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O RETORNO DO ANIMAL. ABANDONAR E REGRESSAR A MCCARTHY: JAMES FRANCO ADAPTA CHILD OF GOD AO CINEMAANA BARROSO2014-04-17O RETORNO DO ANIMAL: ABANDONAR E REGRESSAR A MCCARTHY: JAMES FRANCO ADAPTA CHILD OF GOD AO CINEMA ANA BARROSO 2014-04-17 James Franco, um americano de ascendĂȘncia lusa (as suas origens familiares estĂŁo radicadas na ilha da Madeira) tem desenvolvido uma carreira prolixa no mundo artĂstico norte-americano, sendo o seu trabalho como actor aquele que lhe tem dado mais visibilidade, mas aspirando a uma carreira de escritor e realizador mais consistente, começando o seu empenho e arrojo a conquistarem um merecido lugar descentrado na massiva cultura americana e, pela influĂȘncia que lhe conhecemos, um pouco por todo o mundo. Isto arrasta uma responsabilidade maior perante o cĂąnone, mas paradoxalmente, permite um distanciamento do mesmo, o que permite discutir possibilidades, contaminaçÔes, purismos e, cada vez mais fundamental, a necessidade de um pensamento crĂtico e centrado. Franco Ă© um ĂĄvido e apaixonado leitor dos clĂĄssicos da literatura norte-americana e, na sua inflamação literĂĄria, dispĂŽs-se a fazer o aparentemente impossĂvel: adaptar Faulkner e McCarthy ao cinema. E, da intenção em adaptar Blood Meridian ao cinema, recuou a William Faulkner para voltar a McCarthy, mas agora a Child of God (obra publicada em 1973). De Faulkner adaptou o romance polifĂłnico e experimental As I Lay Dying (publicado em 1930), unanimemente considerado pela crĂtica como um dos melhores romances americanos do sĂ©culo passado. A sua tĂ©cnica de stream of conscienceness tem-lhe valido a classificação de inadaptĂĄvel ao grande ecrĂŁ, mas Franco nĂŁo se deixou intimidar e insolentemente fez o impossĂvel. O filme fez o circuito dos festivais e tem recebido crĂticas pouco entusiastas, mas essa nĂŁo terĂĄ sido a razĂŁo que levou Franco a abandonar Blood Meridian. Embora vago nas razĂ”es apresentadas, nĂŁo serĂĄ de menosprezar a violĂȘncia da obra como o entrave mais duro de resolver e, atĂ© ao momento, impossĂvel de ultrapassar. VĂĄrios realizadores jĂĄ o tentaram fazer: Todd Field, Michael Hanneke e Ridley Scott sĂŁo alguns deles. Ridley Scott disse numa entrevista que chegou a escrever o argumento, mas âo problema Ă© que Ă© muito selvagem.â A prosa violenta de McCarthy tem fascinado imensos realizadores e Todd Field explicou porquĂȘ: âOs seus romances analisam o nosso Ăntimo, os dois lados da violĂȘncia que coexistem em cada acto selvagem: a força brutal que acompanha um objectivo e o medo e desespero da fraqueza. Adam Lee Davies, crĂtico do jornalThe Guardian apontou as dificuldades maiores da adaptação da prosa de McCarthy ao cinema, quer ao nĂvel da produção, quer da recepção: âOs seus romances hĂĄ muito que intrigam e fascinam os realizadores pela evocação lĂrica do imaginĂĄrio cinematogrĂĄfico assente nas paisagens mĂticas, na violĂȘncia selvagem e aleatĂłria e nos diĂĄlogos curtos e informais. No entanto, por essas mesmas razĂ”es, os seus livros sĂŁo considerados como demasiado descomprometidos, densos e moralmente complexos para uma adaptação fĂĄcil (âŠ) sĂŁo demasiado literĂĄrios e negros para um pĂșblico generalista.â Apesar destas contigĂȘncias, 4 romances [1] foram jĂĄ adaptados ao cinema: Pretty Wild Horses (em 2000), de Billy Bob Thornton; No Country for old Men [2] (em 2007), de Joel e Ethan Cohen; The Road (de 2009) de John Hillcoat e Child of God, de James Franco. Exceptuando o filme dos irmĂŁos Cohen, os outros dois nĂŁo foram nem sucesso de crĂtica, nem de pĂșblico, mas o sucesso comercial de No Country for Old Men (o filme recebeu tambĂ©m 4 Ăłscares, incluindo o de Melhor Filme) tornou McCarthy num dos escritores mais interessantes e requisitados pelos produtores de Hollywood e, talvez por essa razĂŁo, McCarthy tenha decidido escrever um argumento cinematogrĂĄfico, quando os seus leitores estavam Ă espera de mais um romance. McCarthy tornou-se num autor com possibilidades comerciais, porque, como apontou Joe Penhall, acontecimentos como o 11 de Setembro parecem ter preparado o pĂșblico para aceitar melhor cenas de violĂȘncia arbitrĂĄria e extrema, e ainda, desprovida de qualquer reflexĂŁo moral. As consequĂȘncias do imperialismo Americano tornaram-se visĂveis e reconhecĂveis para todos nĂłs. No entanto, apesar desta disponibilidade do pĂșblico, o filme The Counselor foi um fracasso comercial e a recepção crĂtica bastante ambivalente. NĂŁo podemos esquecer que o pĂșblico leitor nĂŁo Ă© necessariamente o mesmo que vai ver o filme. No entanto, e cada vez mais, existe uma migração do pĂșblico leitor para o pĂșblico espectador e vice-versa. Os leitores de um determinado livro tĂȘm quase sempre a curiosidade de ver a adaptação desse mesmo livro ao cinema e, cada vez mais frequentemente, depois de se ver um filme adaptado, os espectadores correm Ă s livrarias para lerem o livro que deu origem ao filme. James Franco confessou que, como realizador interessa-lhe ter uma fonte prĂ©via, preferencialmente literĂĄria, e com a qual tenha uma relação de empatia muito forte, permitindo-lhe seguir em direcçÔes que a sua imaginação nĂŁo permite. Relativamente Ă complexidade da fonte literĂĄria, Franco reconhece que a maioria das adaptaçÔes cinematogrĂĄficas empobrecem a riqueza estrutural e estilĂstica do original, pois muitos realizadores e produtores tendem a desvalorizar o papel activo do espectador na construção de sentidos, em detrimento de um facilitismo comercial. Ao desconsiderar a importĂąncia do espectador na criação do mundo fĂlmico (e o espectador, como defende Rushton [3], âforma-se com o filmeâ), o filme fecha-se num processo de autocomiseração artĂstica, cuja finalidade Ă© apenas o entretenimento fĂĄcil e a veiculação de mensagens previamente codificadas. No entanto, Franco admitiu tambĂ©m que o seu estado de paixĂŁo por Child of God lhe dificultou o processo de criatividade e autonomia necessĂĄrias Ă adaptação cinematogrĂĄfica, pois queria âpĂŽr no filme tudo o que estava no romanceâ. Perante esta dificuldade inultrapassĂĄvel, viu-se obrigado a solicitar a colaboração do editor Curtis Claydon. O filme estreou no Ășltimo Festival de Veneza e foi exibido em festivais importantes, como o de Nova Iorque e Toronto. A crĂtica tem sido favorĂĄvel, embora nĂŁo esteja rendida a este retrato de desvio moral e sexual. O livro de Mccarthy retrata a vida de Lester Ballard - âa child of God much like yourself perhapsâ - na sua degradação social e humana, afastando-se cada vez mais da sociedade para se refugiar na sua perversidade sexual e moral, uma existĂȘncia animalesca e desprezĂvel, cujas entranhas sĂŁo o Mal em carne viva, sem qualquer possibilidade de redenção. A sensibilidade dos temas da pedofilia e da necrofilia foram, certamente, um dos entraves mais difĂceis Ă adaptação do livro ao cinema. Quando questionado sobre as razĂ”es que o levaram a adaptar um livro de uma incomensurĂĄvel tristeza e desumanidade, Franco disse que nĂŁo sabia responder, mas que iria perguntar ao autor porque Ă© que ele escreveu este livro. E McCarthy, na sua atitude lacĂłnica disse que teria sido por uma âqualquer razĂŁo parvaâ. Para os leitores fiĂ©is do autor, a adaptação de Franco pode gerar alguma desconfiança e indiferença, mas tambĂ©m para os seus leitores fiĂ©is, esta ousadia pode ser uma rara oportunidade de vislumbrar no grande ecrĂŁ toda a maldade intrĂnseca do ser humano que, um dia, jĂĄ foi descrita atravĂ©s de uma bela e arrepiante prosa poĂ©tica. O filme aguarda ainda distribuição comercial na Europa. Ana Barroso Doutoranda e investigadora na Universidade de Lisboa. Tem publicado em vĂĄrios livros e revistas nacionais e estrangeiros sobre arte e cinema. >>>>>> Notas [1] McCarthy nunca se envolveu na adaptação cinematogrĂĄfica das suas obras, com excepção da adaptação para televisĂŁo da sua Ășnica peça de teatro The Sunset Limited, realizado por Tommy Lee Jones, em 2011. [2] Originalmente um guiĂŁo cinematogrĂĄfico e, mais tarde, transformado num romance. Alguns apontam ser esta a razĂŁo principal do sucesso do filme. No entanto, isso nĂŁo se verificou com o filme The Counselor. [3] Rushton, Richard. The Reality of Film: Theories of Filmic Reality. Manchester: Manchester University Press, 2011. |