|
FERNANDO MARQUES PENTEADO
02/10/2025
Na ocasião do lançamento do catálogo da exposição Rascunhos Teimosos___Ficções ardentes, Fernando Marques Penteado explica-nos o processo de composição da sua última exposição homónima que foi apresentada na Culturgest entre Julho e Setembro de 2025. Partindo da ideia da figura do Cafona, Fernando desenvolveu juntamente com Bruno Marchand, curador da exposição, as diferentes potencialidades à volta da ideia de uma figura que habita o mundo no seu quotidiano, atravessando-o com uma determinação que, para Fernando, constitui uma fascinante forma de estar e habitar o mundo remetendo-nos para um espaço-tempo que apesar de familiar, nos parece distante. Ao longo de sete salas, Fernando compõe narrativas tão cândidas quanto atrevidas, cenários liminares que apresentam uma distância para com os dias de hoje sem a falta de um entendimento contemporâneo de olhar para as coisas de uma forma bela através da banalidade, objetos outrora destinados ao abandono, o imaginário folclórico português, a homoafetividade, e o espiritual enquanto vias para entendimento aprofundado de um universo repleto de histórias de vida que, apesar de distantes a nós, aparentam uma proximidade tão bela quanto cúmplice dos piores vícios agregados à cultura tradicional, sendo que os melhores também ocupam um espaço importante, merecendo a atenção, a contemplação, um novo cuidado, e uma nova vida para que possam servir de espaços para a reflexão daquilo que nós já fomos enquanto comunidade, inspirando ao futuro prezado no entendimento, na qualidade estética própria daquilo que nos é familiar, daquilo de bom que nos foi retirado, mas que ainda nos completa enquanto cidadãos de um mundo que aspira a ser mais completo a cada narrativa que passa.
Por Pedro Vaz
>>>
PV: A exposição começa antes de entrarmos nas salas, com esta intervenção que fizeste nas paredes da Culturgest. Durante a conceção desta exposição, quais foram os desafios, os convites, e as surpresas destas galerias da Culturgest.
FMP: Tinha vindo cá pela primeira vez para ver o trabalho da Gabriela Albergaria, que também vive em Bruxelas e convivemos bastante. Fiquei assustado pelo imóvel. Era ela e o (António) Bolota. Eu achei o imóvel muito traumatizante, e depois, sem querer perder tempo pensando sobre isso, achei a exposição dela muito carregada de objetos. Parecia mais ou menos assim: aí tem a chance de fazer, então põe um monte de coisa. A do Bolota então, nem comentar, porque cai naquele âmbito assim: como é que a pessoa usa a sagacidade para ocupar um espaço com aquela coisa tão fria, que você entra e sai com aquela experiência congelado, além do que é esse espaço. Depois, como só recentemente eu vivi no Porto antes de viver em Bruxelas, de 2014 a 2018, e só recentemente a convite de Serralves, eu voltei para comentar uma exposição sobre o Leonilson, e ali eu percebi que a minha vida tinha feito efeito, que a comunidade artística sempre foi me ouvir falar, então foi bonito ver que valeu a pena esse trabalho que se iniciou já em 2010 quando comecei a trabalhar com o Nuno Faria. Para dizer que então comecei um trabalho que agora vai ser mais duradouro, numa galeria com quem trabalho que se chamava Lehmann + Silva, agora chama-se Mais Silva porque eles se separaram. E eu, tentando ainda responder à sua pergunta, fiquei assustado que isso foi em Maio do ano passado. E me assustei, falei “nossa, muito rápido a perceção de que o meu trabalho cresceu desde que voltei cá, até ao convite acontecer, que aconteceu no final do ano passado, e falei “nossa, que surpresa”. E o primeiro substantivo é desafio, não é?
PV: Sim.
FMP: O desafio então foi maior, porque vim em Outubro e falei assim “nossa, isso aqui parece uma catacumba”. Tudo amedrontante, e aí você vai para baixo e é lindo, lá em baixo é tudo escuro e você fala: mas porque é que alguém pode desejar descer uma rampa para encontrar um lugar escuro? Quer dizer, que lugar estranho, não é? E eu falei que por causa de algumas situações que eu já vivi de disponibilizar seccionado com cores, eu falei assim: essa vai ser a única solução. Por isso mesmo está pintado dentro e fora, então essa sim, essa foi a primeira instrução. Eu vim para trabalhar por uma semana e no final da semana falei: a única coisa que eu já posso dizer desde agora, é que a gente vai ter de pintar isso aqui para dar algum tipo de reflexo, para que a pessoa deseje olhar ir lá para baixo. E o desafio de sete salas, porque não é uma, nem duas, são sete. Então, que no meu entender, uma fizesse uma ligação com a outra. Então, teve a situação em que o Bruno não estava bem, o Bruno Marchand, então ele não me pôde visitar no estúdio. Naquela semana que a gente trabalhava, ele estava com Covid. Ele não pôde ver o meu estúdio antes de Fevereiro, Março. Então tive que construir toda essa imaginação comigo mesmo: essa sala vai chamar isso, essa sala vai chamar aquilo… tanto que depois acabou imperando que essa sala se chama Sala 1, e também que evitou de a gente ter uma folha de sala descritiva. Uma coisa superou a outra. Então esse desafio foi legal. E o outro substantivo é?
PV: Surpresa.
FMP: Surpresa foi… Acho que foi muito emocionante no sentido em que foi muito laborioso nas três semanas, mas todo o mundo colocou um entusiasmo enorme porque eu não projeto no papel, eu trago todos os objetos e digo “mais, ou menos assim”. E aí tenho de estar aqui para vivenciar as coisas eu mesmo, com os objetos no chão, e com muita ajuda das pessoas. Porque no momento em que eu já fiz o trabalho, eu conto muito com os montadores porque eles montam. Então assim, não me interessa muito bem qual é a distância, eu entendo assim das lógicas de passar aquele laser e tudo mais, as distâncias padrões. Mas ao mesmo tempo eu sei que o espaço tem de ser ocupado por esses objetos, eles têm que fazer esse sentido, e eu tenho uma prática de trazer coisas demais, tanto que a gente eliminou uma porção. Então foi muito bonita essa emoção do entusiasmo porque avançaram certas salas, outras a gente tentou mas não estava dando resultado, mas até ao último momento todo o mundo colocou uma energia linda para que o negócio sincronizasse. E a visita tardia do Bruno serviu também para que a gente se conhecesse pessoalmente, que faz uma grande diferença. Mas ele teve essa intuição linda porque nunca tive assim uma figura crítica como o texto dele sobre o cerne do meu trabalho, que eu acho que o Cafona fala muito bem.
PV: Podes falar um pouco como é que sonhas ou imaginas este percurso dos objetos encontrados, desde o momento em que captam a tua atenção até que integrem a massa estética da exposição? Ou até assim numa forma talvez mais poética, pensar em que há um momento anterior à tua atenção, em que o objeto está lá, mas ainda não sabes que ele existe, até àquele momento em que o visitante leva a imagem do objeto para fora do museu? É assim todo um processo temporal e espacial que tu aqui consegues apresentar. Como é que tu navegas nesta viagem dos objetos? Como é que os conduzes?
FMP: Essa prática já tem trinta anos, e começou quando eu voltei a estudar. Antes de voltar a estudar eu também trabalhei em produções teatrais onde a atenção pelos objetos deixados nas ruas já me chamava a atenção, que era o que eu recolhia para mim, talvez não para a produção, mas para o meu estúdio. Então isso veio acontecendo. A única coisa que faz a diferença é uma prática boa. Assim, agora com o passar dos anos eu vejo que: primeiro, sou muito mais económico. Ao entrar no estúdio você vê claramente que não tem nada a ver com Gabinete de Curiosidades, eu só estou com os objetos que realmente têm mais “emocional”, que eu acho que posso tirar partido daquela emoção ficcional que o objeto me dispara, e são normalmente os objetos mais usados, os mais carregados de uso no tempo, objetos realmente sem valor. No inglês tem a palavra-chave trifle. E o trifle é uma coisa assim, que ninguém dá a mínima atenção. Então no meio de todos esses objetos tem muitos deles. E eu moro num lugar onde todos os sete dias da semana tem uma feira desde as seis horas da manhã até às duas e meia, (com objetos) que são levados por muçulmanos que não têm a mínima ligação cultural com aquelas peças que estão levando. Então é um lugar sem temática, porque é o comércio mais direto possível porque eles estão interessados em vender e não se apropriar, e aqueles objetos culturais não lhe significam nada. Mas ao mesmo tempo como eu já estou treinado para fazer outras coisas, eu continuo tendo a intuição que naquele dia tenho que ir lá, não sei porquê. Eu levanto e falo: acho que hoje é lá que tenho que começar o meu dia. Então eu vou até lá para armazenar novamente, mas como você vê, ainda tem muita coisa acontecendo, eles estão vivos. Agora, quanto ao futuro deles, eu estou feliz de ter estabelecido claramente mais e mais que para mim hoje em dia não faz o mínimo sentido apresentar o Joel Steggals que é aquele trabalho, sem os objetos-satélites dele. Não são todos que têm, mas alguns têm. Mas o que eu tenho gostado mesmo é de realmente atestar que uma raquete daquelas (por acaso estão as três em conjunto, mas elas nem são um conjunto) … Mas ela apresentada assim isoladamente faz muito menos sentido do que se ela vem apresentada com objetos-satélite. Ela fica higienizada, mais próxima da apresentação das feiras e tudo mais. E também eu tenho a grande chance de usar este dispositivo maravilhoso que é o do storyboard. Então só nesse dispositivo, eu já consigo com que os objetos também naveguem na imediação das próprias imagens que eu coleto, que eu também faço bastante uso de coletar essas revistas antigas, esses materiais. Mas eu tenho esse bom paradigma interior de que eu abuso deles assim sem misericórdia, eu corto mesmo. Eles já estavam na rua totalmente destroçados, eu não tenho que pensar que eu tenho que mantê-los para a vida toda. Por isso é que eu digo que eles já estiveram à beira de desaparecerem, hoje eles estão cuidados por mim, mas eu não sei muito bem qual vai ser o futuro desses objetos, como também acho que a arte teria de tomar muito cuidado para que ela mesmo não hibernasse em linguagens muito frias, intelectualmente frias sobretudo.
PV: Há bocado falaste da experiência que tiveste com o teatro. Talvez até certo ponto influenciou a forma como apresentas as tuas instalações, e uma sensação que é muito direta quando entramos nestas salas, é que dariam belíssimos cenários de teatro, e até os textos da sala têm uma escrita muito semelhante à das didascálias que iniciam os atos teatrais. Já tendo passado pelo teatro, achas que a tua prática te impulsionaria para retomar esse universo do teatro?
FMP: Foram sempre produções mais… não efémeras, mas rápidas. No teatro… são pessoas muito sutadas. Eu sou muito pragmático. [No teatro] a questão do raciocínio passa raramente pelo prático. Mas ao mesmo tempo, nessa etapa da minha vida, se eu tivesse que investir no teatro eu queria ser ator, ou bailarino. Eu fui bailarino numas companhias livres, no começo da minha adolescência, e foi genial, e fiz bastante trabalho corporal também. Eu sou pedestre, então eu estou muito treinado a carregar coisas pela mão… Gosto de trabalho de ator. Eu não fui treinado, mas nessa etapa da minha vida, se eu tivesse que receber algum convite para que eu achasse: vamos investir; seria para ser ator.
PV: Pois, até a experiência de quem assiste a uma visita guiada feita por ti, nota-se claramente todo o potencial peripatético da instalação. Ou seja, é muito sugestiva a visitarmos cada uma das salas e percebermos todas essas histórias. E talvez não sendo bailarino hoje, tens muito vincada essa questão da apresentação, como se fosse assim uma espécie de momento performativo em que o público te acompanha pelas salas, e entramos neste teu universo. Eu fiquei curioso em saber se estas ficções, estas propostas de intimidade que nos apresentas na exposição, elas têm lugar no mundo, ou só pertencem ao museu.
FMP: Elas têm lugar no mundo, eu acho. Até porque eu estou falando sobre elas. Acho que eu, como você, sonhamos por um museu do futuro um pouco mais arejado. Então eu fico feliz que tudo o que está embebido na ficção, que certamente passa também pela minha biografia, tenha tomado cada vez mais corpo. Tem bastante acesso a comentar de uma maneira aberta assuntos que eu acho que não são tangentes nas pessoas. Principalmente agora que há 11 anos que moro na Europa e já tive muitas experiências anteriores, eu acho todos os europeus encriptados a muitos níveis. Todas as situações culturais que eles vivem ainda continuam lidando com situações geopolíticas e tudo mais. Eu estou sempre cada vez mais preparado e feliz de no trabalho tentar colocar vigor nessas ficções, falar de um maior número possível de assuntos com maior calibre possível e com um grau bastante de sinceridade.
PV: E ainda mais estando numa época em que ainda vagueia uma espécie de fantasma do Estado Novo por Portugal, mesmo que tenha terminado há mais de 50 anos.
FMP: É o que faz com que o europeu seja encriptado de uma maneira ou outra. Aqui eu já percebi porque já enquanto eu vivia no Porto, eu vi aqueles senhorzinhos tão queridinhos, todos eles vestidinhos das guerras coloniais: eles estavam vivos, era a biografia deles, eles estavam-se encontrando emanados com aquilo que eles tiveram que viver. Na Bélgica então, por amor de deus. Assim, as gerações ainda vivem ou retroacessam nos corpos vivos as situações de vida das famílias delas e das gerações delas. É tudo muito entrecortado, que não é o meu caso. No Porto, quando a conversa ficava muito carregada, porque emocionalmente vazia, porque as pessoas não conseguem falar das suas próprias emoções, falava: ó gente, eu sou americano, me desculpem. Assim, eu nasci na terra das oportunidades, a gente tem outra vivência emocional entre si. Não é criterioso: o brasileiro pode ser excessivamente emocional, mas ao mesmo tempo ele franqueia a sua emoção de uma maneira que eu acho que no diálogo, principalmente como o mundo está se deletando, eu acho que é um bónus. Enquanto o emocional também não estiver bem equilibrado com o intelectual e o fazer, vai dar tudo errado. E as palavras. Nessa etapa de vida que eu estou, coloco para a frente palavras ostracizadas.
PV: E falando nas palavras, até podemos entrar agora pelo “cafona” adentro. Eu até reservei aqui um segmente mais direcionado para todo este glossário á volta desta exposição, e para mim é muito forte esta ideia do Cafona. E como estávamos a falar um pouco antes de começarmos a entrevista, as novas museologias, principalmente dos museus de arte contemporânea, elas procuram agora uma desierarquização face a uma discriminação temática, intelectual e económica que houve durante vários, principalmente através da arte conceptual. Eu realmente fiquei fascinado com a evocação do cafona, que está na folha de sala, mas no entanto algo me desconsolou, nomeadamente o ponto 17 que diz: “o Cafona é sempre um qualificativo, nunca um verbo. Não se pode “cafonar” algo ou alguém”. Mas porquê? Não será possível “cafonar” o museu? Ou seja: não será o Cafona um potencial aliado da desierarquização do museu, da cultura?
FMP: Acho que com razão, a se comentar, principalmente com o autor. Talvez não enfatizei o quanto que fui feliz de receber esse texto do Bruno Marchand, essa leitura do Bruno Marchand, principalmente na língua portuguesa. Na minha própria língua tem uma maneira de expressar o cerne da intenção. Ele estava tentando, e talvez voltando à nossa situação, essas emoções que estavam acontecendo nessas três semanas, ele também estava a absorver o impacto disso, ele também tinha que produzir um texto. Aí ele percebeu que eu estava preparando esses textos, então ele fez questão que eu colocasse os textos como a entrada da sala, que não fosse a folha de sala. Eles são eu que escrevo manualmente, então eles eram coisas. Mas eu acho que sim, acho que pode “cafonar”. Mas ao mesmo tempo, teve essa senhora há muito tempo (só agora que eu percebi que ela já é mais uma senhora, ou pelo menos mais da minha idade) que deu quatro estrelas, estrelinhas, no Público, e ela usa o Cafona como um adjetivo. E eu acho que a única coisa que talvez tenha sempre que se salientar, é que o Cafona também é, e muitas vezes pode ser, um substantivo. Na língua inglesa tem a palavra tacky. Agora mesmo que tive de produzir textos em inglês de novo numa exposição que está acontecendo na Bélgica, e fiquei sempre com os curadores tentando que façam as pessoas se desaproximarem o máximo possível de que Cafona não é estilo, é convicção pessoal. Quando se fala na estética tacky, ela não é kitsch, ela não se aproxima de nenhuma tendência, tem mais a ver com uma convicção pessoal da pessoa.
PV: De uma forma de estar, de ser.
FMP: Exato. Então, eu acho que o Cafona antes de mais nada é um substantivo, porque é uma convicção. A pessoa está tão dentro e admirada desde dentro, de tão bonito que ela se sente de estar no mundo como tudo aquilo que leva ao seu redor, porque ela nem se pergunta se está seguindo ou não seguindo. A gente está muito escravo também daquilo que a gente tem que dar, não é? Mas tem gente muito inclinada a trabalhar a imagem, mas não trabalhar a imagem para se mostrar, mas simplesmente para estar bem consigo mesmo.
PV: Em Portugal há uma expressão que é “quem é que o trouxe”? Para falar de uma pessoa que não é muito bem-vinda, porque é demasiado sincera.
FMP: Que legal, e como é usada? Em que contexto?
PV: Por exemplo, indo a uma exposição e alguém falar algo como: “eu faria isto”. E alguém comenta: “quem é que o trouxe?” Parece aquela coisa de não saber estar nos sítios. E dito isto: quem é que te trouxe até ti o Cafona? E partir desta tua experiência, para onde é que ele vai? Quem é que o leva, e para onde?
FMP: Então, o importante é que o que ganhei com o texto é que agora estou bem instrumentalizado, principalmente na língua portuguesa. Então já sei que o cerne está ali: se é mais verbo, se é mais substantivo, se é mais adjetivo. Eu já posso e consigo avançar, tanto que agora é meu interesse voltar a trabalhar texto meu, em língua portuguesa, principalmente. Porque eu vejo também muitos artistas portugueses que estão aí no cenário nacional e internacional que produzem pouco texto em português, ou quando produzem é muito complicado.
PV: Até por uma questão de estratégia.
FMP: Exatamente. Eu tive a chance no Porto de ter um assistente maravilhoso por dez horas por semana por certos períodos. Ele é um artista, ele se chama Reis Valdrez, e ele também está naquele caminho que para fazer a sua ascensão, segue aqueles passos a passos. E quando ele chegou a mim, ele estava procurando um trabalho de alguma maneira, estava feliz que ele pudesse reagir frente àquilo que poderia oferecer a ele, mas ele já chegou lá com um mestrado, e aí percebi o quanto que a educação portuguesa é carregada de intelectualidade. Também tive alguns amigos (tenho ainda), que são professores lá nas Belas Artes e tal, e tem os mãos de vaca e tudo mais. É tudo muito… sabe?, entra tudo muito em textos complicados. Então agora eu acho que estou pensando no Cafona, agora estou bem instrumentalizado para continuar tentando reter o máximo possível uma comunicação que é mais direta e sincera, inclusive daquilo que eu penso. E continuar trabalhando sobre esse universo que sempre me chamou muita atenção, que é o da homoafetividade. E ir em frente com isso, procurar novas palavras para situações que as pessoas nem pensam que estão no mundo. As pessoas ainda não entenderam que o homoerotismo não tem nada a ver com a homossexualidade, que se pode ter encontros eróticos e intensíssimos com um outro homem, que não tem de desabar no chupar o pau do outro cara. É perverso, porque a coisa não avança nessa área que é uma área que me interessa, por exemplo. Então ainda estou interessado em trabalhar essas novas palavras. Da mesma maneira que a homossexualidade entrou no vocabulário só no final do século XIX, ela tem que sair no século XXI, ela tem que se esvanecer para outros contextos. Ela foi um critério de identidade que deveria ser controlada. E eu acho que com esses novos anos de sexualidade das pessoas, aquilo ali vai esvanecer. E nessas procuras, o Cafona, ele me libera. Eu ainda tenho intenção de viver um pouco em Portugal de novo, então eu tenho esse padroeiro que faz sempre alertar. Vocês são muito compostos de uma intelectualidade na educação das artes muito massiva.
PV: Parece que dentro desta época tão materialista, as pessoas ainda têm medo das palavras.
FMP: E dos afetos.
PV: Principalmente dos afetos.
FMP: Então chill out, não é gente? Você pode-se emocionar com amigos, está tudo muito claro. Essa ênfase, eu acho que é triste porque a pessoa vem quase como uma guardiã de uma noção que nem é isso que ela passa no dia a dia dela, no que ela cozinha inclusive, nem no que ela come. Fica tudo tão desconectado de uma coisa da outra, mas aqui é um pouco gritante. Mas ao mesmo tempo, acho que tem tudo a ver com o território, eu acho que Portugal ainda vive conteúdos arcaicos muito impressionantes da sua própria civilização. A identidade portuguesa como um território fechado como estado há tanto tempo, tem essa iconografia muito forte. Mas está na hora de fazer com que as coisas sejam mais serenas. Eu estou no âmbito da homoafetividade, principalmente com homens porque é o cenário que mais conheço, e ele também é bem problemático, ele também pode ser bem padronizado e bem disperso. E na verdade procuro agora trabalhar mais no texto e menos na produção de material.
PV: Para esta última pergunta, que até encaixa muito bem nesta rua prospeção de trabalhar o texto agora numa próxima fase, gostaria de propor um pequeno jogo de palavras, que ficou para o fim porque é a pergunta para os 50 mil euros. O Cafona está mais próximo de ser: a) ardente b) teimoso c) um rascunho d) ou ficcional.
FMP: Acho que ardente. Porque ele se dececiona também. Ele passa situações excecionais achando que não dá tudo certo. Mas a ardência no outro dia está lá revigorando, que dá um impulso. É o motor mais importante para ele. A ficção… eu continuo lendo, então elas [ficções] vão entrando dentro desses espaços. Não sei como vai ser no futuro, mas no passado eu lia muito crime policial, mas aí também, até hoje quando tenho de explicar sobre como é o meu trabalho eu falo de colagens E eu também faço texto-colagem, então muito dessas ficções são os textos que você vê (principalmente nessa folha aqui), são retirados literalmente de uma sentença que eu li num crime policial. E eu falo: “uau, nunca ia poder falar essa sentença por mim”. Pelo menos as minhas ficções vão poder falar. Então, voltando para a sua pergunta, a ficção está sempre lá. O rascunho também. Eu acho que o bonito desta exposição é eles me autorizaram a mostrar de novo rascunhos. Falei: “olha gente, vamos mostrar coisas que estão totalmente inacabadas”. E teimosia porque, como você deve saber, eu venho de uma família portuguesa, e ninguém é mais teimoso que um português. E ardência é o que faz o Cafona ficar novo, sabe? Demorou todos esses anos até o Bolsonaro ser… [preso]. Então você fala: “não é possível que eu passei por aquela coisa tão tenebrosa, e que o mundo não reagiu a isso, ou reagiu a isso de uma maneira protetora por um cara tão escroto, meu deus do céu, como que é possível?
PV: Como se costuma dizer: demorou.
FMP: Demorou, não é?
:::
Fernando Marques Penteado, nascido em São Paulo, em 1955, e atualmente a residir em Bruxelas, foi sempre um visitante assíduo das feiras de objetos usados das cidades onde viveu, incluindo as do Porto e Londres. Ao cuidado com esses materiais esquecidos soma-se o trabalho de um ponto: o bordado é hoje um meio privilegiado para o artista, que com ele costura múltiplas histórias, estórias e vozes. As obras de Fernando entrelaçam tecidos às passagens do universo pessoal do artista, para além de homenagear e trazer luz a trechos da sua história familiar. Os materiais oferecem texturas e evocam sensações, o seu ponto bordado, como uma caligrafia, reúne e combina referências e com elas Fernando desenha histórias da emigração portuguesa, do seu árduo trabalho diário e da cultura tradicional que se pode imprimir por entre suas múltiplas diásporas.
Pedro Vaz começou desde 2014, em Coimbra, a organizar exposições e performances. Completou entre 2013 e 2018 a Licenciatura e Mestrado em Estudos Artísticos pela FLUC. Atualmente é doutorando em Artes e Mediações pela FCSH da Universidade NOVA, e integra o laboratório IN2Past enquanto investigador do grupo Museum Studies do Instituto de História de arte da FCSH. A sua investigação doutoral beneficia de bolsa FCT, e conta com a parceria do museu MAAT enquanto instituição coorientadora do projeto.