INÊS MENDES LEAL
03/10/2022
Inês Mendes Leal, 1997, Lisboa, licenciada em Arte Multimédia na Faculdade de Belas Artes de Lisboa em 2018. Teve uma breve passagem pela École de Recherche Graphique em Bruxelas no programa Erasmus+. Deu seguimento à sua estadia na Faculdade de Belas Artes de Lisboa com a pós-graduação em Discursos Contemporâneos da Fotografia que concluiu em 2019.
Por Filipa Almeida
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FA: Em primeiro lugar gostava que partilhasses connosco um pouco sobre ti e sobre o teu percurso.
IL: Tenho 24 anos, nasci em Lisboa e tenho três nacionalidades: portuguesa, francesa e suíça. Comecei o meu percurso na Universidade de Belas Artes, com a licenciatura em Arte e Multimédia de 2016 a 2019, seguida de uma Pós-Graduação em Discursos Contemporâneos da Fotografia, que terminei durante a pandemia. Fiz também Erasmus em Bruxelas pelo meio.
FA: Lembras-te de teres sentido que começaste a ser artista? O que te fez escolher enveredar por esse caminho? Sei que és uma pessoa muito curiosa e experimental, como tu própria te descreves, mas gostava de saber se houve algo mais específico que te trouxe ao mundo das artes, algum momento mais específico que te lembres. E o que quer isso dizer para ti, ser artista?
IL: Na verdade, na altura em que tive de escolher, ia estudar para a Suíça. Estava numa viagem aos Açores e decidi que afinal não era isso que queria, portanto desisti. Fiz um ano sabático e conheci muitas pessoas das Belas-Artes, e pessoas do mundo das artes no geral (músicos, bailarinos, artistas...), que me influenciaram a escolher fazer a minha lincenciatura lá. Também influenciou o facto de eu não me identificar com a Suíça no geral e de sentir que precisava de me indentificar mais com Portugal, de criar raízes aqui e de me sentir portuguesa, porque mesmo o meu ensino foi o Inglês... Quis sentir-me em casa cá e sentir que pertencia cá. Comecei a trabalhar com fotografia de autor, video-arte, performance, etc, com a influência de vários professores que me ajudaram a seguir esse caminho, como o Alexandre Estrela, a Maria João Gamito, o Daniel Pinheiro e o José Luís Neto, que foram pessoas que me abriram as portas para esse mundo que eu não conhecia. E foi aí que eu decidi ser artista. E ser artista para mim é ser-se obsessivo. É estar sempre a bater na mesma tecla. Tudo o que vês na rua se afunila e se direcciona para algo muito específico. É curiosidade. É dar valor às coisas banais, que são tão poderosas, e ao acaso.
FA: Tenho curiosidade em saber o que te marcou no passado. Lembras-te da primeira exposição / obra de arte que teve impacto para ti? Guias-te por alguma referência em particular?
IL: Há muitos anos fui a uma visita guiada no CCB e fiquei fascinada. Nessa altura marcou-me muito o trabalho do Marcel Duchamp, A boite-en-valise, o Urinol... O facto de tu de repente pegares num objecto que, lá está, é completamente banal, e o transformares, o glorificares. Essa revolução que o Marcel Duchamp trouxe interessou-me muito. Essa ideia de te apropriares de objectos marcou-me porque foi a primeira vez que tive acesso à arte conceptual, que até aí não existia na minha vida. Houve também um trabalho que fiz que foi importante. Tive uma cadeira que se chamava Theories of Knowledge onde tive de fazer um trabalho teórico sobre um tema à escolha. Na altura gostava de provocar os professores e escolhi fazer sobre nada. Sobre o nada. Mais tarde apercebi-me que foi dos trabalhos que mais me marcou e marca ainda hoje. O nada é tudo... Descobri que os nossos átomos são 99,9% de espaço vazio - somos feitos do nada. Foi recentemente comprovado que esse espaço vazio é energia. Como é que as coisas surgem do nada? Sempre perguntei isto desde criança. Houve ainda uma peça que me marcou muito, que penso ter sido a Maria João Gamito a mostrar-me, que é do Robert Morris e se chama "The box with sound of its own making" - é uma caixa com o som desta a ser feita no seu interior. Ou seja, é um circuito completamente fechado - para mim essa peça tocou a tudo, é completa. Não há mais nada sobre aquela caixa. É aquilo. Na altura até fiz um projecto inspirado nesta ideia que era uma roda de uma bicicleta ligada a um motor, portanto, à electricidade, e esse motor fazia com que a roda girasse. Tinha também um dínamo que ligava uma luz com o movimento. Era também um circuito fechado. A electricidade gera movimento e o movimento gera electricidade.
FA: Trabalhas muito a imagem e as suas possibilidades e desconstruções. Gostava de saber o que te interessa mais na imagem, que, nos seus mais variados formatos, está quase sempre presente nos teus trabalhos.
IL: A imagem foi a minha primeira abordagem à linguagem artística. Quando era mais nova fotografava e filmava tudo. Sempre foi o meu ponto de partida. Lia muito sobre a imagem. O trabalho do Joseph Kosuth "Three chairs" fascina-me e fala-nos de imagem - a visual, a mental, a dita... há muitos tipos de imagem. Esse foi o meu ponto de partida na fotografia de autor. A desconstrução aconteceu-me quando eu comecei a precisar de fotografar instalações minhas e quando decidi tirar a fotografia da parede. Fiz molduras de chão, imagens que giravam em motores, etc.
FA: Também sei que exploras muito o campo do invisível e daquilo que não nos é oferecido directamente. Vejo-o nas tuas imagens em repetição e desconstrução, que nos transportam para uma consciência da passagem do tempo e ganham movimento, tornando-se performativas. Porque te atrai tanto o não dito e o escondido? Achas que o teu papel como artista é trazer essas coisas ao mundo? Fazê-las falar?
IL: Na licenciatura fiz uma peça que era uma imagem enorme com um motor que se ia movimentando. É uma técnica que se chama slit scan - o rolo inteiro é uma fotografia - portanto vou rodando o rolo enquanto tenho o diafragma aberto e essas imagens são um contínuo em movimento. Nunca vias a totalidade da imagem numa única vez. Fiz também um trabalho a partir de fotocópias que era a desconstrução de uma imagem, o meu retrato, desde a escuridão até à máxima claridade e extinção. Volto sempre à ideia do circuito fechado. Introduzi a sequência também, que trouxe movimento ao meu trabalho e que questionava a diferença entre as imagens, o silêncio e o não dito de pequenos e milimétricos gestos... o movimento... Fiz imagens subterradas em cimento, congeladas, submersas... O invisível está comigo desde o trabalho sobre nada. É isso que me fascina. Como é que eu posso esconder coisas, como pode o observador aceder a essas coisas... se ele quer ou se não quer... É o que me interessa. Eu nunca revelei a imagem que escondi no cimento, porque isso na verdade não importa. No início da minha Pós-Graduação lembro-me de ter dito que queria fotografar o invisível.
FA: Estás neste momento numa fase de transição de atelier- sentes que nesta nova fase precisas de mais espaço para trabalhar e estás a experimentar outros mediums. O que é mais importante para ti num atelier?
IL: Começou a interessar-me sair da fotografia de parede e começar a fazer mais instalação, escultura, objectos. E precisava de mais espaço. O meu último trabalho sobre o invisível na imagem começou a parecer-me redundante e quis expandir para outras hipóteses. O importante é ter espaço para trabalhar.
FA: Este novo espaço está agora quase pronto e a mudança avizinha-se. Será o teu lugar de trabalho, fechado ao público, ou achas que poderá vir a ser também um colectivo culturalmente activo, com exposições etc? Lembro-me de falarmos sobre isto há uns meses, quando me deixaste o teu antigo atelier em Xabregas, e fiquei curiosa com essa possibilidade.
IL: Sim. Estou a concluir as obras de um espaço que é na Rua Buenos Aires nº7c e quero que seja aberto a várias coisas. Quero que seja um espaço que vai indo com o vento... com a maré. Um espaço fluído. Quero estar aberta a propostas e a experimentação. Não quero que seja necessariamente uma galeria mas mais um artist run space. Interessa-me haver diálogo e troca e quero dar voz a projectos que nunca tiveram espaço para existir. O meu espaço de trabalho vai ser no piso de baixo.
FA: Além da transição de atelier também vejo uma transição no próprio trabalho. Queres falar um pouco desse inverso que se tem manifestado? Sinto que as tuas preocupações com a imagem estão a mudar e a converter-se noutra coisa. Queres explicar?
IL: Esse inverso manifesta-se através da ponte que criei entre como uma ação externa afecta uma imagem e como se pode dar imagem a uma ação externa - que não se vê nem nos é dita, com o objectivo de representar como e que objectos visíveis podem retratar a invisibilidade. É neste caminho que está a ir o meu trabalho.
FA: Queres falar um pouco do teu interesse pelo vento, que associo tanto a ti?
IL: O interesse pelo vento veio desde muito cedo porque o meu pai sempre velejou e eu passei a minha infância num barco à vela. Sempre me fascinou muito essa ideia de viajar com o vento. Raramente usávamos o motor e o nosso barco era lindo, todo em madeira. É incrível o vento fazer-nos viajar. Leva-nos coisas, traz-nos coisas... movimento sempre. E é invisível... Olha, uma coisa que consegue dar imagem ao vento é o mar, por exemplo. Quando andei na vela em criança o que eu mais gostava era os dias de tempestade e de vento. E adorava ganhar velocidade com o vento, deixando um rasto na superfície do mar.
FA: Recentemente começaste a criar mobília modular na qual expões o seu trabalho de forma a tornar as pessoas parte das tuas peças. Isso interessa-te pelo comportamento que o público assume? Importa-te que haja uma mudança de atitude do público perante as tuas obras?
IL: Sim. Sempre senti que as imagens são imediatas. O teu cérebro desmistifica logo aquilo e já está. O vídeo pede mais tempo, por exemplo. Não é imediato... A mobília, além de tirar as coisas da parede e trazê-las para o chão, permite que as pessoas se sentem, e isso traz outra dinâmica completamente diferente.
FA: Participaste já em algumas exposições colectivas mas é a primeira vez que és seleccionada para um prémio (Arte Jovem do Millenium). A inauguração foi dia 1 de Outubro no Pavilhão 31 no Hospital Júlio de Matos e no dia 15 serão atribuídos os prémios. Queres falar um pouco das peças que apresentaste? Fizeste-as para esta exposição?
IL: Uma delas já tinha exposto no Útero mas não estava em Portugal e não assisti a nada. Chama-se "I forget what I was doing". Por norma não gosto de expor peças que já expus, porque aproveito a energia e motivação dos deadlines para fazer coisas novas, mas neste caso queria muito ver a peça exposta. E melhorei-a. Está diferente. Também estou a expor uma nova peça em metal, que fiz com a ajuda da Liliana ferreira do atelier da serafina. Estive um ano há procura de serralheiros para me ajudarem e nada... em tempo record a Liliana aceitou e fizemos a peça! Adorei fazer a peça com conjunto com ela, não podia ter sido melhor. Esta peça é espelhada, toda em inox polido. Parece quase um sinal mas depois tem uma bolacha que vai girando com o vento e espelhando o exterior. Idealmente é uma peça para estar no exterior, mas neste caso é activada com uma ventoinha. E também tenho expostas fotografias no acervo, trabalhos desde 2019. Uma fotografia é de uma ventoinha a soprar sobre fumo. É incrível pensar nisto: o vento leva pragas, leva espécies, leva tudo... É fascinante. O vento traz e leva muitas coisas.
FA: Sentes que se podem abrir portas novas com esta visibilidade? O que significa para ti esta exposição?
IL: Eu participei neste concurso com a ideia de que me abriria portas importantes. Conhecer coleccionadores, entrar no mercado... E, de facto, é o único prémio para jovens artistas que é de facto para jovens artistas! Os outros prémios expõem artistas já consagrados. Este interessou-me por isso e significa muito para mim. É uma oportunidade incrível de ver o que as pessoas acabadas de sair da Faculdade estão a fazer. E estamos unidos. Também quero salientar que há prémios para todos e isso trouxe um ambiente bom e uma colaboração muito importante entre todos os artistas. Desde a pandemia as pessoas estão mais colectivas e abertas a partilhar. É muito bom.
FA: Queres falar um pouco da residência no Mercado do Rato? Explicar o projecto?
IL: Vou começar agora a residência no Mercado, sim. É na Dona Ajuda. Basicamente vai ser uma residência numa loja, que deve ter sido um talho ou uma peixaria. Foi um projecto da Pousio que fez uma opencall e eu decidi participar porque sempre achei um espaço emblemático. Vou desenvolver um projecto artístico que vai inaugurar dia 21 de Dezembro e vou ter a companhia de uma escritora que também vai fazer a residência ao mesmo tempo que eu.
FA: Tens projectos novos em mente?
IL: Tenho em mente começar a fazer maquetes de projectos em escala pequena, fazer vários tipos de escultura que são mexíveis com o vento... Quero trabalhar com têxtil e bordados também. Depois há outro projecto que quero fazer, mas esse tem de ser com mais tempo. É uma viagem às quatro pontas de Portugal que eu já fiz e quero repetir. Gostava de a fazer de mota, sozinha, e fazer uma instalação em cada ponta. E queria também fazer uma espécie de documentário da viagem, de pensamentos que vão surgindo ao longo do tempo... Falta ainda a coragem e o tempo.
FA: Só por curiosidade, e para fechar esta conversa, que livro andas a ler?
IL: Nunca estou a ler só um livro... Demoro muito tempo a acabar os livros porque leio vários ao mesmo tempo. Tenho andado a ler Uma História Natural do Vento, da Lyall Watson; o Walkscapes, do Francesco Careri; e o catálogo da exposição da Yoko Ono em Serralves, que trouxe recentemente quando fui ao Porto. Fico irrequieta de saber que há tantas coisas para ler e não consigo focar-me num só livro.
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Filipa Almeida
Nasceu em Lisboa, em 1996, cidade onde vive e trabalha. Licenciou-se em Ciências da Cultura e da Comunicação, na Faculdade de Letras. Realizou uma Pós- Gradução em Curadoria de Arte na Nova FCSH, um curso de Estética na SNBA, e está neste momento a realizar o Mestrado em Práticas Tipográficas e Editoriais Contemporâneas na FBAUL.