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FRANCISCO SOUSA LOBO
CECÃLIA SILVEIRA E LIZ VAHIA
22/10/2018
Diz que sempre desenhou muito, incluindo banda desenhada que começou a fazer aos seis anos. No entanto, foi em arquitectura que primeiro se formou e onde trabalhou durante algum tempo, só depois transitando para as artes visuais. A viver em Londres desde 2005, são o desenho, a ilustração, a gravura e a banda desenhada que vêm compondo o seu corpo de trabalho. Autor de uma dezena de livros de banda desenhada, Francisco Sousa Lobo colecionou prémios em 2017, incluindo o Best Comic Book no Comic Con, sendo o artista em destaque na edição deste ano do festival Amadora BD, que lhe dedica uma grande exposição retrospectiva a inaugurar já no dia 26 de Outubro.
Em jeito de antevisão, fomos conversar com Francisco Sousa Lobo sobre o seu percurso pessoal e artístico, sobre conceitos e temas constantes na sua obra e reflexões sobre as relações entre o mundo da arte e o mundo paralelo da banda desenhada. Não tem grandes esperanças num ressurgimento do género, mas diz-se pessoalmente satisfeito.
Por Cecília Silveira (CS) e Liz Vahia (LV)
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LV: A tua obra tem um lugar singular no mundo da banda desenhada. Podes fazer-nos um resumo do teu percurso, desde a tua formação inicial em arquitectura até às artes visuais e à banda desenhada?
FSL: Fiz muita banda desenhada a partir dos seis anos ou isso, desenhava muito, sempre tive, no desenho, um lugar sereno de entrega e trabalho recompensante. Faz-se um desenho, mostra-se aos pais com um misto de expectativa, orgulho e vergonha. Acumula-se o conhecimento das coisas e do mundo. A expectativa, o orgulho e a vergonha acompanham-me sempre, no acto criativo, na produção de uma exposição, na disseminação de um livro. Em certa medida há um lado insalubre na criação, acredito mais em Bataille (da Literatura e do Mal) do que na terapia pela arte. Porque estar encafuado a desenhar é obviamente menos saudável do que jogar à bola ou fazer deveres sérios.
Uma vez mostrei os meus desenhos a uma tia avó muito conservadora, que era artista. Pintor não vais ser, mas o teu talento deve chegar para a gravura e o desenho.
Quando chegou a altura crítica de escolher uma área de estudo, tive um momento de hesitação, não sabia para onde me virar, tinha catorze ou quinze anos. Uma amiga apontou para os meus desenhos e disse – o que tu fazes é isto, qual é a dúvida? E eu fui para a área de artes, e encontrei a minha família, reconheci os meus colegas. Quando chegou o momento de escolher um curso, acreditei na voz séria do meu pai, que me dissuadiu de querer ser pintor – ser pintor era uma espécie de caricatura Van Goghiana, estilo ser miserável num atelier solitário, vender dois ou três quadros ao irmão mais próximo, e depois colapsar a todos os níveis.
Fui para Arquitectura, com medo da solidão dos ateliers, e acreditando na voz séria do meu pai. Foi um equívoco que mesmo assim me formou enquanto desenhador (o primeiro ano de Desenho na Faculdade de Arquitectura do Porto foi inspirador), enquanto me limitava de outras formas – escrever e criar eram uma espécie de escape lateral. A vida de escritório dos ateliers de arquitectura desiludiu-me profundamente. É um golpe duplo – por um lado tens a pressão da ética profissional (um edifício pode durar centenas de anos, um erro teu durará a mesma coisa) e por outro lado és limitadíssimo na procura individual e colectiva de sentido para aquilo que fazes. Fica-se ensanduichado entre o cliente e o patrão, gerindo às vezes o impossível. Para mim foi às vezes muito duro, até porque não tenho talento para o lado administrativo e construtivo da arquitectura, que é o que se pede de um discípulo.
Fui então estudar para o Ar.Co em certas manhãs, sabendo perfeitamente que estava a abrir uma caixa de Pandora, e a começar algo mesmo muito perigoso. Falei com o Jorge Nesbitt, que me acolheu no curso de ilustração, apesar de o meu portfolio ter muito desenho e de as minhas questões e gostos terem muito de artes plásticas. Recomecei a fazer BD, e encantei-me com o que me mostraram e o que encontrei na biblioteca do ar.co e nas livrarias de BD – havia a Eightball do Daniel Clowes, o Black Hole do Charles Burns, havia também o Chester Brown, Yoshiharu Tsuge, David B e depois Marjane Satrapi. Foi um baque. Para além de já ser fã das coisas do Nuno Saraiva e da Alice Geirinhas, fiquei a conhecer muita coisa, redescobri uma forma de ser.
As coisas no atelier não iam bem, tinha pesadelos com projectos e assim, e a ideia de estudar gravura em Londres surgiu-me cada vez mais forte. Não tinha talento para pintor, nunca estiquei uma tela, mas o desenho e a gravura interessavam-me muito. Fui com um portfolio horrível, mas como os professores do Royal College of Art gostavam do Goya, deixaram-me entrar. Os meus gostos evoluíram muito rápido, lia desalmadamente, visitava exposições, conhecia artistas em conversas de atelier. Depois acabei o mestrado e as minhas primeiras xilogravuras venderam muito, aguentei-me um ano ou dois com isso. A solidão do atelier, que eu sempre tinha temido, apanhou-me com toda a força. Preciso de contactos sociais para não ficar maluco – na Cartuxa de Évora dizem que os introvertidos não aguentam aquilo. A vida de atelier é a mesma coisa. Se não há um bom galerista com quem falar, colegas ali à volta, se não há orações comuns nem confessor, fica-se perdido, e eu perdi-me. Cheguei mesmo a tentar voltar à arquitectura, para pagar as contas, e isso esteve na origem do surto psicótico (o único que alguma vez tive, note-se, e que esteve na origem do livro O Desenhador Defunto). Estava entalado entre dois mundos – um que não pagava as contas (arte) e outro que me destruía por dentro numa espécie de espiral depressiva (arquitectura).
Ao recuperar da psicose preparei a candidatura a um doutoramento em Goldsmiths. Enganei os professores (outra vez) com um portfolio em arte, quando o que eu queria mesmo fazer era banda desenhada. Tive a sorte incrível de ter óptimos supervisores e estar na instituição certa para fazer o que dá na gana, e comecei a escrever e desenhar O Desenhador Defunto, com um certo embaraço. Sentia que a disciplina do desenho era menorizada em Inglaterra e no contexto do que se chama às vezes arte pós-conceptual, e a banda desenhada era lixo. Visitei a biblioteca de Goldsmiths, como é natural, e havia apenas o Jimmy Corrigan do Chris Ware na secção de banda desenhada. É como se só houvesse um único filme na secção dos DVDs, é o mesmo escândalo. Não há uma dieta mínima de BD, como não há um consumo mínimo de junk food ou assim. Comecei a fazer banda desenhada com o apoio dos supervisores, mas com outros professores a torcerem o nariz. O estatuto da BD é tóxico, mas eu retiro um certo prazer desse baixo estatuto. É como o Maurice Sendak diz do Schubert – é um compositor que escolhe parâmetros humildes, para depois fazer magia dentro desses parâmetros humildes. Livros para crianças e banda desenhada nunca vão conquistar o mundo e, por isso mesmo, têm uma dignidade que necessariamente não precisa de se alimentar de capital cultural.
Depois do doutoramento tive a sorte de poder começar a dar aulas de Ilustração em Inglaterra, e agora tenho um equilíbrio raro. Ensino até às cinco da tarde, vou para o meu sótão de trabalho às seis, e trabalho em banda desenhada, e ocasionalmente em desenhos que podem aguentar-se numa parede, e em pequenas animações. Não tenho saudades nem dos ateliers nem das inaugurações. Estou satisfeito.
LV: Parece-me natural a banda desenhada como um passo à frente da arquitectura, na medida em que ambas trabalham com o espaço habitado, mas na banda desenhada há um todo que é ao mesmo tempo contentor e conteúdo, porque o autor é o Grande Arquitecto da sua criação – espaço e personagens – qualquer que seja o seu tamanho. Queres comentar?
FSL: Parece-me muito bem, essa maneira de pôr as coisas. O autor de banda desenhada, tal como o romancista, tem o poder de pôr em movimento coisas e seres, e criar todo um universo onde o leitor viajará. Mas na banda desenhada há o poder de manipular imagens e a passagem entre imagens, para além de haver um acesso directo ao inconsciente. Vemos e depois lemos, ouvimos primeiro a imagem. Gosto daquele cartoon do João Abel Manta, em que o Eça de Queirós aparece como marionetista, e da imagem do Fernando Pessoa, do poeta fingidor.
A arquitectura vive do desenho, primeiro, e da passagem entre e dentro de espaços, depois. Por isso há uma coincidência de meios (tinta da china, computador) e de fins (passagem entre planos ou quadrados ou espaços físicos). A arquitectura habita-se, e depende muito da luz e do desenho dessa luz. Também a banda desenhada se habita, precisa que o leitor faça o resto do trabalho, e reme o barco que se lhe entrega. É preciso guiar o leitor, sem se cair em directivas muito rígidas.
O arquitecto português em que mais penso, que já morreu, é o Vítor Figueiredo, uma pessoa que dizia que os seus projectos de que mais se orgulhava tinham corrido sem acessos à mala de truques do arquitecto. Penso muito nisso, em usar o mínimo dos dispositivos da banda desenhada, e em trabalhar, de certo modo, com pouca luz, com aberturas e janelas que sejam mesmo precisas. As janelas são os quadrados, e o que está acima e abaixo dos quadrados – a história, a imagem, a página e a dupla página, a passagem e o fluxo, o texto.
Mas, sim, há coisas em comum, porque tudo é construção na arquitectura e na BD, tudo é história. Há muitos arquitectos a fazer banda desenhada, mas não tenho a certeza de razões para isso.
Gosto da imagem do Grande Arquitecto, do desenhador de cidades, semideus, demiurgo, mas às vezes tenho a ideia de que os personagens são como golems, que exigem o seu próprio percurso, nem sempre agradável e nunca expectável para o Grande Arquitecto. É um cliché dos escritores, isso de as personagens ganharem o combate, mas tem paralelos em todas as artes – há muitos compositores cuja música lhes impõe limitações enormes, tanto que a composição parece desenrolar-se da única forma possível. Por isso é que há pessoas que descrevem a música do Bach como uma divina máquina de costura. A banda desenhada, como qualquer projecto artístico, também se desenrola, com parâmetros e formas que podem ser humildes. Cada livro é uma máquina de costura – daquelas da Singer, ainda com pedal, que precisam que o utilizador dê ao pé e à mão ao mesmo tempo.
LV: No teu livro “I like your art much”, baseado na tua amizade com o artista Hugo Canoilas e no trabalho deste, a persona FSL “denuncia”, digamos que em “discurso directo”, algumas questões identitárias e contextuais da arte contemporânea e o lugar marginal da banda desenhada nesse universo.
Sentes que o teu trabalho ainda é de difícil inscrição, tanto na arte como na banda desenhada?
FSL: Não sei bem avaliar se o meu trabalho é de difícil inscrição, no sentido de criar facilmente capital cultural. Tenho um bocado a mania de tentar mostrar aquilo de que gosto, no meu trabalho – aquilo que nas artes plásticas se chama apropriação, ou reenquadramento. Aparece a Simone Weil, o Theodor Adorno e o Kierkegaard, com a mesma facilidade que o Krazy Kat e o Philip Guston. Pode parecer uma grande mixórdia, mas espero que não.
A banda desenhada é absolutamente marginal, mas não penso de todo que a culpa seja das artes plásticas ou de outro qualquer papão. Se calhar essa marginalidade é muito mais profunda – a banda desenhada é primariamente visual, e conta histórias, e tem sempre a característica, desde os tempos de Gutenberg, de coisa massificada. Nunca teve aura, usando o termo de Walter Benjamin. Depois tivemos séculos de propaganda religiosa, depois de comentário social, com imensas coisas a acontecer no século XIX. Mais tarde os miúdos já tinham dinheiro no bolso, e durante para aí um século, a maioria do que se publicava tentava agradar às crianças. É com este rastro infantil que a banda desenhada de agora lida, com a expectativa de entretenimento e acidente – uma expectativa de inocência e de lixo cultural.
Mas a banda desenhada pertence às artes fáceis do Clement Greenberg – esse excelente criador de polémicas e juiz de pacotilha. Uma vez vi um artista português de quem muito gostava entrar numa exposição de ilustração e quase gritar – ah, as artes fáceis. Devo dizer que isso me desiludiu imenso. Foi numa exposição de verão no ar.co. Mesmo assim não acho que seja específico do meio das artes plásticas, esse desprezo. É transversal. Como dizia antes, não há uma dieta mínima de banda desenhada – uma pessoa não tem vergonha se só tiver lido o Maus, e posso garantir que terá vergonha de nunca ter ido ao cinema, ou de não saber o que é o CItizen Kane ou um desses que aparecem nas listas. Por tudo isso é que não há critério, nem pausas e trabalho quando se compõe um cânone, como lhe chama o Domingos Isabelinho, uma lista do que é maior na história da banda desenhada. Há um ofuscamento enorme, o que pode levar muita boa gente a ficar amargurada e desistir. O Yoshiharu Tsuge, não há muita gente que o conheça. Pode ser deprimente – é como se o Shakespeare fosse só conhecido por um arquivista de Stratford-upon-Avon, ou como se ninguém se tivesse dado ao trabalho de tirar o Fernando Pessoa do baú. Felizmente o Yoshiharu Tsuge vai ser agora traduzido para inglês pela Drawn and Quarterly... Eu acho que ainda há esperança.
Mas há uma hierarquia subjacente às artes, sim, há uma fronteira entre as artes aplicadas e as outras, belas. Ilustrativo é arma de arremesso dentro das artes plásticas. Na Ilustração olha-se para as artes plásticas com um certo rancor e uma certeza de que o outro lado não quer comunicar. No entanto o primeiro monocromo apareceu no lugar da ciência e depois da ilustração (Laurence Sterne, página negra), cento e cinquenta anos antes do quadrado do Malevich.
LV: O “hiato entre palavra e desenho”, como escreve o Hugo Canoilas na contracapa desse livro, é um trunfo da banda desenhada? Um precioso espaço não vigiado que se oferece ao leitor?
FSL: Devo dizer que aquilo que acontece entre imagem e texto é aquilo que mais me atrai naquilo que faço. É bonito chamar-lhe espaço não vigiado, terra de ninguém, baldio. Mas penso muito no cachimbo do Magritte, e na primazia cultural do texto. No princípio era o verbo, lá dizia o evangelista. O texto tem razão, é o logos, a verdade. A imagem vem com truques, ilusões, escolhas. O texto é sagrado. As artes plásticas também vivem na sequência do espaço do sagrado. A banda desenhada é supostamente uma arte corrompida, em que nem texto nem imagem são sagrados, e parecem dançar entre si. As indicações de como devem dançar devem ser ligeiramente abertas, no meu entender, não se deve fazer a papinha toda ao leitor.
Quando se tenta guiar minimamente o olho do leitor, em banda desenhada, sabe-se que o texto é uma âncora muito importante. Há pessoas de Dundee que fazem testes, tentando perceber como o olho do leitor percorre a página, mas acho ligeiramente inconsequente, como ciência. É como se ainda estivéssemos obcecados com Deleuze e mapas. Acho mais produtivo uma análise da banda desenhada que vá buscar coisas à teoria crítica, à literatura, à semiótica, à teoria política, a filosofias que se debrucem sobre tempo e narração.
Mas voltando à pergunta - o hiato entre palavra e desenho deixa o campo aberto para um espaço não vigiado, sim. É uma boa maneira de pôr as coisas.
CS: As variações de estilo gráfico e as sequências de vinhetas que apresenta em grande parte das suas bandas desenhadas obedecem a uma economia do gesto mínimo. Um olhar, um virar de costas, uma solidão, um silencio. Entretanto, há uma tensão constante que se segue ao longo dos textos. Como é na prática o seu processo de gestão da narrativa? Ou seja, quando o texto e a imagem tornam-se de facto solidários no fluxo da história? Já na altura do guião, do storyboard?
FSL: Como faço banda desenhada há tanto tempo, consigo fazer primeiro a escrita e imagino um modo de a estruturar logo, com o mínimo de apontamentos visuais. Portanto, na prática, a escrita vem primeiro, mas já com o conhecimento de como pode ser subvertida, acrescentada, ou abastardada pelas imagens. O João Fazenda ficou muito espantado, quando lhe contei que escrevia tudo primeiro, e depois é que desenhava o que quer que seja. Achava que eu teria de ser um desenhador a adaptar o seu próprio texto, em vez de o desenho aparecer já com palavras. No entanto não é bem assim, tento estruturar as coisas na minha cabeça logo de início, e deixar o livro fluir. Há livros que fiz sem saber como iam acabar (O Desenhador Defunto, O Cuidado dos Pássaros). Os dois livros que estou agora a fazer (Os Quarenta Ladrões, O Livro de Mamute) também não sei como acabam, nem sei exactamente o que vou desenhar para os excertos já escritos. Salto para a arte final de uma forma muito mais viva, quase perigosa, por não ter planeado tudo. Se planeasse tudo antes não teria prazer nenhum a desenhar.
A banda desenhada tem tantas facetas que é muito fácil cair no trabalho Fordiano, fabril – hoje planeio, amanhã executo. É um trabalho ingrato, como trabalhar para um patrão rígido, se for feito assim. Não se pode ser empregado fabril, numa espécie de departamento. É preciso ter prazer em cada etapa, se não desaparece a chama e somos meros executantes. Tudo isto porque desenhar custa e cansa, é um trabalho intenso, demorado, muito mais do que a escrita, se é que me faço entender.
Tenho guiões, às vezes, mas são sempre parciais, preciso de não ver o fim, para não perder a força. Depois, às vezes, meto-me em alhadas, como em O Cuidado dos Pássaros, um livro que primeiro tinha um fim cor-de-rosa, depois um fim mais trágico. O Marcos Farrajota (editor da Chili Com Carne) insistiu que o fim fosse mais conclusivo, e fez bem. Torna-se difícil de ler, como foi difícil de fazer, mas faz mais sentido. Foi tão difícil de desenhar o colapso do personagem que tive de desenhar as vinhetas fora de ordem, para atenuar o impacto. O livro explodiria no leitor.
CS: Em “O Cuidado dos Pássaros” as ações do protagonista, embora lógicas e compreensíveis dentro do espaço diegético, são inaceitáveis socialmente. Esse “fio da navalha” (uma ambiguidade) também está presente em outras das suas protagonistas de BD, como em “O Desenhador Defunto, ou Master Song. Quais as suas motivações em usar a BD para tratar assuntos delicados, controversos? Acha que a BD é eficaz em alcançar interlocutores, ou é mais um deserto? Foi (é) leitor de banda desenhada, tem lido o quê?
FSL: O Cuidado dos Pássaros começou quase como um problema impossível que me pus. Seria possível, em banda desenhada, falar de pedofilia, de uma forma realista? E ter um personagem ambíguo, até ao fim? Foi de facto um fio da navalha, nem podia cair no mau gosto (com humor) nem no horror (se houvesse representação do que quer que fosse). Não sei porque escolho temas quase tabu, mas acho que tem a ver com uma necessidade de conhecer os limites do humano, os extremos, e cada livro é uma bengala para esse conhecimento, um ponto de apoio. Uso a banda desenhada porque é a minha forma de falar, mas com a consciência do explosivo que certos temas podem ser – por causa da tal presunção de inocência que culturalmente a BD carrega consigo. Não sei se a banda desenhada é um meio eficaz de alcançar interlocutores, acho que não. O Paul Gravett uma vez falou na banda desenhada como um mecanismo incompleto, uma geringonça que precisa do trabalho activo do leitor. É exigente, a BD, como a penso, não é fácil porque tem bonecos, como se diz tantas vezes. E também não faço associações entre banda desenhada e escapismo. Não tenho nada contra o escapismo, mas simplesmente não o posso praticar, não sei nem quero saber fazê-lo. Mas sim, sou leitor de banda desenhada, penso que estamos num bom momento, mesmo que tudo se esteja a passar às escuras. O termo novela gráfica não ajudou afinal muito, comercialmente. É um termo que não uso, recuso-me a engolir. É como se o cinema decidisse chamar-se literatura em movimento, ou coisa que se parecesse, como disse o Daniel Clowes.
Volto sempre ao Daniel Clowes, à Eightball e livros associados, os três primeiros. L’Homme Sans Talent do Yoshiharu Tsuge foi dos livros mais fortes que já li. Chester Brown continua a ter importância, penso muito nele, no Seth e Joe Matt, quando penso em autobiografia. Marjane Satrapi, David B, Chris Ware, e coisas menos conhecidas como Peter Blegvad, Berliac, Jon McNaught, Jesse Moynihan, o grande Max (Capdevila), a excelente Anna Haifisch. Amanda Baeza, Marco Mendes, há tanta coisa tão boa a ser feita.
Também gosto de ler o The Comics Journal, e os dois volumes de história da banda desenhada do David Kunzler, para além do Thierry Groensteen. Gosto de ler coisas teóricas assim como banda desenhada, mas a minha dieta de leituras vai para além disso. Times Literary Supplement, Art Monthly.
CS: No seu trabalho há imenso espaço para a autobiografia, foi assim em “El problema Francisco” (Ediciones Valientes), no texto publicado no livro “Zona de Desconforto” (da Chili com Carne) e, mais uma vez, no “O Desenhador Defunto”. Quais os limites da autobiografia? Quais os autores que influenciaram o seu trabalho nesse sentido?
FSL: O último livro que reli foram as Confissões de Santo Agostinho, uma espécie de ódio de estimação ou amor difícil. Foi talvez a primeira autobiografia íntima e espiritual da história da literatura e da história da filosofia, escrita no século quarto depois de Cristo. Li-as em inglês moderno, desta vez (tinha antes lido numa versão em inglês arcaico, lindíssimo). Os livros autobiográficos do Ruben Andersen e do Vergílio Ferreira, o Dostoievski, Chester Brown, Art Spiegelman, houve tanta coisa que me marcou em autobiografia. Simone Weil, Santa Teresa de Ávila e São João da Cruz. Interessa-me a autobiografia, estou a fazer uma mais certinha que se chamará O Livro de Mamute. Às vezes a autobiografia é mais certeira, exacta (London Falling, O Problema Francisco). Outras vezes invento personagens e faço uma coisa a meias com eles (O Desenhador Defunto, It’s No Longer I That Liveth). Mas mesmo naqueles livros em que tento fugir à autobiografia, a coisa não é nada fácil. Quando penso nisso penso na transparência do Daniel Clowes ou do Dostoievski. Não sabem fazer outra coisa que não a autobiografia, apesar de tentarem. Interessam-me os projectos não concretizados de Carl Dreyer e de Dostoievski, as vidas de Cristo que nunca fizeram.
As Confissões são um ódio de estimação por causa de terem reforçado uma visão perversa da sexualidade na história da Igreja Católica, de serem um hino à vergonha. São um amor difícil por causa da maneira como são escritas, e de como falam sobre a natureza do tempo e do mal. É difícil sair do confessionário, mesmo para as pessoas que sacodem o catolicismo dos seus ombros.
CS: “Deserto” e “Nuvem” são os seus livros de maior fôlego, juntos são um exercício monástico em BD, sendo simultaneamente: diário e literatura epistolar. Como foi o processo de construção desta BD? Qual a metodologia aplicada na divisão de conteúdo entre os dois registos? Quanto tempo levou? Foram feitos em simultâneo?
FSL: O primeiro livro foi o Deserto, a tal espécie de diário, feito em 2014, sobre uma semana passada à volta da Cartuxa de Évora. O Marcos Farrajota achou que não chegava, que precisava de companhia, e eu pensei e li durante dois anos, e depois veio a Nuvem, em que a estrutura é epistolar. Estava numa galeria de arte a vigiar as obras do Michael Landy, e não me deixavam ter computador. Escrevi as cartas em cima do joelho, enviei para a Cartuxa de Évora, e o monge cartuxo com quem me correspondo respondeu um bocado zangado. Fiquei triste e confuso. Mostrei as cartas a um amigo Jesuíta, e a outras pessoas católicas. Tive de rever o argumento, demorou-me um ano a pensar porque os teria eu ofendido. Depois percebi que muito facilmente o modo literário das cartas abertas cai na sacanice, como dizia o Oscar Wilde. Não podem responder, estes monges, pelo menos de forma pública. Tive de pensar em ética jornalística, também (não queria ser o tal sacana de que falava o Oscar Wilde). Revistas as cartas (foram coisas mínimas), desenhei o livro Nuvem para aí em oito meses. Ao todo demorou-me três anos, esse duplo livro. Agora os monges estão muito contentes com o resultado. Percebem que é um livro muito pessoal, mas rigoroso e que respeita o espaço deles. A última coisa que me passava pela cabeça era fazer uma espécie de artigo sobre a Cartuxa de Évora à Paulo Moura, que dá uma visão triste e desinteressada daquele tipo de vida.
LV: Tens resposta para uma das questões lançadas em “I like your art much”: “What am I doing, carrying comics around, into the art world, into bookstores, into oblivion?”
FSL: Não sei ao que vou, de livro em livro. Mas não tenho saudades da produção de trabalhos para exposição, ou para um patrão. Ensino, escrevo e desenho. Estou satisfeito tanto à mesa de trabalho como com os meus alunos de Ilustração. Não tenho grandes esperanças num ressurgimento da banda desenhada, numa popularização da coisa. Mas também não estou pessimista. Como dizia o Maurice Sendak sobre o Schubert – é humilde mas não é lixo.
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Cecília Silveira (1983) é jardineira em apartamento e brasileira vivendo em Lisboa desde 2010. Licenciada em Artes Plásticas pela Escola Guignard em Belo Horizonte. Mestrado em Crítica de Arte e Arquitetura na Universidade de Coimbra e doutoranda em Belas-Artes (Desenho) na Universidade de Lisboa. Frequentou o doutoramento em Antropologia (etnicidade e migrações), entretanto, acabou por concluir o percurso formativo de Ilustração/Banda Desenhada no Ar.Co. Desde 2015 tem se dedicado exclusivamente a estas áreas e colaborado com publicações no Brasil, em Portugal, Espanha e Reino Unido. É fundadora da Sapata Press, um projeto editorial transnacional com foco em banda desenhada de autorxs de expressão portuguesa. Ensina Banda Desenhada no Ar.Co (Lisboa), leva em frente o "Aurélia: dicionário ilustrado de mulheres" e tem grandes planos de destruição do patriarcado.
Liz Vahia (1979) é licenciada em Antropologia pela Universidade de Coimbra. Possui uma pós-graduação em Teoria e Crítica de Arte Contemporânea, pela EINA (Barcelona) e foi doutoranda no Colégio das Artes, Coimbra, em Arte Contemporânea. Foi bolseira FCT no Museu Nacional da Ciência e da Técnica, estagiou no National Centre for Contemporary Art em Moscovo, sendo actualmente bolseira do ERC – European Research Council no projecto BlackBox (Universidade Nova de Lisboa) e editora da Artecapital.