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JOANA RIBEIRO
05/09/2021
Joana Ribeiro (Porto, 1994) é jovem e está desiludida.
O sistema que nos impele a continuamente consumir, que usurpa todos os discursos, e que se torna risível quando conseguimos criar dele algum afastamento são a sua matéria de trabalho.
Simultaneamente reflexão e acção. O que é que nos querem vender agora? A Joana mostra-nos as dinâmicas do consumo, do controlo das mentes, das mensagens subliminares. Tudo envolvido numa ironia sem malícia. Está desiludida, mas não é cínica: resta-nos a comunidade, resta-nos ser válidos - é o que apreendo da sua postura depois da nossa conversa. Considerando que a sua resposta inicial ao convite da Arte Capital foi um “nem sim, nem não”, justificado pela falta de clareza quanto à sua própria compreensão enquanto artista e quanto ao que supõe exigir para que se diga artista dentro dos moldes institucionais. Para subverter estas hesitações, e para que a conversa verse sobre o que, de resto, o seu trabalho nos mostra tão eficazmente - a sua postura quanto ao mundo - recuperei algumas perguntas presentes na obra de Joana, como motes de movimento para o conversar.
Esta conversa decorreu via videochamada Lisboa-Porto em Julho de 2020.
Por Catarina Real
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CR: Há muitas formulações na tua prática que me interessam e me interessa sobretudo vê-las acontecer, ou em acontecimento. Preparei algumas perguntas para podermos conversar, mas considerei a tua primeira resposta, e resolvi fazê-lo de outra forma, replicando e livremente citando questões que evocas nos teus trabalhos. As tuas perguntas perguntam muitos comos e acho que é precisamente a possibilidade desses comos que elas abrem que me interessa conversar contigo.
CR: Sentes-te sozinha na multidão?
JR: Há uma falta geral de sentido de colectividade. Seja nas artes, seja no mundo. Somos uma grande família distópica e por isso, sim, sinto-me sozinha muitas vezes.
Sinto também que vou angariando a minha própria multidão e, dentro de uma pequena comunidade, não me sinto sozinha, ao nível de opiniões e convicções.
CR: Queres falar um pouco sobre a tua comunidade, sobre quem e como é constituída?
JR: Há o meu grupo de trabalho mais antigo, os Artristas, que se fundou durante a nossa passagem pelas Belas Artes do Porto e que é constituído por mim, pelo Gonçalo Araújo e pelo Miguel Ângelo. Esse grupo juntou-se não só por causa da arte, mas também pela forma de articulação com as coisas. Ou seja: damo-nos bem a trabalhar, mas também nos damos bem a estar.
Agora partilhamos atelier dentro do espaço de um colectivo maior, a Rua do Sol.
CR: A Rua do Sol já constitui uma comunidade um bocadinho mais alargada.
JR: Sim. Já estão constituídos como comunidade há mais tempo e agora estão sediados no edifício do CCOP. A instalação e mudança dos Artristas para a Rua do Sol foi uma experiência que nos trouxe novas possibilidades de experimentar, e mesmo de programar coisas, com a galeria lá ao lado.
Embora não me sinta muito entusiasmada para o fazer neste momento... para planear eventos e acontecimentos.
CR: A razão pela qual se juntaram, a visão semelhante das coisas, suponho que se relacione também com a resiliência perante as instituições. Foi a recusa que vos juntou?
JR: Em parte, sim.
Quanto estávamos na faculdade, a nossa atitude sempre foi a de empurrar os limites; perceber até onde podemos ir e, muitas vezes fazendo uso do humor, ir esticando a corda. Fomos invertendo as situações e as propostas lançadas para fazermos as coisas, e o nosso percurso por lá, a partir dos nossos próprios moldes. Nós gostamos de falar e questionar.
Teria muito a dizer sobre o modelo de ensino, e de ensino artístico. O que falha sobretudo é tudo ser iniciado com conceitos finais acerca das coisas; em desenho ensina-me primeiro o tipo de traço, o modelo do que pode ser feito. Ainda não há liberdade para ser procurada a voz de cada um e sempre senti que isso era castrador. Vi muita gente a ficar desanimada e frustrada com este modelo de ensino.
CR: Tens medo que as corporações envenenem as tuas maças?
JR: Tenho. Já nem é medo, é a certeza de que ando a comer maçãs envenenadas há muito tempo.
Enquanto crescia sempre me pareceu muito simples arranjar uma maneira diferente de fazer as coisas, diferente do que é, em que temos empresas gigantescas a dominar o mundo. É uma coisa que me deixa zangada, termos um mundo assim quando poderia ser tão melhor. Talvez seja optimista ou ingénua, mas acredito que há coisas que poderiam ser feitas de formas mais justas.
CR: A estrutura está toda errada ou é o exacerbar da própria estrutura, o limite do seu funcionamento, que nos leva aos lugares de injustiça plena?
JR: O sistema está errado de raiz, mas também me parece muito difícil deitar tudo abaixo para construir um novo. Não sei se recuperaríamos dessa demolição.
Há coisas pequenas, que são óbvias, que podem ser alteradas. Como a educação: uma sociedade que passe a ensinar o sentido crítico, para que se tomem decisões conscientes. Porque é que as pessoas aceitam e seguem discursos não democráticos?, por exemplo. Muitas pessoas estão tão cansadas, não têm paciência para parar e pensar por si próprias, e muitas vezes não tem essa capacidade. Limitam-se a consumir estes discursos, porque se os pensassem criticamente não os aceitariam... Já não consigo ver as notícias, deixam-me muito zangada. Dá-me vontade de olhar à volta para perceber se mais ninguém está a ver o mesmo que eu, e que não está certo. É frustrante.
CR: Compreendo a revolta e frustração.
JR: E ao mesmo tempo... como é que conseguimos equilibrar a revolta com o que nos é dito, constantemente, de nos preocuparmos connosco, de organizar a vida...
CR: … Como é que se brinca à vida?
ou, voltando atrás, se pensasses a partir de uma base zero, o que construías?
JR: Não seria necessário muito. Se começássemos do zero e as pessoas olhassem umas para as outras e compreendessem que são, de facto, iguais, iriam ver que a liberdade individual acaba no início da liberdade do outro. Se essa fosse a premissa, o resto seria deixar andar. [riso] A partir do momento em que as pessoas estão cientes dos seus limites para com os outros e ninguém pisa ninguém, parte dos problemas estão resolvidos.
Cada um teria a produtividade e capacidade que tivesse, não teria de ser submisso a um sistema estático, seria dinâmico. Há gente para fazer tudo o que é preciso, mas só se tornará sustentável se fizermos coisas que não estão apenas centradas em nós, mas também abertas aos outros.
E a partir daí, continuar. Teríamos de abdicar de muitos confortos para começar de novo.
Mas mesmo agora, e mesmo não pensando em começar do zero, teremos de abdicar de muitas coisas para ver se isto aqui, o mundo, não rebenta daqui a um par de anos.
CR: Que expectativa é que há na arte?
JR: Depende. Dantes eram os bons artistas versus os outros.
Agora há um sistema mais democrático, embora mal organizado. Na arte há uma hierarquia, existem os grandes artistas e galeristas lá no topo, depois há uma camada do meio, de gente que ainda consegue sobreviver maioritariamente da arte, e depois há aquela malta que só lhe tem gosto, como tem à vida e cuja expectativa é estudar o mundo através de processos associados à arte. Vejo a malta do fundo da hierarquia envolta em areia movediça e mesmo assim a espernear o máximo que pode. Muitos desistem ou ficam desiludidos, como eu. A arte não lhes traz retorno suficiente para sobreviver, a menos que se adaptem aos métodos e gostos criados pelo mercado.
A expectativa difere consoante o patamar da hierarquia em que estás e cada expectativa tem os seus problemas. Talvez as minhas próprias expectativas em relação à arte possam estar trocadas, mas fico a pensar... porque é que havemos de continuar a produzir coisas que não levam a lado nenhum?… coisas vazias mas que valem muito dinheiro porque alguém assim o decide. Consigo também defender a posição contrária. Cada um pode fazer o que bem lhe apetecer, só que para isso ser funcional, o sistema tem de ter mudado.
CR: Qual seria a expectativa errada?
JR: A partir do momento em que um artista tem visibilidade... talvez tenha a obrigação de pensar no que pode fazer para contribuir para alguém mais para além de si próprio. Quando se tem o poder de mudar alguma coisa, escolher fazer mais peças decorativas e continuar a fazer tudo da mesma maneira é o mesmo que se dizer que se deixou de ser artista para ser só um empresário, ou um mercenário da arte. Certas pessoas dizerem-se artistas, quando se tornaram apenas uma fábrica de objectos, faz-me sentir mal. Eu digo que quero ser artista, mas essa não é de todo a imagem com que me identifico. Daí surgiram os Artristas, queríamos ser algo parecido com um artista, mas diferente. Introduzimos a gralha.
CR: Qual seria uma imagem de artista a que quisesses corresponder?, no sentido de continuidade de exemplos, de modelos.
JR: Para a arte funcionar como eu gostaria e para que eu possa olhar para um modelo de artista e pensar que gostava de ser seu semelhante, teria de haver uma mudança muito profunda.
No entanto, gostava de fazer alguma coisa que tivesse importância, a que as pessoas pudessem não ficar indiferentes e que fosse construtivo, para mim e para os que estão à minha volta. Pode ser de uma forma muito simples; mostrando modos alternativos de vida, ou chamando à atenção para o quão ridículos são alguns dos nossos comportamentos humanos. Gostava de nos confrontar com o óbvio e absurdo das coisas.
A existência é absurda!, mas já que aqui estamos... talvez possamos pensar em modelos melhores de existência. Para todos.
CR: E aí entra a ironia?
JR: Sim.
CR: E ela consegue ser construtiva?
JR: Sim.
Talvez a forma como te apresentas possa ter algo a dizer por si só. Apresentar a realidade é já um gesto. Por se juntar várias partes da realidade, o discurso traz ironia.
Estes sentimentos, ou estratégias, como a ironia ou o humor, são mais leves do que outras estratégias, e funcionam, são verdadeiros na mesma. É mais fácil trabalhar no âmbito da ironia, porque é mais fácil fazer com que as pessoas criem empatia dessa forma. A ironia e humor são acedidas facilmente pelas pessoas e depois isso pode ser aprofundado, a partir do momento em que cativas alguém.
CR: Há algumas coisas que funcionam como estratégia, mas o que o torna crítico, como o que fizeste com o documentário “Meio Quilo” de 2016, é a alteração de contexto.
JR: Sim, nesse caso quisemos conhecer o contexto em que se produzia aquele programa de televisão e mostra-lo fora da televisão. Era isso que referia quando dizia juntar diferentes peças de realidade, porque é pegar nelas, e tirá-las do contexto. Mistura-las para serem vistas de outras forma.
CR: Se fizesses uma peça para a televisão, usarias a mesma estratégia?
JR: Depende. Se tivesse oportunidade de aparecer, ou de ter algum programa público na televisão, iria querer que esse objecto fosse coerente com aquilo em que acredito. E acho que, por isso, não conseguiria ir à televisão, fazer um trabalho para a televisão, sem me referir ao próprio contexto. Talvez seja uma tentativa de quebrar aquele contexto: colocar o meu contexto, a minha concepção de realidade, na televisão e aí criar uma dinâmica nova, abrir uma brecha, por onde ele se desconstruísse.
CR: Como é que um homem se devia sentir ao menos uma vez por dia?
JR: Devia sentir-se válido.