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CORPS ET ÂMES: CORPOS, TERRITÓRIOS E ECOS DO TEMPOFILIPA BOSSUET2025-09-10![]()
As histórias repetem-se sobre determinadas fisionomias, estruturas e arquiteturas. Para o bem e para o mal, elas são contínuas e disruptivas, colocando constantemente em questão as dicotomias. O projeto existe na conexão e na desconstrução entre localização geográfica e estados psicológicos. E tudo passa a existir sobre o mesmo edifício, como tem de ser para que a discussão se inicie. A arte traça uma conversa contínua sem início e fim à vista. No ciclo infinito do centro cupular da Bourse de Commerce – Pinault Collection, essa conversa ecoa. Indicia-se já nas placas de entrada, que anunciam a multiplicidade de possibilidades de movimentação do corpo, em visita à reflexão sobre a exposição Corps et âmes. Pensemos numa mão. O que uma mão pode construir e, por isso, representar? Sendo que a existência pode ser, por si só, construção e/ou desconstrução. The Hand of Miles Davis (1986) o retrato a preto e branco de um dos instrumentos de trabalho e vida do artista, trompetista e compositor americano, em ação e experiência, a fotografia de Irving Penn. Gesto reverberado do olhar que atravessa o metal do instrumento, da máquina, ecoando sons que levam a qualquer lugar.
Irving Penn, The Hand of Miles Davis (1986). © Filipa Bossuet
A curadoria é de Emma Lavigne, Diretora e Curadora Geral da Coleção Pinault – para além de outros cargos atuais e depois de um percurso que requer, arrisca-se, merece atenção –, com colaboração para a playlist de músicas, curadas por Vincent Bessières, que é possível ouvir perto desses corpos dançantes. A playlist com duração de 1h56, inclui Aretha Franklin, Miles Davis, Nina Simone, Erykah Badu até Kendrick Lamar – uma seleção de “Jazz & People” como se refere no subtítulo apresentado nas plataformas de áudio. É impossível não se notar a presença maioritária de músicos americanos, o que causa um estranhamento quando no vídeo em que se fala sobre a instituição se afirma que se trata de referências musicais selecionadas pelo especialista em música, que alimentam o trabalho dos artistas apresentados na exposição. O que significa alimentar neste contexto? O Jazz não se forma apenas a partir de onde se popularizou, não obstante, fala-se de diásporas. Trata-se de uma escolha. Está esclarecido que é uma exposição com a presença dos países que investem na arte. Não contempla artistas que não atingiram ainda grandes proporções no mercado artístico, visto tratar-se de uma curadoria comercial como a arte sempre foi – principalmente nestes contextos – mas também sensível como sempre tem de ser, até para sobreviver, apesar dos apesares. As obras estão espalhadas pelos vários cantos do edifício, desde o primeiro andar até ao térreo. Ali Cherri, artista que se expressa sobre diversas vertentes como performance, escultura, desenho, instalação e cinema, por exemplo, ao realizar o filme The Watchman que reflete com planos extremamente interessantes e numa lógica transcendental a memória da guerra omnipresente, em Corps et âmes instala esculturas ao longo das 24 vitrines ao redor de uma das rotundas do edifício. Cherri inspira-se nas imagens em movimento que ecoam os vinte e quatro fotogramas por segundo que criam a ilusão cinematográfica na série de esculturas denominada Twenty-Four Ghosts per Second. “Cada vitrine torna-se um fotograma congelado, uma sequência suspensa, reanimada pelo olhar do espectador” como o mesmo refere nas suas redes sociais. O projeto é inspirado no filme O Sangue de um Poeta (1930), de Jean Cocteau, sendo que algumas das vitrines contêm trechos do roteiro da longa-metragem. As esculturas com materiais como terra, bronze, gesso, pedra, madeira e aço são a materialização do trabalho do artista nascido em Beirute e a residir em Paris, sobre como a violência política se dissemina nos corpos das pessoas e na paisagem física e cultural. Cherri desenvolve esculturas intervencionadas, para refletir a violência colonial. O seu trabalho enfatiza a riqueza sobre a noção da prática artística realizada a partir de vários suportes. Todos estes sons fazem corpos mexerem, mesmo que, só na imaginação, enquanto se observa os retratos de Zanele Muholi com os contrastes de luz intensos sobre a pele, em Mfana, Philadelphia (2019). Kerry James Marshall com The Wonderful One (1986). Diane and Allan Arbus com Dancer Jerome Robbins (1953). Lynette Yiadom-Boakye com No Pleasure from Machinery (2013) e Light of The Lit Wick (2017). Obras de extrema relevância, que nos colocam num silêncio da apreciação. Cabe salientar a presença de cadernos de esboços como parte da obra em exibição, contribuindo para as histórias que se quer contar, entendendo-as num conjunto de fatores que reúnem riscos, testes, erros e elaborações. Retiram talvez artistas de um pensamento difundido de existência constante sobre o caos, desorganização, do génio inato e muitas vezes, da anulação do criador, valorizando-se apenas a criação. Acontece com Portrait of Miriam Cahn (2024) por Jocelyn Wolff. Acontece com o caderno de esboços de Mira Schor (2020). Acontece com Duane Hanson com a fotografia enquanto produz a escultura hiper-realista Jogger (1984), como também com o autoretrato analógico – denominado Monster (1988) – do cineasta Arthur Jafa com a máquina fotográfica na mão, à entrada da sua obra audiovisual imersiva.
Arthur Jafa, Monster (1988). © Filipa Bossuet
Apresentada em tela gigante numa sala escura, AGHDRA (2021) evoca uma contemplação consciente do oceano tendo o sol como horizonte. O mar é observável pelo movimento das ondas, o que seria a água é descrita na sinopse como coberta sobre um “material desconhecido e não identificável”, sugerindo “algures entre o plástico, o asfalto e o magma”. Observo rochas pretas com nuances cinzas que oscilam sobre o som do baixo em predominância, e de uma voz adulterada. De alguma forma, cria-se um mecanismo de defesa para caminhos de tranquilidade em meio à consciência de que aquelas rochas poderão ser corpos da história. Memória ressignificada. Matéria profunda, sedimentada com matéria orgânica de séculos de vidas passadas e camadas de tempo. O momento é de pertença. No espaço que antecede um conjunto de retratos tirados pela artista Dean Lawson, a obra Self-portrait (2021), um autoretrato de corpo inteiro que coloca em crítica um método que tem em consideração a memória, experiências pessoais vividas pela própria, como linhas orientadoras para a compreensão dos temas que lhe são sensíveis artisticamente. Lawson aparece num contexto florido em que o padrão do seu vestido com um detalhe de asas de libélula no colo, participam. Com a mão direita apoiada sobre a câmara à sua frente – personalizada com pedrarias de tons de rosa e lilás – apoiada sobre um tripé, o olhar atento de quem tem os pés assentes na terra, e o gesto, marcam a captação do momento deixando a sua mão esquerda em motion blur.
Dean Lawson, Self-portrait (2021). © Filipa Bossuet
Os retratos de Lawson não são nada triviais, há sempre algo para além dos detalhes – que são muitos –, que colocam os diferentes contextos das pessoas que fotografa numa dimensão metafísica, difícil de se explicar. A capacidade de criar uma discussão que não se limita a estereótipos sobre a comunidade negra, quando existem nas suas fotografias elementos que podem recair sobre essa interpretação, é para poucas. Em Daenare (2019), Lawson regista uma mulher negra nua com uma tornozeleira, deitada numa escadaria, fazendo parte da composição uma pintura de natureza morta, pendurada na parede rosa salmão. Esta mulher com o seu pequeno afro e um olhar fixo para a câmara, transmite completa segurança sobre o seu próprio corpo, mesmo que, uma tornozeleira possa representar automaticamente vigilância, confinamento ou punição. Ela firma-se pela noção de si mesma e a energia sensual está exatamente nesse existir – desta e de todas as outras pessoas retratadas nas várias fotografias fixadas na parede. Cada obra de arte de Dean Lawson é uma composição em que a fotografia é o início de um registo atravessado por outros elementos como: hologramas incorporados, rabiscos de caneta e os limites emoldurados com uma estrutura de espelho, como que, para aceder ao universo imortalizado, tivéssemos que olhar para nós mesmos. Os corpos estão protegidos por grandes cristais que se espalham pelos cantos da sala demonstrando, mais uma vez, que se trata de um trabalho fortemente espiritual. Ana Mendieta surge mesmo antes de qualquer indicação sobre que caminhos seguir na exposição. Com três obras expostas ao longo da mostra, é inevitável que não se veja Silueta Sangrienta, uma curta metragem em que a artista cubana reflete a presença física, a perda e ligação entre corpo e território. Mendieta reconhece a existência do seu corpo na natureza enquanto a silhueta do seu corpo é desenhada no chão de terra. Mantendo-se dentro desse perímetro ilimitado que se transforma ainda mais familiar, a sua existência expande-se com takes intermitentes, em que o seu corpo aparece de costas e barriga para cima. Vai aparecendo e desaparecendo, juntamente com imagens do interior da silhueta desenhada sobre a terra, preenchida com um líquido vermelho vibrante. Este trabalho faz parte da série de fotografias e vídeos denominada Siluetas que realizou entre 1973 e 1980, em Lowa City e no México. São mais duas obras da artista – Butterfly (1975) e Flower Person, Flower Body (1975) – que fazem parte da exposição e, para além do contributo que constitui Corps et âmes, uma mostra colectiva com mais de 100 obras de 43 artistas, as criações de Ana Mendieta não estão expostas uma ao lado das outras, o que faz pensar na potencialidade que as suas criações – feitas abertamente sobre o seu corpo e experiência – têm para o colectivo. Este tipo de produção artística é encantadora, não seria também coincidência ler que Mendieta em vida disse que o ponto de viragem para começar a fazer o seu trabalho da forma como o conhecemos, é ter percebido que de outra forma, não teria alcançado o que entende como real, isto é, mágico.
Ana Mendieta, Silueta Sangrienta (1975). © Filipa Bossuet
É a narrativa pura e dura que nos coloca em linhas de imaginação, a questão surge em perceber porque é que esconder o que nos fez chegar até aqui é mais bem aceite do que entender a profundidade que Rosa Montero nos transmite ao citar Siri Hustvedt: “Há em mim uma mulher atormentada e outra que observa” [1]. A questão do género está presente em todas as suas obras, assim como o exílio, pensando na sua produção como uma denúncia, ponto de reflexão e elaboração. Digerindo a ideia de projeto presente na ação de se exilar, entendendo-o numa dimensão em que o corpo consciente, razão e sentimentos, é inteiro tocado, e por isso não só considerado o ato na sua forma mais burocrática e institucional, assim como nos faz entender Ana Mendieta e refere bell hooks citando Paulo Freire, o exílio enquanto uma prática de conexão e desconstrução da localização geográfica e estados psicológicos. A obra Dandora (Xala, Musicians) (2022), de Michael Armitage. Um universo, desde os materiais, as cores, que o artista utiliza até os contextos que pinta. As obras de Armitage precisam de ser vistas ao vivo, principalmente sobre o espaço em que se soube escolher exatamente qual a melhor cor da parede e a luz perfeita que irá sustentar tanta abundância. Cada olhar é um suspiro de uma conversa interna que leva qualquer um para onde convoca a vulnerabilidade. Tem textura, na utilização de Lubugo, um tecido de casca da figueira tradicionalmente utilizado para rituais fúnebres, proveniente do Uganda, que como base da tinta a óleo permite a intensificação da cor de uma forma muito poética. O verde, amarelo, laranja, vermelho, o castanho meio roxo e o azul, não são simplesmente vibrantes, parece que o Lubugo absorve a cor e dá vida, tanto que, mesmo independentemente dos tons frios ou quentes, o quadro parte de uma tonalidade muito própria. Vêm-se os buracos da cortiça ao longo do que constitui a tela e os agrafos que unem os vários pedaços. Não se observava algo assim desde o cinema produzido por cineastas africanos que souberam transmitir África com toda a complexidade que lhe é característica: não existe um só acontecimento. A unilateralidade chega a ser uma farsa. Dandora é uma obra de aproximadamente 220 × 440 cm. Na descrição refere-se que Dandora é o maior aterro a céu aberto de Nairobi onde vivem, nas proximidades, cerca de um milhão de pessoas. O termo «Xala» refere-se, não por acaso, ao romance e filme do artista senegalês Ousmane Sembène, que retrata a corrupção das elites pouco depois da independência, tendo Armitage se inspirado numa sequência. Cave (2021) simbolizou a obra que faz a exposição parecer sobre a vida do espectador por despertar tantas emoções, perplexidade, êxtase, vontade de sentar nos assentos espalhados pela exposição e ficar ali só a contemplar. Fruir. Viver para ser tocada por mais arte, viver da arte, ser artista. A obra parece toda ela uma rocha sedimentar que reúne duas pessoas, vários corpos, fetos, animais, a natureza em interação. Talvez seja isso que representa Corps et âmes ou o que simbolizou esta visita a um espaço onde a esperança pode residir. A natureza em interação.
Filipa Bossuet é o culminar do interesse pelas artes, jornalismo e tudo o que me faz sentir viva. Nasci em 1998, sou uma mulher do norte com memórias do tempo em Lisboa. Guiada pela sede de informação e pesquisa autónoma licenciei-me em Ciências da Comunicação e penso também sobre as influências dos estudos de mestrado em Migrações, Inter-Etnicidades e Transnacionalismo, criando um diálogo e questionamento entre os campos do saber. Colaborei como jornalista estagiária no Gerador, uma plataforma independente de jornalismo, cultura e educação, e no Afrolink, uma rede online que junta profissionais africanos e afrodescendentes residentes em Portugal. Utilizo performance, pintura, fotografia e vídeo experimental para retratar processos identitários, negritude, memória e cura. O meu trabalho transdisciplinar tem sido apresentado em espaços como a Bienal de Cerveira, Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia (MAAT), Teatro do Bairro Alto, Festival Iminente e o Festival Alkantara.
Notas [1] O perigo de estar no meu perfeito juízo (2023), de Rosa Montero.
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