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PAULO LISBOA
29/01/2024
Conversámos com Paulo Lisboa no atelier onde trabalha há já 10 anos. O atelier, uma antiga loja de tintas e solventes à praça Paiva Couceiro – também uma barbearia a avaliar por alguns vestígios lá encontrados – é um espaço-tempo onde a acumulação e a projeção se relacionam produtivamente. A configuração do espaço por níveis – com primeiro piso (o escritório, do processo mental ao burocrático), a loja e a sobreloja (a oficina de trabalho) e ainda uma cave obscura (onde nunca se vai mas onde se guarda tudo) reforçam um psiquismo que faz do atelier um ator no sentido mais pulsante que lhe deu Bruno Latour da Teoria do Ator-Rede. Nesta entrevista conheça-se o espaço criativo de Paulo Lisboa, cujo trabalho mais recente pode ser visitado na exposição de desenho e instalação Ciclóptico, com curadoria de Sérgio Mah, a ver no MAAT até 11 de março.
Por Catarina Patrício
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Catarina Patrício: em que medida é que o teu atelier é um companheiro de trabalho? Vens para o atelier mesmo quando não tens ideias? Forças-te a vir aqui?
Paulo Lisboa: Venho, venho quase diariamente. Em alturas como esta, em que acabei uma exposição há pouco tempo, posso não vir diariamente. Mas sim, o meu trabalho tem muito a ver com experimentação, o atelier é essencial, umas vezes experimento coisas, outras vezes se não tiver ideia nenhuma posso só varrê-lo, arrumá-lo. Sim, é uma espécie de uma cápsula onde está o trabalho. Não quer dizer que não pense o trabalho fora do atelier, mas aqui é que é o sítio da ação, tanto mental como física.
C.P.: O teu atelier tem 4 pisos. Sentes que há atividades específicas para cada um deles?
P.L.: Sim, existem, mas isso tem mais que ver com as condicionante do espaço. Como o meu trabalho faz muito lixo, é um trabalho um bocado sujo (risos), quando estou a trabalhar em desenho preciso de um bom arejamento. Esta sala, que é a maior, é onde eu trabalho essas coisas. Depois tento manter outras salas mais limpas, para fazer outro tipo de trabalho.
C.P.: O piso mais acima será o espaço mental?
P.L.: Supostamente é o mais limpo, é onde faço maquetes, faço trabalho mais de escritório, que às vezes infelizmente é preciso.
C.P: Este teu piso de entrada, é a tua câmara social?
P.L.: Não é bem a câmara social porque eu não trago cá praticamente ninguém. Mas é um espaço limpo, onde vou arquivando as coisas, e onde tenho um maple para me sentar (risos).
C.P.: E também a tua mesa de luz.
P.L.: E a mesa de luz. Mas é curioso que aquele desenho grande que eu fiz para o Côa (Exposição colectiva, O Resto e o Gesto: Desenhos Para o Século XXI, Museu do Côa) em 2014 foi feito ali porque precisava de sítios no tecto para o agarrar e depois, como era muito grande, eu tinha de o mexer de uma vez e fiz um sistema com cordinhas que permitia mexer o desenho sozinho. Graças à mezzanine a estrutura já lá estava. Foi então feito ali.
C.P: E depois descemos, temos aqui ...
P.L.: Esta espelunca... (risos)
C.P.: Temos aqui ferramentas várias, de lápis a outros instrumentos, restos de trabalhos... (risos)
P.L.: Apesar de já ter dado uma limpeza, mas não se nota muito... (risos)
C.P.: Ainda tens uma cave de acesso difícil – que é uma dimensão tipo o Id na psicanálise, aquela que está refundida. O que é que metes ali?
P.L.: Coisas que sei que não vou mexer por muito tempo, tal como na psicanálise (risos).
C.P.: Sim, mas que estão sempre prontas para subir (risos).
A cave no atelier de Paulo Lisboa.
C.P.: Quais são as tuas maiores influências: obras, artistas, a vida, leituras, a música, ou pura e simplesmente o teu trabalho, essa ação de estar aqui no atelier?
P.L.: A ação de estar aqui no atelier é capaz de ser o mais importante. Eu não sigo muito inspirações de outros trabalhos – de outros artistas se calhar sigo, mas de uma forma um pouco inconsciente. Basicamente o que me interessa é trabalhar sobre o mundo e a forma como o mundo é percebido, mas sinto que o que me influencia mais são fundamentos dessa procura.
C.P.: Que conceitos é que povoam o teu trabalho? Que conceitos é que estão retidos, concentrados ou expandidos no teu trabalho?
P.L.: Há uma parte material muito importante, que tem a ver com geologia e com a forma como a luz reage com certos materiais... como já deves ter percebido eu tento não usar matérias processados, quero que a coisa seja o mais natural possível, embora haja aí um paradoxo porque o material com que eu trabalho aparece dessa maneira mas as superfícies muitas vezes são materiais tecnológicos recentes. Porque a superfície é só o plano onde a coisa vai acontecer, é o teatro das operações que eu depois promovo.
C.P.: Tu consideras que varias o suporte para trabalhares sempre uma sedimentação?
P.L.: Sim, e isso tem a ver com o material que eu vou utilizar. Não há superfícies naturais lisas, elas não existem naturalmente. Podem ser posteriormente trabalhadas, mas com a lisura que eu quero é mais difícil.
C.P.: Começaste na Galeria Graça Brandão, seguiu-se a Uma Lulik e, recentemente, passaste a ser representado pela Galeria Bruno Múrias. Qual o papel das galerias na profissionalização dos artistas?
P.L.: Eu acho que o meu trabalho existiria de qualquer forma. Eu sinto que tenho que fazer e se não fizesse isto não sei o que mais faria. Por outro lado há uma coisa que me interessa por si só, que é uma espécie de vibração da obra de arte quando chega a determinado ponto. Eu consigo vê-la e ela não é estática, e está a vibrar e tem uma força própria e, portanto, isso iria acontecer de qualquer maneira. Agora a Galeria ajuda muito a estruturar a forma como eu vou contextualizar as coisas, a estruturar o trabalho nos sítios certos...
C.P.: A pertencer a uma rede?
P.L.: Sim, a estar inserido numa rede também, e a organizar o corpo de trabalho.
C.P.: Qual o papel da arte e qual o papel da tua arte no mundo?
P.L.: Boa pergunta (silêncio). De certa maneira o que eu acabei de dizer explica isso. Que no fundo quando crias uma peça, estás a adicionar algo. Há bocado falei da vibração, podes não saber para que serve mas a coisa está lá e é um objeto que tem existência, e tem até vida – acho que posso dizer isso. Agora o papel, assim de um ponto de vista social, de transformação de mentalidades, eu acho que existe, mas não da forma tão direta como se tende a fazer hoje em dia. Há muitas maneiras de se praticar essa transformação e quase todas são melhores do que a arte.
A arte pode ser transformadora mas sem ter um papel definido ou uma função qualquer, sem se perceber bem qual é a transformação que existe. Vai-me acontecendo, de vez em quando, pessoas ficarem tocadas pela peça que mudou qualquer coisa nas suas cabeças. A arte tem, principalmente, um papel de desanimalização dos humanos porque de certa maneira elevam-nos – estou a falar de peças de arte contemporânea, ou de arte em geral, mas podia estar a falar de música, ou literatura ou de outra coisa qualquer que nos vai estruturando e nos vai tornando mais humanos.
C.P.: E foi esse o impulso que te levou à arte? Ou sentes que foi primeiro um impulso para a contemplação que depois se tornou ação?
P.L.: De certa maneira pode ter acontecido assim, mas numa altura em que eu me lembro muito pouco. Em criança era apaixonado por pintura e não fazia mais nada a não ser ler livros de pintura, até certa altura. Depois comecei a fazer outras coisas (risos).
C.P.: Como é que é um dia de trabalho teu?
P.L.: Difere muito. Se estiver numa onda de grande produção, venho para o atelier às 9 horas. Se estiver a trabalhar em desenho – tu sabes como é um trabalho pesado e repetitivo – portanto é uma cena de trabalho, não me pede grande coisa intelectualmente, e faço horário de trabalho: estou aqui às 9 horas, à hora de almoço como qualquer coisa, e depois fico aqui até às 6 horas. Se estiver noutra fase, com mais experimentações, vou experimentando coisas que penso durante a noite, e durante o dia venho para aqui e experimento – podem funcionar bem ou não. Ou então venho aqui passar só uma horita ou duas, a olhar para a parede... Isso na verdade é muito importante, até porque, como eu trabalho com projeções, ao olhar para a parede, com a luz sempre a mudar, há muitos trabalhos que vêm desses tempos “mortos” aqui no atelier.
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Paulo Lisboa (Lisboa, 1977), vive e trabalha em Lisboa.
Destacam-se as exposições Ciclóptico (MAAT– Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia, Lisboa, 2023), The Last Photon on the Retina (Galeria Sabrina Amrani, Madrid, 2023), Um esqueleto entra no bar… (Fundação Leal Rios, Lisboa, 2020), Asterismo, Sequência para Piano, Guitarra e Projector (Fundação Serralves, Porto, 2019), Imagines Plumbi, (Galeria Graça Brandão, Lisboa, 2018), Secção (Casa-Museu Medeiros e Almeida, Lisboa, 2016), Plasma (Galeria Graça Brandão, Lisboa, 2016), Phosphora (Galeria Graça Brandão, Lisboa, 2015) e Plateau (Sala Bebé, Lisboa, 2010).
Catarina Patrício
Doutorada em Comunicação pela NOVA-FCSH, na especialidade Cultura Contemporânea e Novas Tecnologias, realizou estudos de Pós-Doutoramento na mesma faculdade. Artista Visual, formada em Pintura pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa e Mestre em Antropologia pela NOVA-FCSH, é Professora no Departamento de Ciências da Comunicação e no Departamento de Cinema e Artes dos Media da ECATI [Escola de Comunicação, Arquitetura, Artes e Tecnologias da Informação], Universidade Lusófona, desde 2010. Investigadora integrada no CICANT, publica ensaios e expõe obra artística regularmente.