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Devo referir que Deus, os Dados, Gödel e a Natureza da Arte é uma sequela de Pedaços do Paraíso à procura do tipo de verdade que os cientistas procuram. Se o texto de 2021 determinava a ‘forma’ elementar da arte como beleza pura - que estabelece a beleza intencionalmente inútil, no que descreve o absoluto reconhecimento do inatingível, aqui o objectivo do texto é “revelar a natureza da arte” influenciada pela matemática, em particular pela lógica matemática - interessar-me não pela matéria e forma, mas pela essência. Podemos compreender então a interligação entre física, matemática e arte como uma maneira alternativa [soma] de organizar saber.
Pode à primeira vista parecer estranho associar o método científico e as artes, mas, entrever um sistema de pensamento que inclua uma visão fundamental sobre a natureza, para transformar a compreensão e a apreciação da arte, poderá estar em função das regras da lógica matemática — por que outro fio condutor é que devemos então pensar o essencial da criação, a natureza da arte, se não por um fio condutor da matemática? Há algo + nisto: é a gramática de todo o funcionamento da arte que devemos aceitar mudar de questões materiais e formais para ser estudada como um ser-complexo matemático. A arte precisa da matemática lá “onde as perplexidades são maiores”, pensei. Assim, qualquer clareado da natureza da arte tem de começar por caminhos nunca antes percorridos, extremamente diferentes.
E antes de eu ter percebido o que estava [realmente] a acontecer, apercebi-me de que tinha sido alvo de um golpe digno de imaginação científica, bafejado pela sorte. Subitamente as implicações filosóficas da lógica matemática de Gödel e os seus Teoremas da Incompletude infiltraram-se no meu pensamento!
O Apolíneo está, na realidade, ao serviço do Dionisíaco. A meta + elevada do conhecimento é quando Dionísio diz as palavras de Apolo, e Apolo, por fim, as de Dionísio (em que o dionisíaco e o apolíneo se reúnem). Assim, é atingida a meta + elevada do conhecimento, e de toda a arte! O facto de reconhecer isso levou-me, naturalmente, ao estudo da lógica matemática de Kurt Gödel (28 de abril de 1906, Brun, Chéquia - 14 janeiro 1978, Princeton, EUA):
Entremos nos Teoremas da Incompletude de Gödel, no contexto da história
Kurt Gödel e Albert Einstein em Princeton
[Setembro de 1930] Königsberg (actual Kaliningrado, Rússia), capital da Prússia Oriental. Na 2.ª conferência Acerca dos Fundamentos da Matemática / a Natureza da Matemática, durante um debate de três dias, entre titãs como Werner Heisenberg – já considerado um génio pela sua descoberta da mecânica matricial e do princípio da incerteza, gritando que os eletrões não eram ondas e que não era possível observar o mundo subatómico (“É muito mais extraordinário do que imaginam”), enquanto pelas ruas da Prússia marchavam membros da juventude hitleriana — O matemático austríaco Kurt Göbel, no último dia da conferência, apresentou um artigo sobre a completude do cálculo lógico; disse: “creio que podemos postular, dentro de qualquer sistema formal consistente, uma afirmação que é verdadeira, mas que nunca pode ser demonstrada dentro das regras do dito sistema.” Resultado: a matemática era incapaz de solucionar todos os problemas que levantava.
Gödel argumentava que as ideias abstratas e eternas como as verdades matemáticas (verdades da teoria), não poderiam ser explicadas como produtos do cérebro ou do funcionamento físico do universo, pois estranhamente elas próprias são abstrações — Para ele isso indicava que a mente humana tinha acesso a algo [a consciência] além do mundo material, algo que as leis da física / a mecânica era incapaz de abordar.
Em teoria, exprime a crença de números como seres abstractos!, entidades matemáticas independentes da realidade; outros exemplos incluem os entes geométricos – ponto, linha, plano e sólido – que descrevem o espaço e as suas características; e conjuntos e grupos que são estruturas abstratas. Mostrando que o trabalho matemático é executado em grande medida no inconsciente. Aponta para algo maior que o mundo físico pode conter. Mas não é assim tão simples!
Se o mundo é feito de simples matéria em movimento no espaço, como é possível que exista a consciência, os pensamentos, as percepções, o significado que acompanha tudo isso?
Pois bem, não existe nenhuma explicação quântica para as operações mentais pelas quais funciona a inteligência, a imaginação, emoções ou outros aspectos da vida mental. Não há nada de especificamente quântico que nos ajude a compreender o que são pensamentos, percepções, ou bom gosto. Estes são aspectos que envolvem o funcionamento do cérebro em grande escala, ou seja, precisamente onde a interferência quântica se perde no ruído da complexidade do mundo.
Podemos tentar traçar um quadro dos meandros da mente a somar e a subtrair, e a apagar e a começar de novo, mas não vamos muito longe.
O problema do absoluto incognoscível é que, se alguma vez pudéssemos dizer qualquer coisa acerca dele, deixaria de ser o absoluto incognoscível. Creio que aquilo que importa salientar é que a realidade/ o mundo físico e alguns aspectos do mundo mental, seja o que for a mente, não são a mesma coisa.
Se é certo que o raciocínio é executado no cérebro, e em grande medida no inconsciente, como é que ele se processa? Como é que o inconsciente faz cálculos matemáticos?
Gödel, via a ciência e a lógica como ferramentas poderosas, mas insuficientes para responder às maiores perguntas da existência, para lidar com a complexidade do mundo físico/ realidade, especialmente aspectos como a existência da alma, o propósito da vida ou o sentido do universo.
Von Neumann (1903, Budapeste - 1957 Washington, D.C.), que era amplamente considerado um dos maiores matemáticos do século XX, se não o maior, tinha entrado na sala do primeiro andar reservada para a conferência no preciso momento em que Gödel nessa mesma sala explicava os chamados Teoremas da Incompletude e escutou e viu Gödel: ficou imóvel à porta, sem ser capaz de se sentar durante todo o tempo em que Gödel esteve a falar. Só depois de Gödel ter terminado a leitura do artigo em tom monocórdico é que Neumann se sentou, tinha os olhos fechados, disse: “Acabou-se”. Ele não disse nem + uma palavra. Nessa altura percebeu claramente o que era um choque:
Procuramos durante dez anos a lógica interna do cérebro e, ao cabo dessa década de imenso trabalho, ouvimos meia dúzia de palavras faladas por um génio e ficamos liquidados, pensou ele. Soube imediatamente o que significavam as palavras de Gödel, e, provavelmente, terá sido o único a tomá-las a sério, nesse preciso momento. Neumann procurava a “linguagem” que o cérebro utilizava para funcionar. Queria descobrir se era similar à logica matemática, que era o seu modo de pensar preferido. “Quando falamos de matemática” escreveu ele, “podemos estar a discutir uma linguagem secundária constituída sobre a linguagem primordial usada pelo sistema nervoso central”.
Mais do que qualquer outra coisa, Newmann procurava descobrir qual era essa linguagem primordial do cérebro; acreditava que isso poderia transformar todas as possibilidades da humanidade. Descodificá-la permitir-nos-ia começar a compreender o funcionamento interno do cérebro e aceder à singular capacidade mental de criar a grandiosa e abrangente consciência do mundo que só os seres humanos parecem possuir. Sonhava como arranjar uma forma de visualizar o futuro, e depois ver o que é que os computadores do futuro são capazes de conjurar, ou que a nossa espécie subsistisse de uma forma que nos tornasse imunes à corrupção e à doença.
Numa altura em que isto está a acontecer, com o desenvolvimento dos computadores quânticos, estaremos a esquecer-nos de Gödel?
Não. Não é verdade. Qualquer coisa chegara ao fim. Gödel demonstrara um teorema - hoje conhecido como o Teorema da Incompletude de Gödel - que provava que caso se exigisse que as demonstrações fossem verificáveis mecanicamente, então era impossível provar todas as afirmações verdadeiras em matemática a partir de um conjunto de axiomas propostos.
Os Teoremas da Incompletude de Gödel mudaram para sempre a forma de entender a matemática. São hoje uma descoberta que sugerem os limites da compreensão humana/ do conhecimento — revelando que os fenómenos naturais e a brutal complexidade do mundo não poderiam ser capturados, à medida que se descobriam reinos matemáticos quase impossíveis (que Gödel via como independentes do mundo físico). As afirmações fundamentais e aceites como verdadeiras sem necessidade de prova em matemática (em resumo, as leis da matemática), em teoria, derivam das regras da lógica. Mas não há nenhum argumento para legitimar as regras da lógica que não as pressuponha. Até a matemática, que formava a base para compreender o mundo físico à nossa volta, era complicada e incompleta!
A consistência da matemática é indemonstrável!
Ondas de choque propagaram-se pela comunidade matemática. Dois mil anos de pensamento grego estavam, completa e irrevogavelmente, destruídos. Matemáticos por todo o mundo viram-se reduzidos à + perfeita incredulidade. Gödel, na sua capacidade propulsora de sentir tinha visto + longe do que todos. Tinham de aceitar o facto de a matemática não ser o conjunto de teoremas perfeito, arrumado, completo e comprovável em tempos postulado pelos gregos. Antes de Gödel expor o seu teorema pela primeira vez, os matemáticos tinham uma confiança ilimitada na capacidade de com tempo, paciência e esforço suficiente, poderem resolver todos os problemas. Podiam criar o futuro (para além da realidade).
Juntos, os dois teoremas de Gödel apontam diretamente para os limites da lógica, para além dos quais ainda não conseguimos ver — Acho que percebi aquilo que ele percebeu!, que achar os limites não era somente achar os limites. Mas achar o que se encontrava para além dos limites. Achar os limites, é apenas o começo, tornando-nos conscientes do que ignoramos, o facto de não conseguimos ver fora do alcance de raciocínios seguros e viáveis, o facto de não podermos visualizar o que que se encontra para além do mundo real, o futuro. Era preciso começar por encontrar os limites, só isso. Gödel encontrava o que parecia ser um limite antológico, algo que não podíamos resolver através do pensamento. A matemática tal como a conhecemos não era completa:
Será inevitável a existência de problemas matemáticos que nunca poderão ser resolvidos mecanicamente, cuja solução estará fora do alcance de raciocínios seguros e fiáveis - dependem de demonstrações e verdades que vão além da realidade. O artigo que explica os teoremas é brilhante. Não dá sequer para o discutir. O impacto provocado pela obra de Gödel na lógica moderna é notável, desafia a própria lógica - pela sua “Autonegação” quase paradoxal. Nunca será possível adquirir por meios matemáticos, a certeza de que a matemática não encerra contradições.
Não se pode matematizar a matemática
Gödel é eterno? Em anos + tardios, Gödel afastou-se da matemática e dedicou-se à filosofia. Depois, enlouqueceu por completo. Recusava-se a comer. Achava que a comida estava envenenada. Quando morreu pesava cerca de 30 quilos. Oppenheimer (1904, Nova York - 1967, Princeton) era o director do Instituto de Estudos Avançados em Princeton e ia visitá-lo ao hospital. Um dia, o medico entrou no quarto. Não sabia quem era Gödel — um professor universitário qualquer que dera em maluco —, e Oppenheimer disse-lhe que cuidasse bem de Gödel, porque era o maior lógico desde Aristóteles.
Ao escrever sobre lógica matemática de Gödel, fez-se-me luz no meu espírito, para também poder escrever sobre a Natureza da Arte. E de repente não surpreende que a lógica, coluna vertebral da arte do raciocínio, que Aristóteles foi o primeiro a desenvolver, seja a minha fonte de inspiração para desvendar o mistério da natureza da arte. Não compreender que é misteriosa, mas compreender o seu mistério. Debruçar-me sobre outras formas de organizar o pensamento através da lógica matemática, incluindo a arte.
Mas como é que isso acontece? Respondemos: a matemática está integrada numa visão de toda a Natureza. A matemática está em todo o lado e molda tudo aquilo que fazemos. Não se trata apenas de ser bem-vinda. Não é precisamente a matemática um modo como a verdade advém enquanto desocultação / revelação? uma ciência tão poderosa, que dá forma a tudo o que existe à superfície da Terra? Certamente.
O poder da teoria é ainda especulativo. Mas existe!
Inspirado na lógica matemática, penso a arte dentro de um ser-complexo semelhante àquele que as leis da matemática funcionam, e o que isso implica na reflexão crítica sobre a arte, na estética. Exploro a inquieta associação entre artes e matemática, regras da lógica e estética. No seu núcleo está o raciocínio recursivo, autorreferencial que Gödel usou para demonstrar os seus Teoremas da Incompletude cujas implicações filosóficas estabelecem uma noção de limites e abstração.
O ponto de partida consiste em precisar e estender o conceito de derivada de uma função. Em matemática a [função] derivada de uma função é definida como um processo de limite. Embora, de certa maneira, nunca tenha lido com atenção ou compreendido Heidegger, imaginemos que a relação [de correspondência] entre a matemática e a arte lê-se y = f(x), onde x é a variável independente e y a variável dependente, pois o seu valor depende de x, pode indicar que arte é [função] derivada da matemática, algo parecido à sua definição - a de Heidegger - de pensamento: “o chegar à proximidade da distância”.
Então podemos passar da forma física e da matéria para a lógica matemática e, a partir daí, alcançar pormenorizadamente o que desejo — Estabelecer uma associação entre métodos lógicos e uma análise pormenorizada sobre estética. A fim de fazer existir a estética em cada ponto do Teorema da Incompletude de Gödel, para deter o poder das operações lógicas, à parte ela própria [estética]. Tornar-me consciente que nunca será possível adquirir com meios estéticos a certeza de que a estética não encerra contradições. Isso indica que, só quando a arte for derivação matemática, ao nível da matemática e ao nível da arte, é que a verdade ficará definida, liberta de mal-entendidos.
Perante o que se torna a realidade - enquanto a estética for estética -, não há nenhum argumento para legitimar uma estética afirmativa da arte, essa estética inelutável, que não a pressuponha - não importa quão longe olhemos em direção ao infinito, nem quão poderoso se torne o nosso olhar.
Não se afasta muito de dizer que, em última análise, mesmo que alguém conseguisse desenvolver um sistema estético formal de axiomas totalmente isento de paradoxos e contradições internas, este seria sempre incompleto, pois conteria verdades da teoria e afirmações que embora inegavelmente verdadeiras poderiam nunca ser demonstráveis a partir dos axiomas propostos. Não é apenas algo de lógica matemática.
Wittgenstein* gostava de dizer que nada pode constituir a sua própria explicação. "It is quite impossible for a proposition to state that it itself is true." Tem razão? Sim, exatamente!
Nesse caso, a percepção de que aquilo de que há muito desconfiávamos é, afinal, verdade. Temos de estar do lado de fora, a olhar para dentro. À medida que a estética desvenda/ interpreta, pouco a pouco, os mistérios e fundamentos da arte / ela apresenta paradoxos insolúveis e contradições lógicas que questionam toda a sua fundamentação teórica e a preponderância da racionalidade na estética e da estética na arte.
Longe de ser excêntrica, esta é a maneira como a estética / o estudo da beleza em diálogo com a lógica lida com o modo de a arte ser, em teoria, [função] derivada matemática. É um exemplo daquilo a que podemos chamar de derivação estratégica disfarçada de derivação matemática, sobre a qual foi construída a função artística — A beleza vem + tarde. A mesma beleza que Fiódor Dostoiévsky, em O Idiota, situa o diálogo com a famosa frase “A beleza salvará o mundo”.
Talvez se tenha tornado + claro o que está em estética na estética. A estética não é apenas sobre cor; não é apenas sobre forma; não é apenas sobre peso; não é apenas sobre estética… Parece-me uma forma de experiência maior e cheia de possibilidades. Correlações entre linguagens matemáticas, artísticas e regras da logica. A verdade da estética está do outro lado dessas correlações. A complexidade da matemática transformou-a, deixou de ser uma reflexão crítica sobre a arte, a cultura e a natureza para deter o poder dos operadores abstratos. E, repito, quando falamos de estética, falamos do Teorema da Incompletude. O que está em jogo é o cálculo e a lógica de entender a estética. A inteligência verbal só nos leva até um certo ponto. Há ali um muro, e, se não entendermos o cálculo, nem sequer vemos o muro.
Por conseguinte, ao contar a história de Gödel, não se trata de importar conceitos de matemática, ou uma enxertia científica, porque eles exigem uma atenção e um foco diferente — é uma associação / cruzamento de afinidades, especialmente agora que a prática de um artista é frequentemente validada por um texto de acompanhamento.
Ao fazê-lo permite à arte ser-complexo matemático e ao mesmo tempo transferir o centro de gravidade estético da filosofia para as as ideias abstratas e eternas como as verdades matemáticas.
Falta compreender (responder às maiores perguntas do mistério da natureza da obra de arte, pois elas próprias dependem de verdades e princípios que vão além do domínio físico mostrando que a criação artística à semelhança do cálculo matemático aponta para algo maior do que o mundo real pode conter.
Compreender o mistério da natureza da arte é uma ambição diferente de defini-la!
O cerne da questão não é como criamos o carácter de uma obra de arte, mas sim como o inconsciente o faz. Como se explica que o inconsciente seja bem + talentoso do que nós nessa matéria? Como é que o inconsciente (cria as qualidades de uma obra de arte) faz arte?
Qualquer que seja a resposta, a pergunta pela natureza da obra de arte converte-se em pergunta pela essência da arte que veio antes dela.
Às vezes, é preciso um certo tempo para entendermos as coisas. A arte está constantemente a ser questionada. É para isso que ela serve. O começo e o fim. O que é que estamos a fazer e como é que sabemos. Um rasgo.
A essência da arte (o que ela tem por potencial), e sem a qual perde a sua identidade é, em última análise, uma iniciativa baseada no questionamento - deve deduzir-se do questionamento, que faz dela o que ela é substancialmente. É a questionação da estética. A estética é uma coisa muito incerta. No fim de contas, trata-se de um domínio bastante caótico. Não obstante a sua considerável beleza.
Aquilo que a arte tem para vender é o questionamento [A beleza da arte]. É por isso que se torna famosa? Sim. A razão pela qual a arte funciona!
Não admira, na minha cabeça, chegar com bastante nitidez à irresistível conclusão que os objectos artísticos, em parte, têm as mesmas ideias abstratas e eternas como as verdades matemáticas — Uma mistura inusitada de verdades da teoria, eternidade e abstração, visto de uma perspectiva híbrida.
Arte e Matemática, duas matérias aparentemente sem relação estreita uma com a outra, partilham nitidamente este último posto sem fronteiras que estica a corda do pensamento, que pede + do nosso cérebro do que o que ele sabe fazer - deixou de haver dúvidas a esse respeito. É para isso que ela [Arte] serve — Cria questionamentos e muda como as necessidades de mudança de criação de sentido.
Fecha-se assim à consistência: Em parte alguma isto é + claro do que na própria estética. A consistência da arte é indemonstrável!
Em si mesmo, não tem, claro, nada de novo. Os humanos têm criado novas perspectivas , com novas relações, desde sempre. A grande maioria delas não “significa” nada.
Muito estranho e mágico o facto de termos arte
A arte que observamos não é só uma peça de museu, mas uma espécie de metáfora do pensamento. O seu engenho consiste no facto de ter produzido um método diferente de fazer coisas.
Adoro arte, mas não a confundo com a realidade absoluta. O mundo visual está dentro da nossa cabeça. O mundo inteiro na verdade. É impossível reduzi-la a um conceito, fornecer uma educação formal [lei formal], o que ao longo de toda a tradição filosófica parecia garantir o seu fundamento. É preciso ter em conta + do que apenas filosofia. É a nossa realidade. Enquanto é preciso manter a sua diferença em relação à simples empiria, ela modifica-se em si qualitativamente. As funções artísticas têm um prazo de validade muito alargado. Como é que isso é possível? Muitas obras, por exemplo, representações culturais, metamorfoseiam-se em arte ao longo da história, quando o não tinham sido; e muitas obras de arte deixam de o ser. O estar em devir da arte remete o seu conceito para aquilo que ela não contém.
O que a arte seja, tem de aprender-se a partir da obra. Se algo caracteriza a obra como obra é este ser-complexo matemático da obra. O que seja a obra, só o podemos experienciar a partir da essência da arte/ será então o questionamento.
Começa com o questionamento e está constantemente a ser questionada. Tem infinitos sentidos. Isto é incontestável. Este é o seu fundamento sobre qual todos os seguintes se erigem e desmoronam logo que são abalados. Uma arte desenvolvida em função de interações, que na medida em que a obra é criada e o que criar precisa de um meio a partir do qual e no qual cria.
Só que permanece a pergunta: como é que o questionamento faz parte da obra?
Resta saber em que relações ela [obra] se encontra. Onde é que uma obra pertence? A obra pertence enquanto obra ao campo que é aberto por ela própria porque o ser-complexo matemático da obra advém, e só advém, em tal abertura.
A arte no mundo relacional em que estamos é o contínuo questionamento / emanharamento - que se sobrepõe entre a criação e a descoberta, entre o mundo interior / criação do artista, o que é retratado na obra, que visa expandir o conhecimento, que convida a refletir, e a as experiências e memórias/ descoberta do observador - que convoca toda a herança cultural e histórica. São tudo questões - deixou de ser uma imagem para deter o poder do questionamento. É vida mental e imaginação tanto quanto mundo físico (objectividade da matéria), criada a partir de realidades já existentes.
É isso que nos ajuda a inventar e descobrir, a nos interessar, a nos apaixonar e, não menos importante, defender os princípios de uma sociedade pluralista/ democrática. Pelo que se sabe, em latim as palavras inventar e descobrir são sinónimas.
Dissemos que, na correlação obra-artista, o acontecimento da verdade/realidade estava dentro do observador. É necessário tornar real o evento da realidade da obra —O que significa que está doravante sob a autoridade de um observador.
Lygia Clark
Promover o observador faz parte da renovação da arte empreendida por Lygia Clark (Belo Horizonte 1920-1988 Rio de Janeiro). Parte da obra de Clark é sobre experiência prática do observador:
Os objectos relacionais de Clark, totalmente desligados de um conceito cultural, foi uma linha direta do mundo material para a experiência espiritual abstrata - fora do alcance de raciocínios seguros e viáveis - que a arte supostamente oferece. Apontam directamente para os limites da lógica. Independentemente de partilharmos ou não o sistema de crenças de Clark, elas ligam o reino espiritual de Lygia não só com a sua imaginação artística, mas também com as nossas próprias vidas - pois elas próprias existem num reino abstrato, separado da matéria.
— Lygia, sugere uma perspectiva da arte/ um propósito completamente novo de transferência de poder, do artista para o espectador. Era uma situação limite e o início claro de um novo paradigma nas artes visuais. A arte não era completa!
Isso permitia-lhe integrar o espectador à arte, de forma individual ou colectiva. Mas havia neles algo de muito estranho. Como se Lygia nos avisasse ‘algo que não podíamos resolver através do pensamento. Revelo uma arte que não é aquela que os senhores pensam quando a observam.’ E é aí que reside o desafio de pensar a obra de Clark: poderiam ser expostas como arte? Enquanto admitia sem problema, a sua total humildade, via as suas obras, simplesmente como encontro, animada por uma abertura de espírito invulgar. Lygia era agora capaz de fazer participar o espectador. A sua obra está embebida de uma visão + vasta, tornar relacional o evento da realidade da obra. As suas ideias fizeram dela uma artista intemporal!
Mas há mais. Ao mesmo tempo, invocam uma muito desenvolvida noção de dança a três — não de forma totalmente consciente. Sugiro que pensemos a obra de Clark dentro de um contexto quântico: uma vez que os Bichos são na realidade da física quântica de forma surpreendentemente simples - feitos para interagir. Culminam numa dança a três! A física quântica e o pensamento da Lygia estão estritamente entretecidos. Não podem e não devem ser destrinçados agora.
Qualquer pessoa que experimente os Bichos, seja qual for o assunto em que esteja a pensar, se estiver a sentir uma ligação com a existência, esta é a arte que está a viver - e quando sai da sala / experiência a arte vai-se embora com ela.
Depois de Clark a arte relacional levaria a formas + complexas de estética relacional… que favorecem zonas de comunicação, ligações com a história e a memória. A forma da arte contemporânea vai além da sua forma natural: ela é um elemento relacional, o que se torna essencialmente uma dança a três quando está mergulhada na dimensão do diálogo. Mas a arte é toda relacional / quântica, seja as maçãs de Cézanne (um objecto fechado em si mesmo) ou as refeições participativas e acontecimentos descontínuos, sem permanência de Tiravanija. É a nossa observação que cria a realidade. Para alguns a obra artística escaparia a essa dança a três graças a um estilo e a uma assinatura. No entanto, sabemos que a arte só assume uma existência real quando a observamos; uma obra de arte nasce de um diálogo com o inteligível que nos coube. A prática artística reside numa dança a três como Lygia Clark a designou com os seus modelos.
A obra de Lygia Clark permaneceu uma das + invulgares, embora possa parecer simples na comparação com outros artistas que procederam a vida de Lygia — Exemplos específicos de artistas – como Felix Gonzales-Torres até Rirkrit Tiravanija, Pierre Huyghe, Liam Gilick, Gabriel Orozco, Carsten Höller, ... – que concebem a obra deliberadamente como factor relacional, com isso novos espaços de sociabilidade específica e novos tipos de interação com a obra onde o espectador se torna um participante ou colaborador no trabalho; a componente social e o interesse por modelos originais de participação levam, dessa forma, à aproximação do observador com a arte ou até mesmo à sua colaboração, + do que apenas o ponto de vista do autor.
A cultura interativa aberta pelo ready made de Marcel Duchamp, que procura delimitar exatamente o campo de intervenção do observador na obra de arte, hoje consiste num pensamento relacional/ estética relacional que apresenta/ amplia a performatividade do objecto artístico como facto consumado - que visa algo muito diferente de um simples consumo estético. A física quântica constitui uma propriedade concreta da obra de arte!
E é aí que reside o desafio de pensar o último projecto de Laure Prouvost, We Felt a Star Dying, na LAS Art Foundation, que dirige a atenção da arte para a física quântica. A exposição começa com a pergunta: “Como poderíamos sentir a realidade a partir de uma perspectiva quântica?”
O projeto cresce a partir das conversas da artista com o filósofo Tobias Rees e o cientista Hartmut Neven. A colaboração permitiu que Laure Prouvost acessasse um computador quântico e experimentasse um novo modelo de IA usando dados gravados a partir de cálculos quânticos.
Prouvost reúne vídeo, som, perfume, escultura e cenografia em uma instalação fluida ajustada às características altamente sensíveis e contra-intuitivas dos computadores quânticos - com o objetivo de traduzir o mundo para uma realidade quântica:
O que conduz a uma nova e ainda mais desconcertante pergunta: qual é a diferença entre arte e ciência (implicando) que a arte pode ter uma relação próxima com matemática)?
A resposta a isto, uma resposta que, na verdade, responde a uma questão completamente diferente, é que sei o salto que existe entre Apolo e Dionísio, entre razão e abstração:
Em traços simples — O que para um cientista é um pesadelo - a incapacidade para compreender o mundo físico à nossa volta, um paradoxo interno, uma verdade que não se pode demonstrar, para o artista, em contrapartida, é o contrário: permite explorar novas situações e possibilidades, em vez de fixar os seus limites. A arte deve propulsar-se até onde a razão não chega. Não necessita, nem é susceptível, de fundamento racional.
O trabalho artístico é executado em grande medida no inconsciente, não pode ser explicado racionalmente. E porque é que o inconsciente acerta tantas vezes? Junto de quem é que ele confere o seu trabalho? Bem. O inconsciente está há muito tempo entregue a si próprio. É claro que não tem acesso ao mundo, à parte através do nosso aparelho sensorial. Se não fosse isso, limitar-se-ia a laborar no escuro. Como o nosso fígado. Mas o inconsciente é um sistema puramente biológico, não um sistema mágico. É um sistema biológico porque não pode ser outra coisa. Não me deixo convencer pelas especulações teológicas dele. Não evoluímos de forma individual: nenhuma coisa tem propriedades a não ser em relação a outras coisas, o mundo é quântico recordam-se? O inconsciente evolui a par da espécie para satisfazer as necessidades desta, e se há nele alguma coisa de sinistro é o facto de, por vezes, parecer antecipar-se a essas necessidades. Eis uma das coisas que deixaram Darwin perplexo.
Nesse mesmo momento, o cientista, que sabe que somos habitantes de um mundo material, que há uma mecânica quântica e limitações da realidade, diz-lhe [ao artista] que não poderá acompanhá-lo para além do que pode ser provado, e interrompe a relação entre os dois. Aí temos, portanto, a ciência e a arte.
Implícita nessa visão e sensação de abandono vejo, em alguns aspectos, Dante no final do Purgatório a despedir-se de Virgilio, pois este, por ter sido pagão, não pode ter acesso ao Paraíso! Há uma espécie de suspensão:
Continua na Parte V/5: Não nos questionamos para viver: vivemos porque nos questionamos.
Mesmo a arte + simples pode levar a uma complexidade de pontos de vista fabulosa. E o contrário também é verdade: podemos erguer uma complexa obra de arte com vários níveis, que não produzirá nada a não ser esterilidade, onde nenhum questionamento irá cair jamais.
Victor Pinto da Fonseca
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* Devemos em particular ter presente que Wittgenstein trabalhou no ambiente de euforia que se seguiu à publicação dos Principia de Russell e Whitehead, muito antes, portanto, do impacto provocado pela obra de Gödel, que teve, como um dos seus efeitos, a virtude de isolar o cálculo proposicional dos outros cálculos matemáticos. Sendo decidível e completo, não possui uma estruturação suficientemente rica, capaz de dar conta da complexidade, por exemplo, do sistema da aritmética ou da geometria. Ora, Wittgenstein elege o cálculo das proposições como padrão de inteligibilidade de todos os sistemas formais, postulando, em consequência, uma unidade entre eles que mais tarde se revelou ilusória. Além do mais, essa unidade permite-lhe conceber a lógica como um sistema total, ao contrário da dispersão dos sistemas particulares predominantes na lógica contemporânea. É evidente que nessas condições os problemas da semântica, os problemas que dizem respeito às relações do sistema com o mundo, haveriam de ser propostos de uma forma muito mais ambiciosa do que hoje estamos acostumados a propor. Daí a riqueza do Tractatus, daí em compensação o seu dogmatismo, que por certo desnorteará aquele que não o abordar de uma perspectiva crítica que só a história pode oferecer.