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AUGUSTO M. SEABRA

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“O museu [para] Valéry [e] Proust†é um texto de Adorno, incluído na colectânea “Prismasâ€, em que ele analisa as antitéticas posições dos dois escritores franceses, o crítico e o defensor da instituição “musealâ€.

Num texto que justamente se intitula “Le problème des muséesâ€, incluído nas “Pièces sur l’artâ€, Valéry, em nome do carácter raro e único de uma obra de arte – antecipando-se ao conceito de “aura†em Benjamin – faz uma diatribe contra o princípio da sua acumulação, pois que quanto mais admirável fosse uma obra mais a percepção e fruição das suas características se dissipariam nessa acumulação, uma obra fazendo perecer outra ao lado. Para ele, escreve Adorno, “a duração da obra individual é o problema crucialâ€. Na sua perspectiva, que se poderá considerar aristocrática, Valéry não deixa de suscitar uma importante questão: a da “reificação e neutralização†da obra pela instituição.

Proust, pelo contrário, em várias passagens de “Em Busca do Tempo Perdidoâ€, exalta a fruição das obras que os museus propiciam. Escreve Adorno: “Proust, o romancista, começa virtualmente onde Valéry, o poeta, pára – com a posteridade da obra de arte. A relação primordial de Proust com a arte é a precisamente oposta à do especialista e do produtor. Antes de mais ele é um consumidor admirativo, um amador [aquele que ama]â€.

Adorno ilumina assim uma persistente antítese entre a dúvida perante o museu e a sua exaltação, mas também entre o criador e o fruidor, o produtor e o receptor, entre a singularidade da obra e a sua posteridade, a vida própria da arte e o seu enclausuramento.

Mas enuncia ele na abertura do texto: “A palavra alemã ‘museal’ (‘museulike’) tem acentos desagradáveis. Refere-se a objectos com os quais o observador já não tem uma relação vital e que estão em processo de morte, devendo a sua preservação mais ao respeito histórico que à necessidade do presente. Museus e mausoléus estão ligados por mais que a associação fonética. Os museus são como que o sepulcro familiar das obras de arte. Eles atestam a neutralização da cultura. Tesouros da cultura estão armazenados neles, e o seu valor de mercado não deixa espaço para o prazer de os contemplar. Todavia esse prazer está dependente da existência deles. Qualquer pessoa que não tenha a sua própria colecção pode em geral tornar-se familiar com a pintura e a escultura apenas em museusâ€.

Evoquemos então outra abertura de um texto, o célebre e fundamental “O Museu Imaginário†de André Malraux: “Um crucifixo românico não era, de início, uma escultura; a ‘Madona’ de Cimabue não era, de início, um quadro; nem sequer a ‘Atena’ de Fídias era, de início, uma estátua. O papel do museu na nossa relação com as obras de arte é tão considerável que temos dificuldade em pensar que ele não existe, nunca existiu, onde a civilização da Europa moderna é ou foi ignorada. O século XIX viveu dos museus: ainda vivemos deles, e esquecemos que impuseram ao espectador uma relação totalmente nova com a obra de arte. Contribuíram para libertar da sua função as obras de arte que reuniam, para transformar em quadros até mesmo os retratosâ€. Sublinhe-se bem a premissa de Malraux, de resto metodicamente explanada ao longo do livro – os museus impuseram uma relação nova com as obras, transformando-as em Arte.

Com essas premissas, o postulado de Malraux é todavia mais lato e também controverso, sendo liminarmente exposto no parágrafo final da Introdução: “Na verdade, criou-se um Museu imaginário, que vai aprofundar o incompleto confronto [um confronto de metamorfoses] imposto pelos verdadeiros museus: respondendo ao apelo por estes lançado, as artes plásticas inventaram a sua imprensaâ€.

Esta análise contrapõe-se à consideração por Walter Benjamin no seu célebre texto “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica†do desencantamento da obra, do seu “hic et nuncâ€, da aura, de um declínio suscitado pelas possibilidades fotográficas, como ele já apontava em “Pequena História da Fotografia†– “O conceito de aura permite reunir essas características: o que se atrofia na era da reprodutibilidade técnica é a sua auraâ€, característica essa que se “poderia definir como a única aparição de uma realidade distante, por mais próximas que estejamâ€.

É essa característica de uma “distância†que desaparece. “Fazer as coisas ‘ficarem mais próximas’ é uma preocupação tão apaixonada das massas modernas como a sua tendência a superar o carácter único de todos os factos através da sua reprodutibilidade. Cada dia fica mais irresistível a necessidade de possuir o objecto, de tão perto quanto possível, na imagem, ou antes, na sua cópia, na sua reprodução. Cada dia fica mais nítida a diferença entre a reprodução, como nos é oferecida pelas revistas ilustradas e pelas actualidades cinematográficas, e a imagem. Nesta, a unidade e a durabilidade associam-se tão intimamente como, na reprodução, a transitoriedade e a repetibilidadeâ€.

Não por acaso, pôs Benjamin em epígrafe outro texto das “Pièces sur l’art†de Valéry, “La conquête de l’ubiquitéâ€: “As nossas Belas-Artes foram instituídas, e os seus tipos de uso fixados, num tempo bem distinto do nosso, por homens para quem o poder de acção sobre as coisas era insignificante comparado com o que possuímos. Mas o surpreendente crescimento dos nossos meios, a destreza e precisão que atingiram, as ideias e hábitos que introduziram fazem-nos estar certos de mudanças próximas e muito profundas na antiga indústria do Belo. (…) Devemos esperar que grandes novidades transformem toda a técnica das artes, agindo sobre a invenção artística em si, indo talvez mesmo modificar maravilhosamente a própria noção de arte â€.

Citando estes autores, encontramos assim uma série de antíteses fundamentais à recepção da obra de arte no processo começado com a abertura dos museus, muito em particular pela instituição do Louvre, em 1791, pela Convenção revolucionária, até à era da reprodução: obra-museu, distância-proximidade, transitoriedade-posteridade e unicidade-reprodutibilidade. Atender ao debate Valéry-Proust, nos termos analisados por Adorno, e sobretudo ao outro e crucial, Malraux-Benjamin, é assim de primordial importância.

Sucede que entramos numa ainda outra nova era, quando a maior parte dos museus – e dos monumentos também – têm os seus próprios sítios informáticos, estão em linha. É razão para convocar outro texto deveras importante, “Archives of Modern Art†de Hal Foster, incluído em “Design and Crime (and others diatribes)â€, que analisa aqueles outros dois debates – é de resto um dos poucos a citar o tão pouco referido ensaio de Adorno – e o fundamental projecto do “Mnemosyne Atlas†de Aby Warburg, para concluir: “Se o velho museu, como imaginado por Baudelaire, Proust e outros era o local para a reanimação mnemónica [de memorização] da arte visual, o novo museu tende a dividir o mnemónico do visual. Cada vez mais a função mnemónica do museu tende para o arquivo electrónico, a que se pode ter acesso quase em toda a parte, enquanto a experiência visual é atributo não só da forma-exposição mas também do museu-edifício como espectáculo – isto é, uma forma que pode circular nos media servindo a qualidade equitativa e cultural capital. Esta imagem é talvez a forma primeira do público de arte hojeâ€.

São considerações tanto mais premonitórias quando estamos precisamente num momento de viragem do máximo relevo: não só o projecto de Warburg está em linha, www.welib.de/e-entry.htm, como muitos dos mais importantes museus do museu do mundo estão agora em rede no recém-lançado www.googleartproject.com e se anuncia a participação de Serralves e vários outros museus de arte contemporânea numa outra rede incluída na plataforma cultural europeia, www.europeana.eu/portal. É uma viragem que obriga a uma reflexão própria.


Augusto M. Seabra