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FÁTIMA RODRIGO
28/10/2023
Desde a sua primeira individual Romantic Elegant (2013), o trabalho de investigação/criação de Fátima Rodrigo (Lima, 1987) tem como ponto de partida a cultura popular para evidenciar – através de vídeo, instalação, têxteis e desenho – várias problemáticas ainda presentes na América Latina.
A sua instalação mais recente, Contradanza (2023), foi encomendada pelo curador Khanysile Mbongwa para a recentemente concluída 12ª edição da Bienal de Liverpool intitulada uMoya: The Sacred Return of Lost Things. Neste mês de Outubro, e sob os auspícios da galeria Livia Benavides, apresentou na Frieze London um projecto em duo com Sandra Gamarra, e a partir do dia 28 participa na exposição Carpet Land: Critical tapestries com curadoria de Joachim Naudts no Extra City (Antuérpia). Além disso, durante a primeira metade de 2024 fará parte do programa de residências da Pro Helvetia (Suíça).
Conversei com Fátima sobre cultura popular, reproduções, representações e apropriações.
Por Luisa Fernanda Lindo
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Luisa Fernanda Lindo: Já se passaram 10 anos desde a tua primeira individual Romantic Elegant (2013), na qual reproduzias um cenário televisivo dos anos setenta. Acho interessante como essa primeira acção em que ressaltavas a presença de elementos de vanguarda na cultura popular se converteu no desenvolvimento de um conceito que abraça a tua produção até agora. O que te motiva a continuar a trabalhar em torno da cultura popular?
Fátima Rodrigo: O imaginário das telenovelas e da música romântica foi essencial na construção da minha identidade como mulher latino-americana. Quando comecei a fazer arte, a cultura popular serviu-me como um recurso para resolver certas questões e compreender algumas contradições pessoais. Com o passar do tempo, a cultura popular converteu-se numa espécie de centro nevrálgico na minha investigação e, até hoje, continua a ser um meio que me permite evidenciar problemáticas ou processos sociais da região, de forma acessível e próxima. A cultura popular, ou a indústria do espectáculo latino-americana, representam um lugar comum. Incorporar elementos desse universo no meu trabalho tem permitido que a audiência (que muitas vezes não tem nenhum tipo de ligação com a arte contemporânea) se identifique, reconheça e contextualize. Por exemplo, a série Escenarios põe em evidência um processo parecido: entre os anos 60 e 80, a indústria do espectáculo converteu-se num canal de difusão das tendências de vanguarda artística europeia para um público que não fazia parte da 'elite intelectual'.
LFL: O meta é uma marca na tua produção artística e é patente em três acções que parecem retroalimentarem-se: reprodução, representação e apropriação. Reproduzes um cenário da cultura popular que remete a uma expressão de outro espaço/tempo (modernismo/vanguardas) que, por sua vez, se alimentada de outras expressões (povos originários).
FR: Sim. Boa parte da minha obra reproduz padrões estéticos ou recursos visuais de outra época. Isto permite-me traçar uma linha de tempo alternativa ou paralela à história da arte oficial. Através deste exercício de tradução, reprodução e representação, tento questionar como se definiu a modernidade ao longo da história e pôr em evidência que tipos de práticas foram excluídas desta definição e especular sobre o porquê.
LFL: A tua obra, em geral, leva-me a pensar na conexão entre a apropriação na arte e o extractivismo na natureza. Enquanto que a extracção de recursos naturais não renováveis acarreta o perigo de que estes desapareção, a apropriação das expressões de povos originários – guardando as distâncias – acarreta o risco destes serem explorados e invisibilizados.
FR: Penso que os mecanismos de extracção e de invisibilização estão sempre ligados e alimentam-se mutuamente. Por exemplo, a profunda crise climática que vivemos põe em evidência como a história glorificou os métodos do capitalismo como modernos e avançados, relegando para a periferia as cosmovisões ‘do passado’ que coexistem harmoniosamente com a natureza, assim como as pessoas que as praticam. De uma maneira muito similar, a história da arte marginalizou e excluiu práticas “não-ocidentais” ou “populares” da sua narrativa e, como consequência, grande parte da arte contemporânea continua a ser feita por e para as elites. Embora sinta que isto está a mudar e que existem iniciativas importantes que enfrentam esta norma, como a Bienal de Liverpool 2023 ou a Documenta 15, há um longo caminho por percorrer.
LFL: Numa conversa publicada em Mañana mencionas: “Parecia-me relevante evidenciar este processo através do qual nós, os latino-americanos, nos reapropriamos da nossa própria simbologia. […] Interessa-me falar das hierarquias que existem dentro do mundo da arte e como até hoje se continua erroneamente a associar o mundo andino com o passado, nunca com a modernidade e muito menos com o futuro.”
Penso em Pista de baile (2019) e em Contradanza (2023), a tua última instalação encomendada para a Bienal de Liverpool, e parece-me pertinente o lugar a partir do qual enuncias porque não te posicionas como alheia a essa apropriação. Pelo contrário, reproduzes formas que se apropriaram de outras, um movimento que já vens desenvolvendo justamente para tornar visível os elementos que a compõem.
FR: Sim. O meu objectivo ao reproduzir é precisamente evidenciar processos históricos, levantar hipóteses sobre estes processos e as consequências que têm no mundo contemporâneo. Penso que a apropriação pode por vezes ser problemática e, por isso, quando explico o meu trabalho tento deixar claro qual é o objectivo deste exercício. Por exemplo, neste momento o trabalho têxtil está muito presente na minha obra e para desenvolver as minhas peças mais recentes utilizei técnicas que aprendi. Foi importante para mim, sobretudo pelo discurso que está por trás das obras, não terceirizar processos artesanais que eu não domino ou que pertencem a tradições milenares de comunidades às quais não pertenço.
LFL: O questionamento à cultura popular tem impacto nas formas de ver – que não deixam de ser aprendidas, como mencionava Berger (1972) – e noto que, de Hologramas (2019) até Ejercicios de resistencia (2023), os olhos ganham presença na tua obra.
FR: Os olhos apareceram pela primeira vez na série Hologramas, na qual reinterpreto os olhos das máscaras representativas de diferentes celebrações andinas que se usaram como fundo para fotografias de moda. Nestas imagens, protagonizadas por modelos que representam o estereótipo da beleza ocidental, as tradições e as pessoas que as praticam são retratadas como elementos decorativos intercambiáveis. A série procura remover elementos do fundo destas imagens, dar-lhes protagonismo, e assim reverter a hierarquia imposta nas fotografias. Ejercicios de resistencia contrapõe a estética da alta costura europeia com alguns símbolos relacionados com manifestações de resistência. Aí reaparecem os olhos das máscaras, de maneira mais sintética e abstracta. Acontece frequentemente no meu trabalho que símbolos que inicialmente tinham um propósito claro e específico, se repetem, se transformam e adquirem diversos significados.
LFL: Acho interessante a escolha da luva em Ejercicios de resistencia porque, assim como há muitas histórias sobre a sua origem, o seu uso está difundido em diversas culturas e práticas. O que motiva a escolha deste elemento como suporte da tua obra?
FR: No caso específico dos Ejercicios de resistencia usei luvas de couro, utilizadas para diversos tipos de trabalhos pesados. Isto permitia-me pôr em contraste os elementos visuais e simbólicos que mencionei anteriormente e, também, fazer um comentário sobre a mão de obra na qual se sustenta historicamente o capitalismo. Além disso, a obra traz uma estética que costumamos ver exclusivamente através das vitrines de grandes museus ou nas montras de lojas de luxo ao uso diário e quotidiano dos objectos. Enquanto tentam apagar as fronteiras impostas entre o que se conhece como 'alta cultura' e 'baixa cultura', as peças representam um sentido de identidade fluido, híbrido e complexo.
LFL: Podias contar-me como ocorre a escolha de materiais precários na fabricação das tuas peças – cenários construídos com papel, cartão e MDF; nos desenhos feitos com marcadores; os tapetes confeccionados com purpurina colocada directamente e sem adesivo sobre o chão; ou o uso de lantejoulas em teares e aplicações? Tudo isto leva a uma reflexão acerca da simulação.
FR: Durante os meus últimos anos na escola de artes senti o impulso de fazer grandes obras usando materiais e maneiras de trabalhar que se afastaram de um tipo de produção que eu considerava muito 'masculina’. Para fugir do ladrilho e do cimento, que estavam na moda na época, recorri a materiais nos quais predominava a cor. No início, tive que procurar opções que pudesse pagar: em vez de usar luzes LED, utilizava papéis ou plásticos de cores translúcidos, por exemplo. Aos poucos fui construindo e aperfeiçoando uma linguagem muito pessoal baseada na escolha de materiais específicos e esta linguagem foi-se vinculando organicamente ao meu discurso. É sempre um desafio (que eu acho emocionante) transformar materiais, normalmente utilizados para decorar ou fazer manualidades, e conseguir que se sustenham numa instalação de grande escala dentro de uma sala de exposições.
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Fátima Rodrigo (Lima, 1987) estudou Artes Plásticas na Pontifícia Universidade Católica do Peru. Fez parte do programa de residência na Art Explora e na Cité des Arts (Paris, 2022); Gasworks – Bolsa Artus (Londres, 2018); e Flora (Bogotá, 2017). As suas exposições individuais mais recentes incluem Plató América, em colaboração com Jaime Oliver (MALI, Lima, 2019); Fiesta en América (ICPNA, Lima, 2019); Lo que un día fue no será (Galería 80M2 – Livia Benavides, Lima, 2018); Mala Mujer (Galería Valenzuela Klenner, Bogotá, 2018); UNAP (Many Studios, Glasgow International Festival, Glasgow, 2016). Participou em inúmeras exposições colectivas, incluindo a Liverpool Biennial 2023, Reino Unido; 22ª Bienal de Sydney, 2020; Ars Electronica, Linz, 2020; Weavers of the Clouds: Textile Arts from Peru, Fashion and Textile Museum, Londres, 2019; El desastre es para siempre, Museu da Cidade de Querétaro, México, 2019. O seu trabalho foi publicado em Tomorrow: Themes in Contemporary Latin American Abstraction (2022), editado por Cecilia Fajardo-Hill, e 77 Artistas Peruanos Contemporáneos (2017).
Luisa Fernanda Lindo (Lima, 1979). Curadora, escritora e trabalhadora da arte. Licenciada em Letras pela Universidade de Buenos Aires (Argentina) e Mestre em Estudos Curatoriais pela Universidade de Navarra (Espanha). Obteve diversas bolsas e residências, como a Bolsa de Pós-Graduação da Fundación Carolina 2018–2019; Bolsa de Excelência em Programas Especiais para Artistas da AMEXCID/SRE (México, 2015); Bolsa de Residência Artística da SEGIB e Casa de Velásquez (Madrid, 2015); entre outras. É directora e curadora do SUERO, espaço temporário de reflexão, criação e exposição de arte contemporânea.
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Este artigo foi originalmente publicado na revista Artishock (Chile) com quem a Artecapital desenvolve uma colaboração com o objectivo de aproximar os leitores portugueses de temas da América Latina e viceversa.