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DIANA CARVALHO
CATARINA REAL
08/07/2020
Diana Carvalho, nascida em Lisboa em 1986, desenvolve um trabalho entre a fotografia e o desenho, onde as articulações e possibilidades das imagens são pensadas, e muitas vezes reequacionadas no formato expositivo. Estuda actualmente na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, no curso de Doutoramento em Belas-Artes. A Artecapital conversou com Diana, numa conversa em que muito poucas perguntas foram necessárias para chegar aos pontos fundamentais de compreensão da sua prática e metodologia: ao cruzamento de certas rotinas com narrativas familiares ou quotidianas.
Por Catarina Real
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CR: No teu trabalho há uma recorrência à água e às suas representações. Piscinas, planos de azul, ondas, chafarizes... De onde vem esta afecção pela água e pelas suas formas?
DC: Talvez não saiba especificar a sua origem. A água começou a surgir nalgumas recolhas e projectos e passou a ser uma espécie de categoria de selecção, uma categoria de interesse das e nas imagens. Foi também evoluindo ao longo do tempo. Nos primeiros trabalhos em que surgiu, quando frequentava o mestrado em Práticas Artísticas Contemporâneas na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, a água interessava-me como elemento que pode ocupar um espaço, mas que simultaneamente nos impede de ter acesso a ele. Ou que, mesmo conseguindo aceder a esse espaço, como é o caso de uma piscina em que podemos mergulhar, não o vemos e experienciamos como o resto dos espaços da nossa vida. Num trabalho bastante antigo [Como é que eu menti? Treinámos em casa e depois contei lá, 2011] apresentei um objecto perdido dentro de uma piscina, onde esta passava a ser o espaço de exposição. Sendo um espaço ocupado por água era também um espaço impossível de visitar; o espaço existia enquanto exposição e enquanto ausência de exposição.
Gradualmente estes elementos começaram a aparecer de outra maneira. Houve uma altura em que passei a fotografar bastante o que conseguia ver a partir de casa. E, quando morei em São Paulo, começaram a aparecer as piscinas. Há uma presença muito forte de piscinas nos blocos de habitação, talvez por ser uma cidade que não tem praia e daí surja esta necessidade de ter um espaço de lazer, com água, dentro dos condomínios. Comecei a pensar esse elemento da água como presença no espaço de lazer e, nos trabalhos mais recentes, a água passou a estar sobretudo relacionada com esse aspecto.
Quando participei, em 2018, no programa municipal de residências cruzadas Lisboa-Budapeste, a minha proposta de trabalho centrava-se nos espaços de lazer e na sua relação com a presença da água. Havia uma obrigatoriedade da relação da proposta de trabalho com a cidade e, depois de uma pesquisa virtual - sendo que era uma cidade que nunca tinha visitado anteriormente - percebi a importância da presença das estâncias termais. Budapeste é uma das cidades da Europa com mais águas termais e é muito marcada ao nível do turismo por esse aspecto: a presença da água.
Algumas coisas mudaram quando a minha relação com a cidade se efectivou: o foco passou a estar na presença da água no espaço público. Essa alteração relaciona-se também com a minha forma de estar e de trabalhar. Quando estou na fase de recolha de materiais e de pesquisa para trabalhos, há a presença constante do caminhar. Faço caminhadas e estou atenta a elementos que me interessam, sobretudo de carácter pictórico. Ando, atenta a imagens que me sirvam de referente para desenhos.
Quando estive em Budapeste recolhi muito material. Algumas coisas em que comecei a trabalhar logo que voltei e que resultaram numa série de desenhos que serão publicados em livro, outras que utilizei em ensaios fotográficos e outras imagens que irei apresentar numa exposição colectiva que irá acontecer em Junho. Outros materiais que ainda tenho de editar, sobretudo de vídeo. Mas todos eles envolvem os elementos de água que se podiam encontrar na cidade; o rio Danúbio e a sua utilização e também a presença nos espaços públicos comuns, nos jardins... Os repuxos, os lagos...
Queria entender como as pessoas convivem com a água e a importância que esta tem na relação com esses espaços. A partir daí há um desdobramento de interesses sobre o elemento da água, como um corpo instável e adaptável, incolor, inodora, translúcida, o seu fluir e aspectos mais gráficos; e o seu valor Cultural.
CR: Quanto ao objecto que apresentaste dentro da piscina: a obra que resulta é sua a documentação fotográfica?
DC: O que resulta dele é a documentação, sim. Mas não na altura em que foi apresentado. O contexto é importante: o trabalho foi apresentado na Faculdade de Desporto da Universidade do Porto e surgiu como resposta a uma proposta que foi feita aos alunos do mestrado que frequentava e que incluía as intenções de relacionar os pólos académicos e de atribuir prémios de aquisição. Pareceu-me sobretudo um momento de exercitar algumas coisas que estavam a ser feitas no atelier.
Na visita à Faculdade de Desporto fiquei bastante interessada no espaço da piscina. Trata-se de uma piscina de aprendizagem, com janelas interiores. O ponto de vista a partir do qual o trabalho foi documentado são precisamente essas janelas. Como era um espaço de exposição que em nada se relacionava com arte, sabia de antemão que a exposição não iria ser muito visitada. O facto de o trabalho estar escondido e de eu saber que quase ninguém o iria ver era uma coisa que não entrava em conflito com a proposta em si. Agora existe apenas pelo seu registo, mas acho que o que me interessava naquele contexto de exposição era a sua existência enquanto trabalho escondido, quase impossível de visitar.
CR: E onde é que entra aqui este título: Como é que eu menti? Treinámos em casa e depois contei lá?
DC: Ah! [riso] Em muitos trabalhos acabo por usar alguns elementos relacionados com a minha vivência familiar. O objecto que está dentro da piscina é o meu primeiro bilhete de identidade. Eu consegui guardar o original, mas para o conseguir tive que mentir no registo civil, tive de dizer que ele tinha sido perdido. É uma história caricata. O objectivo de o guardar não era meu, era do meu pai, que achava que guardar aquele primeiro bilhete de identidade poderia vir a ser importante para mim. Na verdade foi bastante útil. A estranheza da história serviu-me para este trabalho.
CR: Como é que aparece esta interferência das histórias familiares e/ou quotidianas noutros trabalhos?
DC: De uma forma mais evidente, acabou também por entrar numa exposição de 2015 à qual dei o nome de Pertences. As três imagens apresentadas na Mupi Gallery, no Maus Hábitos, Porto, foram desenvolvidas a partir de uma delas: o interior de um carro, onde fotografei o manípulo de mudanças. A partir daí cheguei às outras duas imagens que apresentava. Uma delas é um casaco e a outra um relógio. O carro é um Opel Ascona, um modelo dos anos 70 que em Portugal acabou por ter um nome diferente, para se distinguir desta espécie de palavrão que carrega no nome. Passou a chamar-se Opel 1604. O carro foi adquirido pelo meu avô materno, em segunda mão, e tinha algumas alterações à versão portuguesa original; o nome do modelo tinha sido substituído pelo nome original, Opel Ascona, e o interior foi também alterado. O manípulo de mudanças foi substituído por uma versão muito kitsch, com um revestimento em resina sobre uma caveira dourada. Parece uma espécie de símbolo ou representação do espírito do carro. Tinha também um sinal sonoro incorporado para a manobra de marcha atrás e mais uma ou outra alteração que não me recordo. Esse carro, herdado e guardado pelos meus pais, é agora um carro clássico. Daí vem o casaco Opel, uma peça merchandising, ligada aos encontros de carros clássicos do grupo Opel. A terceira imagem é um relógio Cartier, uma imitação.
As imagens em si ligam-se pelas ideias de cópia, ou de falso objecto. Estava interessada em explorar essas ideias de cópia ou versão dos objectos, muitas vezes melhoradas face aos objectos originais. Ia explorando o que é que pode ser uma versão de um objecto.
~, também de 2015, é um projecto que encerrou uma tipologia de trabalhos que estava a fazer nessa época. Recorria a vários objectos que estavam presentes no atelier, objectos que ia recolhendo pelo interesse plástico que também ia encontrando neles, e ia usando várias vezes em varias instalações. Alguns, parte deste projecto, muito provavelmente foram usados noutras apresentações. Neste caso, interessava-me também essa ideia de versão dos objectos, na perspectiva de eles poderem ser usados várias vezes e de cada vez mostrarem outras possibilidade sobre o que eles podem ser.
CR: As versões dos objectos relacionam-se também com a versão das imagens; como no caso da passagem da imagem fotográfica à imagem do desenho?
DC: Eu vejo muito os registos fotográficos como uma fase prévia do trabalho. Por vezes a mesma imagem fotográfica serve como material de trabalho; acabo por ir mostrando fotografias que serviram também nessa fase prévia. No caso do ~, lembro-me que havia uma procura recorrente por certas formas nas imagens que ia produzindo e este trabalho aconteceu também porque acabei por utilizar materiais encontrados no armazém do Fórum Maia, o espaço onde foi feita essa exposição, inserida na Bienal da Maia. Escolhi uma série de coisas que me interessavam e que se articulavam com uma série de interesses e procuras anteriores e fui interligando com outras coisas que tinha no atelier. Muitas destas coisas eram materiais como folhas, de papel e acetato, que após a exposição perderam também a sua existência enquanto obra; são reutilizadas, voltaram ao sítio onde estavam, à pasta guardada no atelier.
CR: Existe sempre esse movimento de articulação entre o que estás a fazer no atelier e à atenção aos espaços em que vais expondo?
DC: Não, nem sempre. Estes casos foram fruto da circunstância. Quando surgem propostas mais particulares de espaços de exposição vou tentando relacionar as duas coisas; o que anda a levitar no meu pensamento e as propostas que recebo.
Acontece bastantes vezes, realmente, porque o que produzo e mostro acaba por pensar o momento de exposição por vezes, mas é também circunstancial.
CR: Por termos falado também do contexto académico de Como é que eu menti? Treinámos em casa e depois contei lá, pergunto-te: como é que articulas o trabalho artístico com a investigação académica?
DC: [Riso] É o que tenho tentado descobrir.
Tenho a preocupação em produzir um projecto teórico-prático em que o trabalho prático dê pistas para as pesquisas teóricas, mas que funcionem como uma coisa conjugada. Está a crescer a minha compreensão de como chegar a esse ponto e acho que é uma coisa em que vou continuar a trabalhar. Será certamente um crescimento simultâneo ao desenvolvimento da tese. O que me tenho apercebido é que ao longo dos anos acrescento pequenos pontos que quero ir trabalhando e assimilo pequenas conclusões a que vou chegando. Esta articulação da teoria e da prática tem-me sobretudo ajudado a chegar a algumas conclusões ou a perceber de onde vêem os meus interesses ao longo destes últimos anos.
CR: E consegues dar-nos as grandes linhas a partir das quais tens pensado os teus interesses?
DC: Trata-se sobretudo de uma procura em torno do que é a imagem dentro do campo técnico e conceptual da pintura e da fotografia. Uma interrogação acerca do que é, o que é que ela pode, como a posso trabalhar, como é que ela pode aparecer no espaço expositivo.
Há coisas que começam a ganhar expressão na relação da imagem com a comunicação, quanto à possibilidade de leituras que retiramos desta. E daí parto para ideias como montagem e edição, quase num exercício sob o pensamento warburguiano. Em relação ao que tenho feito no meu trabalho... Há a questão do visível e do invisível, do simulacro e do falso, da mentira e das coisas que não estão à vista, que estão ocultas. Como é que as conseguimos percepcionar? Interessa-me entender como é que estas questões da Imagem se cruzam com vários meios e disciplinas.
CR: Queres falar um pouco sobre o Conversa sobre migalhas, de 2019? Selecionei-o para conversarmos porque, para além de ser o último a ter entrada no teu site, me parece que assimila coisas que são recorrentes na tua prática.
DC: Este projecto foi feito há um ano atrás, resultado de um residência artística que realizei no Porto, inserida na I Bienal de Fotografia do Porto. Recebi este convite por parte da Susana Lourenço Marques. Como estava já a pensar em algumas coisas que queria trabalhar e exercícios de como ligar estas naturezas de imagens - a fotografia e o desenho - o que trabalhei nesta residência estava relacionado com esse exercício: como colocar num espaço estes dois tipos de imagens, e quais as formas de relação que elas encontram. A proposta em si estava também ligada a um espaço em particular: o novo terreno adquirido pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto para efeitos de extensão das suas instalações. Esse terreno foi-nos dado a conhecer logo após a fase de compra, sendo que ainda tinha os edifícios originais: um antigo palacete, a antiga fábrica de fogões Meireles e também uma pequena ilha de cerca de seis casas.
O que acabou por acontecer foi que as minhas idas ao Porto me serviram para fazer trabalho de campo, apenas para estar no espaço a observar e fotografar coisas que me iam interessando. Depois olhava longamente essas imagens, no regresso a Lisboa, e seguindo o meu método de trabalho. Ia definindo categorias no que tinha fotografando e o que resultou delas foi também o isolamento de alguns elementos formais e gráficos. Interessava-me essa abstracção do espaço que os envolvia. Aquilo que acabei por apresentar, fruto dessa residência e dessas recolhas no espaço, não está de um modo directo ligado à imagem geral do espaço. Os desenhos partiam de algumas dessas recolhas visuais e eram uma segunda fase dessa abstracção das imagens e do espaço. O que me passou a interessar para esses desenhos foi a selecção de partes das imagens em que me baseava e que fazia uma ponte com os desenhos que já andava a fazer; linhas fluídas, manchas... e uma espécie de exercício de representação do espaço negativo. O que acaba por ocupar mais espaço nestes desenhos é a parte preenchida, a tinta da china, o fundo, o espaço vazio da imagem original. O espaço negativo das formas que eu queria representar. Elas tornam-se o espaço vazio, e passam a ser desenhadas pelo fundo do papel.
CR: Como um negativo do desenho.
DC: Sim. Acabei também por apresentar duas imagens que iam recuperar um pouco do peso do espaço negro envolvente, o que fazia com que os objectos, em si, se destacassem. E também a forma como estão enquadrados. Comecei a encontrar nas imagens uma espécie de simulação de registo museológico. Por exemplo, a imagem do rectângulo inclinado, que é uma telha do pavilhão onde era a fábrica parece flutuar. E as cores, que se aproximam do dourado e prateado, evocam objectos museológicos; pratas... preciosidades. A ligação que fazem com os desenhos é sobretudo pela presença formal, para além do exercício de abstracção de que falava.
CR: Disseste que começaste a usar as categorias das imagens para ir olhando para elas... queres falar um pouco sobre essa parte do teu método de trabalho?
DC: Não é uma metodologia que possa ser estudada. [Riso] São interesses, uma espécie de organização visual do que vejo. Um dicionário enciclopédico do interesse que encontro nas imagens - e que é de várias naturezas - como se fossem palavras-chave de organização.
CR: Essa organização contribui também para a reutilização (e resignificação) dos materiais de que falavas à pouco?
DC: Sim. Sim, bastante.
CR: Para o nosso fim de conversa... O que é que este período te trouxe como alterações, de projectos cancelados a projectos novos. Afectou a tua forma de trabalho?
DC: Então... o que está a acontecer em 2020? [riso]
Tinha uma residência que iria começar em Abril no Porto, inserida no projecto Paralaxe [com quem a Artecapital já conversou]. Foi adiada. O projecto também estabelece uma relação concreta com o espaço em que iremos trabalhar pelo que tenho apenas algumas ideias de coisas que gostaria de começar lá, mas precisava da experiência do espaço para saber as direcções que irá tomar. Por isso todo esse trabalho está adiado; desde a residência ao trabalho consequente, à sua apresentação no formato de exposição. Mas não constitui propriamente um dano, uma vez que é apenas um adiamento. Durante a quarentena surgiu também o convite para participar no projecto online Da Minha Janela Vejo o Mundo, organizado pelo espaço The Cave Photography e o convite para participar numa exposição no Porto, nos mupis espalhados pela cidade, organizada pelo João Baeta.
Quanto à minha forma de trabalho... houve um impedimento maior na minha deslocação para o atelier, porque tenho de usar transportes públicos para lá chegar. Antes do anúncio do estado de emergência fui resgatar algum material ao atelier, e uma planta - [riso] para que não morresse -, mas na verdade ainda não toquei em nenhum desses materiais. Tenho estado sobretudo a repensar as minhas ideias e a pensar em coisas que quero executar no futuro. Comecei também a relembrar ou recuperar algumas coisas dentro da minha própria prática e métodos. Nos últimos tempos, dentro dos passeios higiénicos que vou fazendo, acabei por passar a visitar as freguesias em torno do local onde vivo, e que praticamente não conheço. Mesmo vivendo na Amadora, a minha vida passou sempre por me deslocar para Lisboa, inclusive durante a infância e adolescência, por isso praticamente não conheço o sítio onde moro. Nestas longas caminhadas tem sido interessante perceber a história recente deste lugar; há muitos vestígios de quintas, há uma área industrial muito grande e é assim uma mistura de espaço urbano, rural, industrial... À semelhança do que acontece em todas as periferias dos territórios urbanos. Voltei também a fotografar durante esses passeios, algo que não estava a acontecer nos últimos tempos, por força da rotina. Tinha falta de tempo para fazer este trabalho de pesquisa. Preciso de muito tempo, sobretudo para fotografar. Tempo para estar no espaço, para ir percebendo o que me interessa fotografar, para repetir os percursos e voltar a passar pelos mesmo objectos até perceber, à sétima vez [riso] que as coisas me interessam. E aí poder fotografar.