta ordem de ideias, o novo surge não como uma revisão ou abolição do que chegou até nós do passado, mas meramente como uma recombinação última, reiteração de toda a arte que já foi feita anteriormente, o eterno presente!
Concordas que com toda a história de arte instantaneamente acessível (através da internet...), a arte actual se tornou uma matéria remix de díspares antecedentes? Que toda a arte se tornou "intemporal" não tendo os artistas de continuar a viver com a ideia opressiva da responsabilidade de ser "novo"?
JB: Anotou Bertolt Brecht no seu "diário de trabalho" (Arbeitsjournal) que "o homem novo é o homem velho numa nova situação (...) São os novos modos de agir e reagir que constituem o novo; de velho (...) resta só o facto que ele é precisamente um homem". O "eterno retorno" é um antigo paradigma da cultura europeia. A internet, o correio mail ou outro, os vários e actuais motores de pesquisa e comunicação são meras variações de dados e práticas pré-existentes. Projectos, elencos e persistências residuais podem coexistir no espaço do tempo. Quando convidei Bárbara Fonte para projectar esta exposição comigo encontrei pelo menos 2 razões para o fazer: a 1ª deriva da minha reconhecida admiração pelo seu trabalho e pelo seu iter criativo e poético; a 2ª inscreve-se no facto que penso que um artista mais velho "deve" interrogar-se e questionar o seu próprio trabalho abrindo a porta da convivência a artistas mais novos para que a arte e as histórias que sobre ela se contam não se fechem na vertigem de um atrevido "absolutamente novo" que combate contra um perigoso e suposto "reconhecidamente datado", mas sim para que, em vez disso, entre idades diferentes se edifiquem "plataformas sem revólver" onde as idades do tempo possam conviver e coexistir segundo as suas próprias razões.
VPF: A nós portugueses falta-nos a tradição histórica das grandes obras de arte, a relação com o passado; falta-nos o gosto e a popularidade das grandes obras de arte, o que as torna como uma estravagância entre os nossos costumes. Em oposição a esta estranha desconfiança e/ou pobreza, vem o exemplo da história da arte em Itália, que traz consigo um passado glorioso.
Essa relação intensa que a Itália tem com o passado da arte, o facto de viveres em Milão, influenciou o desenvolvimento da tua obra? Sobretudo o teu pensamento pessoal? Não existe futuro sem passado?
JB: Se comparada com a grandiosa história da arte italiana, a história icónica da arte portuguesa é uma história relativamente "pobre". A história portuguesa é uma história prevalecentemente narrativa... Mas cosmopolita. Uma narrativa de viagens, uma história "trágico-marítima", migratória e fusional. As razões históricas desta evidência são múltiplas e extensas. O curto espaço que inevitavelmente me é consentido nesta entrevista não me permite afrontar a questão senão de forma tópica, sumária. Numa anterior entrevista ao jornal O Público declarei que a pertença ao lugar e à cultura onde se nasce ou aquela estrangeira onde se vive, ou às duas, implica muitíssimas variáveis que um ou dois simples bilhetes de identidade não podem registar. Uma pertença é uma herança e as heranças, como se sabe, são geralmente quase sempre um problema com infinitos e controversos detalhes e interpretações dos interesses em jogo. Não me parece necessário "incomodar" os pensamentos de Salvatore Settis sobre o "futuro do clássico" para me convencer que o antigo é a surpresa do novo ou, como diria o meu amigo Ernesto de Sousa, a sua tradição. A questão fundamental para mim não reside tanto na visibilidade da presença do antigo no novo mas sobretudo na explicitação da sua "saúde" na cena de uma nova conjuntura temporal. Digamos então que eu organizei a minha obra como uma descendência activa. Existem certamente motivações históricas na origem das grandezas e das diferenças expressivas nas várias culturas e não basta um sistema de comunicação global, por mais sofisticado que seja, para as apagar. Dito isto é também inegável que a grande aceleração e expansão dos sistemas de comunicação "restringiu" o globo terrestre, configurando-o como uma espécie de Grande Teatro do Mundo, uma espécie de Exposição Universal permanente sem pátria nem deus. Os "novos" fundamentalismos nascem e desenvolvem-se neste contexto.
Eu nasci em Lisboa (cidade que o mito pretende fundada por Ulisses), vivi 17 anos no Porto, quase 2 em Paris e, desde há 47, em Milão (Mediolanum, que outrora foi sede do Império Romano do Ocidente). Digamos então, para responder às tuas questões em volta da inscrição espacial e temporal da minha obra, que eu sou onde não estou e estou onde não sou e que aquilo que considero fundamental no andamento do meu trabalho não é quase nada nem tão pouco quase tudo... É sobretudo um não-sei-quê que aflora no espaço da obra para dar tempo ao tempo, contra a dolorosa insistência das coisas perdidas e a favor da saudável curiosidade pelas coisas encontradas.
LV: As suas obras têm uma relação muito próxima com a linguagem, com o literário. São imagens que têm um lastro de histórias, um emaranhado de “fios, linhas cruzadas, teias e manchas”. Com isto, sente que a palavra e as línguas em que se move já deixaram de ser um território estrangeiro?
JB: Respondo-lhe muito sucintamente e com incontrovertível prosápia que eu sou como os profetas: eu vejo a linguagem que falo, ou escrevo.
LV: Recentemente voltou a publicar um texto saído na revista Phala em 1998 sobre Ernesto de Sousa [1]. O Museu Berardo expõe agora também uma selecção da coleção de cartazes de Ernesto de Sousa, recolhida ao longo da sua vida e dos seus encontros como artista, curador e teórico. É pertinente relembrar hoje figuras como a de Ernesto de Sousa?
JB: Absolutamente sim. Ele tinha uma consciência agudíssima, para voltar ao assunto de abertura desta nossa entrevista, seja da tradição como aventura seja da aventura como tradição. O Ernesto de Sousa foi um indisciplinador das artes e dos conformismos. Indomável. Um "académico" às avessas. E um caríssimo amigo.
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Notas
[1] A TUMULTUOSA FERTILIDADE DO HORIZONTE, José Barrias, in Revista A Phala, Nº 64, Abril 1998. Republicado em Abril de 2015 na Artecapital: http://artecapital.net/estado-da-arte-52-jose-barrias-a-tumultuosa-fertilidade-do-horizonte