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ENTREVISTA


PedroNevesMarques, The pudic relation between machine and plant, 2016. Still do vĂ­deo. Cortesia do artista e Galleria Umberto di Marino.


Pedro Neves Marques, vista de exposição Aprender a viver com o inimigo. Fotografia David Rato.


Pedro Neves Marques, vista de exposição Aprender a viver com o inimigo. Fotografia David Rato.


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Pedro Neves Marques, Aedes Egyptie. Stiil do vĂ­deo. Cortesia do artista e Galleria Umberto di Marino.


Pedro Neves Marques, Digital Animals. Video Still. Produzido por Pedro Neves Marques e Steinar Projects. Cortesia do artista e Galleria Umberto di Marino.


Pedro Neves Marques, vista de exposição Aprender a viver com o inimigo. Fotografia David Rato.


Pedro Neves Marques, Ywy a androide. Still do vĂ­deo. Cortesia do artista e Galleria Umberto di Marino.

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PEDRO NEVES MARQUES


12/09/2017

 

 

Este ano pudemos ver trabalhos de Pedro Neves Marques no Indie Lisboa, na galeria Solar em Vila do Conde, e numa grande mostra no Museu Colecção Berardo. Com a exposição “Aprender a viver com o inimigo” quase a terminar, a Artecapital conversou com o artista visual e escritor sobre esta extensa mostra de vídeos e instalações mais recentes, onde aborda questões ligadas ao colonialismo, à economia neoliberal ou à manipulação genética.


Por Liz Vahia


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LV: Um aspecto que poderíamos mencionar sobre o teu trabalho é que ele é multifacetado. Passa pelas artes visuais, pela escrita e pelo cinema. Como é que o teu percurso como artista se foi diversificando nestes formatos?

PNM: Sim, escrevo tanto ou mais do que filmo, seja teoria ou ficção. E hoje, passados já alguns anos a trabalhar no mundo da arte contemporânea, conhecendo em certa medida as suas valências e fragilidades, sinto um enorme desejo de fazer cinema, algo que só agora começou. Esta multiplicidade vem de uma vontade de exploração e expressão, bem como de ir ao encontro de outras audiências. As audiências são nómadas, claro, e inteligentes e sensíveis; acredito sinceramente que o público sabe sempre algo que eu não sei sobre mim próprio e sobre o que quer que eu esteja a dizer, por mais complexo que seja. Mas também é preciso fazer um esforço para ir ao encontro de outras audiências; por isso foi importante para mim publicar o meu recente livro de ficção em parceria com a editora Abysmo/Arranha-Ceús, ou trabalhar com a Curtas Metragens de Vila do Conde. Sempre me vi como uma pessoa bastante dispersa, com um desejo de fazer tudo, o que é bastante aterrorizador, por um lado, mas que por isso mesmo me faz trabalhar imenso para entender o que cada expressão possibilita, estar muito consciente da política de cada meio. É muito importante para mim essa noção das capacidades e limites de cada meio (literatura, ensaio crítico, cinema, arte visuais, etc.), quase chegando a falsear para mim mesmo o que cada meio é. Prever, dentro do possível, aquilo de que um filme de ficção é capaz, em comparação com um ensaio crítico ou a curadoria de uma exposição (eu penso as minhas exposições de modo estritamente curatorial, ajuizando as conexões discursivas entre cada peça).


LV: Até 16 de Setembro podemos visitar a exposição “Aprender a viver com o inimigo”, patente no Museu Colecção Berardo. Como é que surgiu, neste caso, a colaboração com Pedro Lapa, curador da exposição, e o museu?

PNM: Conheci o Pedro Lapa faz já uns anos, julgo que quando colaborei com a curadora Margarida Mendes na programação do seu espaço de eventos, hoje extinto, The Barber Shop. O Pedro era um visitante regular, junto com a crítica de arte, Sofia Nunes, com quem fui tendo ótimas conversas. Mais tarde penso que o Pedro foi à estreia de um filme-ensaio meu no DocLisboa em 2013, do qual ele gostou bastante e sobre o qual fomos conversando até ter sido convidado por ele, junto com a Sandra Vieira Jurgens, para um projeto online, Raum.pt – publiquei um conto, uma espécie de biografia de uma série de máscaras do povo Jurupixuna, indígena do Brasil, mas entretanto extinto, e as possibilidades de repatriação daquelas peças de Portugal para o Brasil. Portanto, havia já um diálogo em curso quando o Pedro me fez um convite, cerca de um ano antes da inauguração, para expor no Museu Coleção Berardo. Depois o processo foi um bocado lento, por questões internas ao museu, mas em Janeiro de 2017 as coisas estavam finalmente a andar. Não expunha, nem exponho regularmente, em Portugal fazia algum tempo, e nunca com tamanha escala e condições de produção. Fiquei-lhe muito agradecido pelo gesto. Foi uma oportunidade que veio no momento certo, visto que acabará de terminar um ciclo de filmes, maioritariamente produzidos em 2016, os quais não poderia ter visto todos juntos tão cedo.


LV: Nos vídeos apresentados abordas muitas questões ligadas ao colonialismo moderno, à economia neoliberal, à manipulação genética... crês que a arte pode oferecer uma reflexão crítica sobre estes temas, tal como as ciências sociais o vêm fazendo?

PNM: Se a arte não o fizer não sei muito mais o que deverá fazer. Vejo a arte contemporânea como um espaço iminentemente retórico e discursivo, o que permite articular críticas complexas, por vezes difíceis noutras formas artísticas. Este é um processo que se pode comparar ao das ciências sociais, mas que tem, evidentemente, as suas especificidades: por exemplo, a capacidade associativa das imagens, um certo silêncio, um tempo que tem tudo a ver com o carácter curatorial, mas também espacial, de uma exposição. Esta política sempre foi para mim essencial; de outro modo perderia interesse pela arte e trataria de encontrar outras formas de expressão, outras formas de viver.


LV: Um dos trabalhos apresentados é um vídeo feito no Departamento de Robótica do Kings College, em que se vê um braço robótico a tocar numa planta (uma espécie invasiva que retrai as folhas ao ser tocada). Sobre este trabalho disseste que querias mostrar uma dança entre dois corpos, mas uma imagem em que o humano não entrasse. É uma antevisão do que virá? Onde o humano desaparecerá, ultrapassado pela máquina e pela natureza incontrolável?

PNM: Sim, este curto filme é uma dança, literalmente, um ritual de sedução. É também um ato sexual, possivelmente não consentido. Existe nele uma indecisão entre tranquilidade, mesmo prazer, e violência. Da minha parte, no entanto, não existe naquela relação entre um robô e uma planta qualquer crítica ao humano, nenhuma linearidade evolutiva ou teleológica – evolução, aliás, que renego. O que existe são relação paralelas, com significados e compreensões mútuas que, por termos ontologias tão distintas (plantas, animais, robôs, humanos, etc.), hão sempre de escapar parcialmente a alguém. Neste caso, compus uma dança na qual não existe humano; uma relação entre duas formas de vida que não precisam de nós. Por outro lado, os robôs já estão aqui, um pouco por todo o lado; na verdade, antropologicamente sempre estiveram, sob outras formas, formas de espíritos, de anjos ou de outras alteridades não-humanas. Não deixa de ser interessante ainda assim notar um certo lado espectral presente no filme, visto que estes robôs com os quais trabalhei são construídos para mimetizar a anatomia humana, mas simplificando-a ao estritamente necessário, a uma economia de meios, para cumprir as suas funções: por exemplo, três dedos em vez de cinco. Os robôs, como compreendi, não precisam de polegar oponível para se fazerem “humanos”.


LV: A cosmogonia ameríndia propõe um estado de humanidade primordial, ao contrário da tradicional visão ocidental baseada na progressiva separação da cultura de uma natureza primitiva. Nos teus vídeos, em que humanos, pós-humanos, máquinas, animais e plantas se conjugam, há também uma crítica a estas categorias estanques. O futuro é esse lugar que vai provar que essa separação não é mais viável para entender o nosso mundo?

PNM: Acredito numa irredutibilidade entre formas culturais. Não que esta opacidade, por assim dizer, seja total, mas a realidade é que eu – branco, ocidental, classe média-baixa – nunca compreenderei uma visão Ameríndia do mundo. Poderei intuí-la e conceptualizá-la antropologicamente; poderei conectar-me parcialmente com esta, como diz a antropóloga Marilyn Strathern, colaborar com ela e mobilizá-la politicamente, mas não a ser. Afastando um pouco mais a câmara, para deixar entrar no campo de visão essas outras formas de vida, pós-humanas, não-humanas e por aí em diante, o que se torna interessante é como esse movimento nos obriga a deixar de falar apenas em diferenças culturais, para passarmos a falar de diferença ontológicas, isto é, sobre a natureza das coisas, sobre a realidade em si. A partir daí, é a própria natureza que se torna duvidosa, e é esta que começa a variar: entramos nas chamadas cosmopolíticas. A partir das filosofias Ameríndias, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, com quem tive a oportunidade de dialogar e trabalhar mais do que uma vez, propôs um termo que nos ajuda a pensar esta variação: multinaturalismo. Este conceito, talvez acima de qualquer outro, tornou-se vital para mim. Penso que depois de uma intensa reflexão sobre a globalização multicultural, na qual o capitalismo (e a própria arte) teve um papel central, precisamos de entrar agora numa fase de reflexão sobre a globalização da natureza: não só pensar a sua construção, histórica e ontológica, mas também participar da sua desconstrução pelas mãos e pelas vozes de outros mundos, outras formas de vida que, como diz a antropóloga Marisol de La Cadena, se vêm obrigados à “nossa” divisão natureza e cultura. Como comentado por vários autores, a divisão entre natureza e cultura é uma invenção da modernidade; não que não exista por todo o lado, em mundos indígenas ou outros, mas a divisão moderna é a sua forma mais radical, mais opressiva, precisamente porque é universalista, porque vê essa divisão por todo lado, até mesmo no seu passado histórico, em momentos onde esta divisão não seria tão clara ou operativa. Prefiro pensar com a Donna Haraway, e usar o termo naturezacultura, tudo junto num emaranhado de onde é impossível desenlaçar o que é cultural do que é “natural”. Penso que há uma política da imagem que deve ser abordada neste debate, bem como um posicionamento que, para mim, deve à distribuição do sensível, como definida por Jacques Rancière, isto é a atribuição de competências e responsabilidades, de quem e do que pertence ao campo do político, e portanto do social, ainda que esta “distribuição do sensível” necessite de ser cruzada com as cosmopolíticas – porque as sociedades não são feitas só de humanos, nem no Japão, nem na Amazónia, nem mesmo aqui, no coração duro da Europa. De uma coisa tenho a certeza: o futuro é antropológico, porque as diferenças são demasiadas e não há um conceito único que nos salve das negociações cosmopolíticas que teremos cada vez mais de operar, uma vez descentralizada – já era sem tempo! – a modernidade que conhecemos até aqui.


LV: Parece-te que o título desta exposição, “Aprender a viver com o inimigo” (título também do vídeo da última sala), denota que o “inimigo” se apresenta impossível de derrotar, que há que viver com ele? Serve esta exposição para denunciar, pelo menos, quem é o “inimigo”?

PNM: O inimigo no título da exposição, e de um filme meu, é uma provocação. Talvez devesse ter um ponto de interrogação no fim, erro meu. Há duas coisas aqui: por um lado, a categoria de inimigo, como pensada por vários povos Ameríndios, é positiva e geradora de possibilidades, possibilidades de humanizar outras formas de vida. Não deixando de ser letal, este inimigo é diferente daquele imaginado pela modernidade capitalista, onde o que existe é um inimigo que é necessário derrotar ou, pelo contrário, criar para gerar uma dinâmica de poder. Esta é a perspectiva positiva da frase, talvez. Por outro lado, trata-se de reconhecer que existem outras formas de vida – estou a pensar, por exemplo, em substâncias tóxicas e químicas – que estão irremediavelmente por aí, no ar, no solo, nos nossos corpos, que não desaparecerão tão rápido, mesmo que sejamos contra estas, que tentemos eliminar as suas causas industriais ou outras, que façamos curativos e terapias várias. Esta é uma leitura, não negativa, muito menos derrotada, mas certamente que melancólica deste título. Não me surpreende que durante este processo de trabalho tenha começado a pensar mais e mais sobre imunologia, a construção sanitária dos corpos, humanos e não-humanos, o seu controlo – como o vírus da Zika, por exemplo.


LV: Resides habitualmente em Nova Iorque, mas este ano pudemos ver trabalhos teus no Indie Lisboa, na galeria Solar em Vila do Conde, e nesta grande exposição no Museu Colecção Berardo. Vamos poder ver em breve mais trabalhos teus em Portugal?

PNM: Para além da exposição no Museu Berardo, passei uma curta-metragem, Semente Exterminadora, no Indie Lisboa e no Festival de Curtas de Vila do Conde – com outro filme também na Solar. No final deste mês de Setembro publicarei, junto com a Kunsthalle Lissabon e a editora Abysmo/Arranha-Ceús, um livro de contos, Morrer na América (o lançamento será dia 29 Setembro, pelas 18h30). Este livro reúne um conjunto de histórias que fui escrevendo desde que me mudei para Nova Iorque, faz cinco anos. É, aparentemente, um universo distinto do da exposição no Museu Coleção Berardo, mas também preenchido de violência, tecnologia e reflexão política. Depois disso, salvo algum lapso de memória, penso que não veremos muito nos próximos meses por cá. Estarei ocupado com várias exposições no estrangeiro, com a rodagem de um novo filme e com um novo livro, ambos de ficção.