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CARLOS ANTUNES
Arquitecto de formação, com uma sólida e premiada carreira na área, Carlos Antunes é director do Círculo de Artes Plásticas de Coimbra (CAPC), doutorando no Colégio das Artes da Universidade de Coimbra e também director da Bienal Anozero, que neste momento tem a decorrer a sua segunda edição, com o tema “Curar e Reparar”. A propósito deste evento, Carlos Antunes conversou com a Artecapital sobre a proposta curatorial, a cidade e os seus espaços.
Por Liz Vahia
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LV: É desde 2010 director do CAPC, Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, uma das mais antigas instituições de promoção da arte contemporânea do país. Quais é que eram as directivas fundamentais com que iniciou este percurso e qual o balanço que faz actualmente? Parece-me que o CAPC tem tido cada vez mais visibilidade, não só na cidade como também na imprensa nacional.
CA: O Círculo, assim gosto de o nomear, sempre soube ser uma estrutura fraturante e um porto de abrigo das vanguardas artísticas. Foi assim nos anos 70, com Alberto Carneiro, Túlia Saldanha e Ernesto de Sousa que considerava tratar-se da única “sociedade artística deste país que mantém um espírito de workshop” (num texto memorável cujo título era, significativamente, “A vanguarda está em Coimbra, a vanguarda está em ti”). Também nos anos 80 soube manter a capacidade de atrair os artistas mais relevantes, período no qual realizaram as suas primeiras exposições artistas como José Pedro Croft, Pedro Cabrita Reis ou Ana Léon. A década de 90 foi marcada pela direção de Vitor Dinis, que soube manter a intensidade da estrutura, possibilitando a um vasto número de artistas, curadores e críticos dessa época que iniciassem no CAPC o seu percurso. Se nas décadas anteriores, o Círculo ocupa reconhecidamente o seu justo lugar, creio que a história ainda não reconheceu ao Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, em geral, e a Vitor Diniz, em particular, esse extraordinário trabalho realizado na década de 90, que não me canso de relevar.
Quero com isto apenas dizer que sinto a responsabilidade de gerir os destinos de uma instituição pela qual os meus antecessores fizeram um trabalho de altíssima qualidade, e espero estar à altura dessa responsabilidade. Mas não me competirá a mim fazer um balanço da minha ação no Círculo. Não deixo porém de dizer que tomei consciência que o Círculo, apesar da sua extraordinária história de produção e divulgação de arte contemporânea, permanecia ainda relativamente desconhecido de uma parte substancial da cidade. Ora é mais fácil dizer que a responsabilidade desse desconhecimento está nos cidadãos que, reféns da sua ignorância, não alcançam a complexidade do trabalho que desenvolvemos. “E se pensássemos ao contrário?”, coloquei-me questão. “Será que estamos a fazer todo o trabalho de divulgação para que o trabalho dos artistas possa interpelar um público mais alargado?”. Concluímos que manifestamente não estávamos a fazer tudo o que poderíamos fazer. Quero aqui deixar claro que não estabeleço nenhuma relação direta entre número de público e qualidade artística. Nem “de encontro”, nem “ao encontro” do público — assim deve ser feita a obra de arte, arredada dessa pressão. Mas quem acompanha o enorme esforço dos artistas para concretizar uma exposição, não pode, como produtor e programador, deixar de sentir a responsabilidade de dar visibilidade a esse trabalho. É o mínimo que podemos fazer pelos artistas.
Em resumo, posso apenas dizer que me pareceu claro, desde o primeiro momento, que se toda ação artística é interpelação, era necessário criar estratégias que amplificassem o trabalho dos artistas, chegando a um número de público maior.
O Círculo teve durante anos o seu público fiel, culto e com hábitos regulares de experiência da obra de arte. Mas era um público reduzido, um quase clube de poetas mortos. É fundamental, não tanto para o Círculo, mas principalmente para a cidade que esse público — culto e com hábitos regulares de experiência da obra de arte -— aumente, para que exista massa crítica que possa tornar natural como a respiração a inscrição de projetos artísticos na cidade, quer sejam do Círculo ou de quaisquer outras estruturas, possibilitando até o aparecimento de novos projetos.
A bienal surge como possibilidade de concretizar este desejo a partir da circunstância nova de “Coimbra, Universidade e Rua da Sofia” terem sido inscritas na lista da UNESCO de bens património da Humanidade. Vivemos num pequeno país ainda muito polarizado entre Lisboa e Porto, e, pese embora o reconhecimento do nosso trabalho, existia muita resistência à deslocação de público externo às nossas exposições, situação que tem vindo a mudar. As distâncias, são, no essencial, coisa mental, e devemos criar as condições que tornem natural e fácil uma deslocação a Coimbra. A bienal, pela sua escala, cria essas condições de atratividade, e naturaliza o retorno para eventos mais pequenos, isto é, naturaliza a viagem. Daqui à maior presença mediática, é um passo curto e também natural. Quero também dizer que Coimbra é muito mais do que a bienal, e é hoje bastante difícil, até para um público especializado, acompanhar toda a produção cultural da cidade.
LV: É também director da Anozero – Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra, agora na sua segunda edição, e que se dedica este ano ao tema “Curar e Reparar”. Um tema que implica não só a ideia de cuidado, de recuperação, mas também de uma atenção, na arte, no património, na cidade. Como arquitecto, e como habitante da cidade de Coimbra, este é um tema que pessoalmente lhe é caro?
CA: Sim, naturalmente. O papel dos arquitetos, para além do desenho da cidade, é também o de reificar a cidade, torná-la presente, torná-la legível, explicitá-la nas suas forças e nas suas fraquezas, fazer com que se repare nelas, ativando processos de cura. Ser arquiteto é também curar e reparar continuamente as cidades, pelo que este tema não me poderia ser mais caro. Mas estou certo que não foi por uma qualquer razão piedosa para comigo que o Delfim Sardo terá escolhido o tema. Curar e reparar é, na proposta de Delfim Sardo e Luiza Teixeira de Freitas uma bienal sobre a fragilidade, sobre a nossa natureza frágil, sobre a fragilidade do mundo e sobre a imperativa necessidade de curarmos as feridas que decorrem dessa fragilidade e tomarmos consciência, repararmos — na sua dupla aceção — nessa fragilidade. É uma bienal sobre a ética do cuidado e especialmente sobre a memória, memória que nos permite uma maior consciência de nós e do mundo. Não é uma bienal sobre a piedade, nem parte de nenhuma visão cândida da arte como processo de cura. Como afirmam no seu texto, “Em si, a arte não cura nada. Também não revoluciona, nem rompe, nem corta, mesmo que finja fazê-lo: encena, por muitas formas, esses processos e, no melhor dos casos, propõe-nos que reparemos”.
LV: No texto do guia desta segunda edição da bienal, escreve que a “Anozero nunca foi apenas um começo, ou um retomar do fôlego, em relação àquilo que culturalmente Coimbra foi e está a ser, mas também um programa concreto de acção para a cidade concreta, contemporânea e viva.” Coimbra era uma cidade muitas vezes acusada de ser um local transitório entre a vida académica e o futuro mercado de trabalho, quase sempre a voltar ao zero por cada ano lectivo que começava. Acha que esta é uma situação que se alterou e que, no campo das artes, muito contribuiu o movimento recente da reabilitação dos museus da universidade, da instituição do Colégio das Artes e respectivos cursos, e outras actividades que denotam uma vontade de fixação e continuidade, de criação de uma imagem diferente da cidade de Coimbra?
CA: Não acredito em atos heroicos que tendem a ser fogos fátuos. O trabalho em simultâneo de muitos agentes, preferencialmente de forma articulada, é o que verdadeiramente pode transformar ou fortalecer as cidades. Ora, como bem diz, a reabilitação dos museus da universidade, da instituição do Colégio das Artes e respetivos cursos assim como o potencial de crescimento do Convento São Francisco e, estou certo, o Anozero, começam a criar as condições de atração e fixação de um público e de um conjunto de atores do território da produção artística que contribuirá certamente para transformar a cidade e esta possa em definitivo deixar de ser um lugar de transição entre a vida académica e a vida profissional.
LV: Esta bienal ocupa vários espaços da cidade, desde a Alta e a zona da Universidade até à outra margem do rio e ao relativamente desconhecido Mosteiro de Santa Clara a Nova, que todos vêem ao longe, mas na realidade nunca viram de perto.
Cada vez mais a arte e a arquitetura se relacionam, e isto passa também pelos espaços em que a arte se apresenta, estando a criação contemporânea bastante contaminada pelas características físicas e sociais dos locais onde habita. Concorda? É este o caso nesta bienal?
CA: Este é, sem qualquer reserva, o caso desta bienal. O espaço, na sua complexidade fenomenológica, social, histórica e política, reúne condições excecionais de estímulo para a criação artística.
Os edifícios de significativo valor patrimonial são especialmente capazes de desafiar os artistas. Pela sua longa história foram sempre objetos de ocupações por vezes contraditórias ou complementares. A história continua a ser o grande obreiro que deixa marcas profundas de uso nos edifícios, marcas essas que se constituem como matéria apetecível para a produção artística. Sendo esta bienal pensada desde a sua génese como um plano de ação concreta para a cidade concreta, a partir da sua dimensão patrimonial, como referiu, citando o texto do catálogo, essa contaminação é precisamente uma das qualidades que buscamos para a bienal. e esperamos que os artistas potenciem, ativando continuamente, ao longo destas duas edições e das edições que se seguirão, os edifícios, permitindo a sua releitura e complexificação do seu significado simbólico. Como se os edifícios passassem a ser outra coisa, na presença das obras que recebem. Foi assim na 1.ª edição da bienal com o Criptopórtico de Aeminium, no Museu Nacional Machado de Castro com as propostas de Rui Chafes e Pedro Costa, ou com a intervenção de Cabrita Reis na Sala da Cidade, como julgamos que será a partir desta edição o refeitório do Mosteiro de Santa Clara-a-Nova com a escultura de Fernanda Fragateiro ou o grande corredor do piso térreo deste edifício com a instalação de Julião Sarmento.
LV: Nesta edição da Anozero, o que é que o público que se desloca a Coimbra não pode perder? Ou seja, que percurso aconselha a quem visita a bienal por um dia?
CA: É bom que se inscreva na cabeça de todos que a visita à bienal de Coimbra não deverá ser inferior a dois dias. É este o tempo e o espaço mental mínimo que reservamos para eventos desta escala em todo o mundo e é este o tempo mínimo necessário para visitar o Anozero e a cidade. Toda a bienal é pensada como uma exposição única, embora poli-localizada. É essa a sua matriz curatorial e isso tem sido reiteradamente dito pelos curadores. Como todas as exposições, tem obras de intensidades diferentes, pelo que, para apanhar a sua respiração, é fundamental ver tudo. Sem desprimor para qualquer participação, são especialmente impressionantes as propostas produzidas expressamente para a bienal, por serem aquelas permitem e potenciam relações mais intensas entre os edifícios que as acolhem e as obras. Aconselharia que se iniciasse pela Sala da Cidade, com Paloma Bosquê e Matt Mullican, fazer de seguida toda a Alta e Universidade, e terminar no mosteiro de Santa Clara-a-Nova com a instalação vídeo de William Kentridge.
Paralelamente, decorre uma série de outras atividades que designamos por “convergentes”, cujas curadorias não são da responsabilidade direta dos curadores, mas foram definidas em articulação com a equipa curatorial que convocam outras áreas artísticas: arquitetura, design, cerâmica, literatura, música e artes de palco.