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O ESTADO DA ARTE


Pas de Deux (III ato “Raymonda"), interpretado por Gerson Sanca e Shion Miyahara, EADCN, 2017. Fotografias por Ana Catarina Fragoso e Pedro Morgado.


Pas de Deux (III ato “Raymonda"), interpretado por Gerson Sanca e Shion Miyahara, EADCN, 2017. Fotografias por Ana Catarina Fragoso e Pedro Morgado.


Pas de Deux (III ato “Raymonda"), interpretado por Gerson Sanca e Shion Miyahara, EADCN, 2017. Fotografias por Ana Catarina Fragoso e Pedro Morgado.


Pas de Deux (III ato “Raymonda"), interpretado por Gerson Sanca e Shion Miyahara, EADCN, 2017. Fotografias por Ana Catarina Fragoso e Pedro Morgado.

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Se atentarmos na história da dança, verificamos, legitimamente, ao longo dos séculos, uma ênfase na sua natureza colaborativa. Trata-se de uma atividade que dificilmente é concretizada através do esforço exclusivo de uma só pessoa e, talvez por isso, possa ter uma propensão especial para colocar o indivíduo em relação com o coletivo, expressando, através da presença de um corpo, os anseios e crenças de muitos, a alegria espontânea de um grupo, as narrativas de um povo. Desta forma, encontrar-se-ia na dança uma certa apetência para analisar e problematizar questões de índole cívica – isto é, o reconhecimento, identificação e respeito de um indivíduo pelos valores de determinada sociedade ou, inversamente, a sua alienação deste mesmo coletivo. Questões essenciais às problemáticas educativas gerais atuais e fundamentais para o ensino da própria dança.

Em civilizações antigas, como a Grega, verificamos que a dança não era concebida como uma arte autónoma, tal como hoje a concebemos. Esta estava intimamente ligada a outras experiências e áreas do saber, e vocacionada para outros territórios da vida humana. Não era orientada, exclusivamente, para o entretenimento ou fruição estética de determinado grupo. Por conseguinte, podemos entender as danças gregas enquanto construções sociais, práticas sedimentadas ao longo do tempo, criadas em grupo, que assumiram uma série de funções, desde o culto religioso, as práticas terapêuticas, educativas e o próprio treino militar. Porque as danças expressavam preocupações fundamentais à mentalidade da época, parece-nos também possível que permitissem ao seu intérprete comparticipar ativamente no tecido civilizacional seu contemporâneo e, deste modo, contribuir para a integração deste sujeito em determinado Mundo, isto é, em determinado sistema social.

Algumas das danças sociais tradicionais têm, na sua origem, este mesmo princípio. A simples dança de roda consiste numa estrutura horizontal, una e completa, não hierárquica, que expressa a alegria espontânea e popular, bem como a felicidade e liberdade de ser em determinado Mundo. Um sistema social formado pela presença concreta e igualitária de cada indivíduo, onde ao dançarino é permitido fazer e ser.

Com a autonomização da dança enquanto disciplina artística, esta assumiu-se progressivamente como um instrumento ao serviço do conhecimento, onde o corpo do intérprete é um veículo, uma letra de um alfabeto maior e discursivo, que é oferecido por determinado criador a um espetador particular, para sua fruição e apreciação. É o início da longa história da instrumentalização e especialização do corpo da dança, cuja expressão artística mais conhecida é precisamente o ballet. De forma abreviada - e restringindo-nos à questão da colaboração na dança - no ballet, verificamos que o corpo do indivíduo que dança é trabalhado e adaptado à visão, não de um coletivo, mas de um outro indivíduo: o mestre, o coreógrafo ou patrocinador do bailado, que mais facilmente permitem, ao bailarino, fazer do que ser.

Existe, naturalmente, um sentido colaborativo na prática do ballet, uma vez que as pessoas trabalham umas com as outras para produzir determinada obra. Porém, este modo de colaborar parece-nos diferente das danças populares ou de civilizações antigas. Com a prática do ballet, são introduzidas a estratificação e a repressão do corpo, que, metaforicamente e implicitamente, traduzem um modo hierarquizado de participação no tecido social e na construção do mundo: de um lado, temos os que criam, de outro, os que executam.

No início da dança moderna, é reivindicada a liberdade individual do corpo do bailarino e a ele é possível novamente ser. Esta tendência para a liberdade criativa foi expressa em vários planos. Alguns bailarinos exploram métodos e modos de criar dança que pretendem devolver a liberdade existencial ao intérprete. Isadora Duncan inaugurou um tipo de dança, descalça e improvisada. Autores do expressionismo alemão, como Mary Wigman, Rudolf von Laban, Kurt Jooss – professor, mais tarde, da célebre Pina Bausch – promovem métodos criativos alicerçados não na produção de efeitos formais, mas na expressão das emoções individuais de cada bailarino, que não é um executante, mas um intérprete. Nos Estados Unidos, Martha Graham promoveu técnicas de dança que relacionam a capacidade do indivíduo interpretar e sentir (em particular, sentir o seu próprio corpo).

Ao mesmo tempo, pensar e agir com os outros em dança poderá também passar por colaborações concretas com o outro profissional – o músico, o pintor, o cenógrafo, o cineasta – estratégia muito explorada, e de mérito reconhecidamente importante, que encontramos, com mais ou menos intensidade, nas produções da dança teatral contemporânea [1].

Não obstante, e como temos vindo a defender, a dança permite um tipo especial de colaboração com o outro, de forma manifestamente mais existencial. A dança consegue verdadeiramente colocar o Eu e o Outro em relação: saber ser, saber fazer e saber fazer em conjunto, comparticipam verdadeiramente na constituição de um sistema, de um Mundo. Durante os efémeros 5-15 minutos da sua manifestação, o indivíduo faz verdadeiramente parte de um microcosmos, que ajuda a criar, o absorve, mas que o deixa ser.

Esta constatação é amplamente explorada e importante para o contexto educativo. As simples danças de rodas são formas de expressão corporal muito utilizadas por todas as creches e escolas de ensino primário. Em contextos sociais problemáticos, em particular junto de jovens adolescentes que se assumem de forma marginal, estrangeira ou periférica na sua relação com a sociedade dominante, são promovidas, por diversas instituições de integração social, aulas de dança. Estas funcionam, sobretudo, como instrumentos de restituição, a cada um destes jovens, de uma relação e sentimento de pertença no Mundo. Este tipo de escolas não forçam as técnicas de dança ao aluno, incentivam a prática da dança como estratégia de construção do próprio indivíduo – promovendo a cidadania, ensinando a aprender, a ser e a viver com o outro. Estes projetos são fundados na benevolência dos seus ideais e não visam habilitar os jovens para um sistema produtivo, mas compatibilizá-los, reintegrá-los e prepará-los para o mundo. Um mundo global, diversificado, contraditório, desmaterializado, onde cada vez mais é preciso saber sentir e refletir.

Neste contexto, as escolas de dança especializadas são confrontadas, de forma muito mais radical - e problemática - com um problema transversal a todas as instituições de ensino: formar cidadãos ou instrumentalizar o corpo? Educar para que finalidade? Para proporcionar futuros indivíduos ou executantes?

Numa escola de ensino artístico especializado da dança, um jovem, aos 18 anos, deverá dominar virtuosamente uma série de técnicas, porque a sua integração profissional depende do grau de domínio destes fazeres. A precoce integração no mundo profissional e a elevada competição atual produzem uma pressão para a especialização precoce, que leva a que os jovens dediquem entre 6 a 8 horas diárias à prática da dança, atingindo elevados níveis de virtuosismo técnico, inimagináveis há 100 anos atrás.

Face a este problema, verificam-se sobretudo dois tipos de respostas: uma ligada ao ensino tradicional, e outra relacionada com uma perspetiva mais integrada do ensino da dança.

Relativamente à primeira, o domínio da disciplina é alcançado através da repetição e especialização da técnica. Na área da dança, verifica-se, inclusive, que algumas escolas não só se especializam no ensino exclusivo de determinada técnica, como treinam alunos especificamente através de certos passos, repetindo, até à intuição irrepreensível, uma única variação de dança. Esta estratégia verifica-se muito mais eficaz e compensatória em situações de provas e concursos de dança, mas é muito perigosa para a carreira do bailarino. Ao longo do seu percurso profissional, ele terá que interpretar mais do que uma variação, terá que estar preparado para a mudança e deverá possuir uma competência essencial à prática artística da dança - o bailarino deverá, acima de tudo, saber posicionar-se face ao mundo.

Neste sentido, um outro tipo de resposta, de natureza mais formativa e pedagógica, será uma solução mais construtiva e benéfica para o bailarino a longo prazo. Pensamos no ensino mais centrado na aprendizagem de competências e menos centrada na execução de ações. Naturalmente que o ensino da técnica é uma das bases essenciais à prática da dança contemporânea, que o jovem e as escolas atuais não poderão ignorar; não obstante, é igualmente responsabilidade das escolas atuais que se promova a dança no seu sentido mais existencial, e que esta possa ser, verdadeiramente, um momento para ser e fazer: criando os cidadãos e as sociedades que desejamos para o nosso futuro.

 

 

Ana Catarina Fragoso
É pintora e professora de Artes Visuais. É licenciada em Artes Plásticas – Pintura (2008) e Estudos Arquitetónicos (2012). Do seu percurso profissional destacam-se as exposições “Rrevolução” (Colégio das Artes, Coimbra, 2017), “Casa-Pátio” (Espaço das Mercês, Lisboa, 2016), “Apreço” (Zaratan, Lisboa, 2015), “Fazer Falso” (Espaço AZ, Lisboa, 2015); bem como as colaborações com o Atelier da artista Adriana Molder (2007-2008, Berlim) e com o Atelier do artista Miguel Palma (2012-2017, Lisboa). Presentemente leciona as disciplinas de História da Cultura e das Artes e Educação Visual na Escola Artística de Dança do Conservatório Nacional.

 

 
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Notas

[1] Relativamente à Época Contemporânea, que se inicia com a revolução Francesa e se prolonga até aos dias hoje.


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Bibliografia

Au, S. (2012). Ballet and Modern Dance. London: Thames & Hudson World of Art.
Delors, J. coord. (1996). Educação - Um Tesouro a Descobrir. Lisboa: Edições Asa.
Homans, J. (2012). Os Anjos de Apolo. Lisboa: Edições 70.
Kraus, R., Hilsendager, S. C., Dixon, B. (1991). History of the Dance in Art Education. New Jersey: Prentice Hall.
Salazar, A. (1955). La danza y el Ballet. México: Fondo de Cultura Económica.