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O ESTADO DA ARTE


Imagem via Twitter de Yusaku Maezawa: “I am a lucky man…”


Imagem via Instagram: "I am happy to announce that I just won this masterpiece. When I first encountered this painting, I was struck with so much excitement and gratitude for my love of art. [1]"


Leilão Sotheby´s


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OK. Vamos imaginar que todos nós tínhamos um salário mensal de 20 milhões de dólares, e que eventualmente ao fim de juntarmos um dinheirinho para a reforma, sei lá, decidíamos ir comprar uma obra ali a Nova Iorque à Sotheby’s… Fazia algum tempo que já andávamos a “namorar” um Jean-Michel Basquiat cujo valor base de licitação até encaixava no nosso pé-de-meia, aproximadamente 60 Milhões. Infelizmente, tínhamos mais três candidatos à aquisição daquele que nós queríamos, e a licitação levar-nos-ia a perder a cabeça, esquecer as consequências, eventualmente a lógica, qualquer tipo de razoabilidade, mas nunca, jamais, abandonar o nosso capricho e emoção que nos colocou naquela sala para conquistar o troféu!

Tudo isto é um pouco disparatado, certo? Esta história naturalmente é fictícia, mas os números não poderiam ser mais reais.

Claro que não está ao nosso alcance este tipo de shopping, assim como não está ao alcance de quase ninguém no planeta. No entanto, as portas destes centros comerciais abrem com alguma regularidade para as elites multimilionárias, os clientes entram, ou compram online, nós assistimos, como se de um espetáculo se tratasse, e por fim resignamo-nos aos factos, nada “alternativos”, mas a pura realidade.

A comercialização de objetos de arte em Nova Iorque, nas principais casas de leilões, roça o ridículo, está para além do razoável, e o mundo e os profissionais da arte, assistem, compactuam, escrevem livros e artigos sobre a matéria, mas ninguém se arrisca a legislar.

O que hoje são 110.5 milhões de dólares pode seguramente vir a ser daqui a um, dois ou três anos, meio bilião de dólares. Porquê? Não há rigorosamente nada que impeça estes valores de escalarem, inflacionarem, dispararem para importâncias cujos dígitos jamais figurarão na conta bancária de 99.9 % dos seres humanos do planeta; mesmo assim, fazemos notícia, registamos o recorde, indignados, não pelo ridículo, mas pela surpresa. E para que fique claro que isto é real, esta obra foi adquirida pelos anteriores proprietários, Emily e Jerry Spiegel, em leilão na Christie’s em Maio de 1984 por dezanove mil dólares ($19,000 US dólares).

Quem comprou este Jean-Michel Basquiat, “Sem Título” de 1982 foi um bilionário Japonês, Yusaku Maezawa, que após rebentar um sonoro aplauso generalizado na sala de leilões, postou na sua conta de instagram @yusaku2020 a seguinte frase “Estou extremamente feliz por poder anunciar que acabei de conquistar esta obra-prima”. Este jovem empresário de 41 anos que é fundador da maior loja de moda online do Japão, tem uma incomensurável paixão por arte contemporânea e por alguns artistas em particular, não se coibindo a despesas para concretizar ou “conquistar” obras dos seus preferidos. Tudo isto seria aceitável, se estes colecionadores não estivessem a ditar as regras de um mercado já ele disfuncional. Ao atuarem também eles de forma “descontrolada” e emocional durante estas “batalhas” de conquista de troféus, eles não se apercebem que estão a inflacionar uma moeda que não tem controlador; ou seja, após esta venda inesperada, que registou diversos recordes; para uma obra de arte americana, por um artista afro-americano e para uma obra criada após 1980 que suplantou os 100 milhões, todas as obras do artista entram num ciclo um pouco incerto de valorização. Incerto, pois após se estabelecer o recorde com uma obra que não era tornada pública há cerca de 30 anos, colecionadores de obras de Basquiat, como Larry Warsh, recolocam na praça pública a importância e relevância do artista, tentando também eles colocar a sua fortuna num patamar superior, declaradamente legitimado pelos novos valores de mercado. Como podem fazê-lo? Pois é extremamente simples: o mercado da arte não tem muitas regras ou praticamente nenhumas, as poucas que tem aplicam-se em taxas, fees, buyers premium (taxa aplicada no valor final de venda que normalmente beneficia na totalidade a casa de leilão alegadamente para despesas administrativas – 12% acima dos 2 milhões - dados disponíveis mais atualizados) que para quem tem dinheiro digamos que é irrelevante (mais milhão menos milhão…), depois é tudo uma questão emocional e talvez de ocasião, se faz frio ou faz calor, se o dia correu bem ou mal, se beberam um copo a mais ou um a menos, e a adrenalina no topo de tudo isto que é apenas gerada no momento… isto pode parecer uma vez mais impensável, mas tem muito de realidade e tamanhas consequências. Os dealers, que hoje em dia podem vir em vários formatos e feitios, colocam-se rapidamente no mercado através dos meios que tem disponíveis, e recolocam obras deste artista disponíveis, para deleite dos colecionadores mais modestos que querem juntar uma novíssima superstar às suas obras. Um conhecido site de arte, no dia seguinte a esta venda, e depois da notícia online que eles mesmo fizeram e publicaram que descrevia esta venda, disponibilizavam um link com um anúncio, em que eu, você, qualquer pessoa, poderia passar também a ter um Basquiat na sua coleção de arte, e isso estava simplesmente à distância de um click no site deles, onde poderia escolher de entre mais de 100 obras disponíveis.

Tudo isto seria salutar se o mercado revelasse alguma coerência, e se o leilão como espaço e local de aquisição de obras de arte não fosse apenas um passeio de bilionários na busca e conquista de troféus. As pessoas que estão a ditar o que é ou não válido no mercado da arte são bilionários, que eventualmente não têm qualquer conhecimento aprofundado da história de arte ou do que poderá ser ou não uma obra determinante para a mesma. Sabemos que estas compras são sustentadas por conselheiros na especialidade, mas no final tudo se reduz a um jogo de interesse e mercado. A venda de uma obra de arte num leilão que ultrapassa os limites da razoabilidade, tem implicações drásticas no mercado da arte, no valor do artista, em coleções de arte dos mais diversos proprietários, isto naturalmente influência fortunas e a “riqueza” e valor de muitos indivíduos. Há um claro jogo de interesses por detrás de tudo isto, e há claramente uma “máfia” de aquisição de obras de arte, que não é mais que um grupo organizado de bilionários a nível mundial.

Se sabemos tudo isto, se nada disto é novidade e cada vez se torna mais escandaloso, como é que não há legislação que impeça que os bilionários se autoproclamem mais ricos, através de aquisição de arte, que os próprios estabelecem como as obras mais valiosas da nossa história de arte?

Estamos para além da ponderação, em que a catalogação ou categorização da qualidade e valor de um objeto de arte deixou de ser feita com base em fatos históricos que legitimam as obras, mas sim e maioritariamente, o estatuto do objeto artístico está neste momento legitimado pelo poder económico do seu comprador, que não tem necessariamente que ter qualquer tipo de conhecimento especializado em objetos artísticos, tem unicamente que ter emoção, sentimento, capacidade e vontade de possuir.

 

 

Sérgio Parreira
IG: artloverdiscourse 

 

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Notas

[1] "I am happy to announce that I just won this masterpiece. When I first encountered this painting, I was struck with so much excitement and gratitude for my love of art. I want to share that experience with as many people as possible." Via Instagram.