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VÍTOR FIGUEIREDO: A MISÉRIA DO SUPÉRFLUO
CARLOS MACHADO
[Texto da comunicação realizada no lançamento do livro Vítor Figueiredo: fragmentos de um discurso (Circo de Ideias, 2012), numa mesa-redonda composta por Alexandre Alves Costa, Carlos Machado, Domingos Tavares, Nuno Arenga e Joana Couceiro, que teve lugar na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto a 12 de Dezembro de 2012.]
1.
Conheci Vítor Figueiredo na revista l’Architecture d’Aujourd’hui sobre Portugal (n.º 175, Maio/Junho de 1976), onde foram publicados dois pequenos artigos, de Duarte Cabral de Mello e de Nuno Portas, que lhe eram dedicados sob o título comum “Vítor Figueiredo, La misère du superflu” (“A miséria do supérfluo”), acompanhados dos seguintes projectos: o Conjunto Habitacional de Peniche (1968), o Conjunto Habitacional em Chelas (1973) e o Conjunto Habitacional no Alto do Zambujal (1975).
Eram obras estranhas e fascinantes, sobretudo o Conjunto de Peniche que me fazia lembrar outra descoberta mais ou menos da mesma época: a arquitectura de Giorgio Grassi, que encontrei pela primeira vez num número da mesma revista chamado “Formalismo/Realismo” (Abril de 1977), onde no meio de projectos, bons ou menos bons (não interessa), mas muito vistosos, com maravilhosos desenhos a cores de Aldo Rossi, apareciam três projectos a preto e branco (desenhos e maquetas) que eram, tal como os de Vítor Figueiredo, estranhos, ou perturbadores, pelos menos para mim que lhes dei atenção.
A miséria do supérfluo tinha que ver com o artigo de Duarte Cabral de Mello onde se chamava a atenção para um aspecto particular da arquitectura de habitação plurifamiliar a custos controlados projectada por Vítor Figueiredo: a inclusão de um espaço suplementar ou supérfluo, sem função, destinado a permitir uma utilização aberta – um desafio à invenção, nas palavras do autor do artigo, à invenção de viver –, oferecendo um espaço não conotado funcionalmente, aberto a muitas utilizações possíveis, ou a nenhuma (o que creio que também era uma das possibilidades previstas).
Mas essa ideia da miséria do supérfluo podia ter outra leitura, dado que a arquitectura de Vítor Figueiredo se caracterizava por ser muito depurada, simples (no bom sentido), não recorrendo a efeitos formais, ou supérfluos (como eu achava que acontecia em muitas das arquitecturas de então, tendência que se tem agravado nos últimos anos).
E isso interessava-me porque ia ao encontro de muitas das minhas escolhas, já nessa altura. Vítor Figueiredo e Giorgio Grassi pareciam-me arquitectos radicais, no bom sentido, que iam, ou procuravam ir, à raiz dos problemas, como por exemplo quando Grassi dizia, a propósito do formalismo na arquitectura moderna, que o Pavilhão de Barcelona, a Casa da Cascata, a Casa Schröder ou a Villa Savoye não tinham lugar numa história da habitação humana. Ou quando Vítor Figueiredo considerava o seu melhor projecto uma casa que se recusara a projectar convencendo o cliente a comprar outra, já existente, mais adequada àquilo que ele queria (uma casa suburbana, na Figueira da Foz, com uma quinta, onde podia ter umas vacas e uns bois charoleses de que gostava). Ambos fazendo-me repensar o papel do arquitecto, a partir dos objectivos do projecto.
2.
Mas eu intuía que a miséria do supérfluo, enquanto procura da simplicidade (o que é mais ou menos a mesma coisa), não se confunde com o minimalismo ou o abandono da decoração. Era e é um problema complexo, que não se resolve com atalhos nem com respostas fáceis.
Só mais tarde li uma frase de Aldo Rossi que apontava para o nó górdio, se assim lhe podemos chamar. Rossi dizia, a propósito de Boullée, e cito de cor: “A simplicidade não é a ausência da decoração, o que é uma estupidez, mas a adesão da obra às leis da natureza.”
A natureza de que Rossi fala é a saída, proposta por Boullée, para a polémica entre os antigos e os modernos. Para os Iluministas, como ainda, creio eu, para nós, pelo menos para a maior parte, tratava-se de conhecer melhor a natureza humana (desde Rousseau aos libertinos, ao Mozart de Don Giovanni, etc.), mas também a natureza das coisas.
E quando procuramos perceber o que isso quer dizer em arquitectura, não há palavras melhores do que as de Vítor Figueiredo a propósito da Mitra:
“(...) o processo de concepção teve uma atitude partilhada
por toda a equipa de deitar fora a ‘mala de truques’
que os arquitectos têm e podem administrar
com mais ou menos capacidade ou ‘superstição’
conforme a natureza da sua ambição...
Desejámos que aquele edifício já existisse...”
(O que é exactamente o contrário do que acontece com a Casa da Música do Porto, por exemplo.)
Esta ideia de uma obra que pré-existe ao seu autor é extraordinária, radical, no sentido que lhe atribuí antes. Corresponde ao mais alto grau de exigência que um arquitecto pode formular em relação ao seu trabalho (Vítor Figueiredo tinha consciência disto, sabia muito bem o que estava a dizer, e quais as suas consequências...).
Esta é também uma excelente definição do anonimato da obra, do anonimato das grandes obras de arquitectura: somos todos nós que as fizemos, não nós enquanto arquitectos, mas nós enquanto homens e mulheres que interrogamos o mundo. E os arquitectos, ao projectarem e construírem, dão-lhes forma, revelam-nas, materializam-nas para nós, e nós reconhecemo-nos nelas. Isto é muito claro, por exemplo, nas grandes obras da Antiguidade, no Panteão, no Coliseu ou na Basílica de Massêncio em Roma, ou na arquitectura grega, nos maravilhosos templos de Paestum, por exemplo, que visitei recentemente (admito que na Acrópole de Atenas tudo isto seja ainda mais claro, mas não conheço de lá ter estado).
3.
Visitei algumas obras de Vítor Figueiredo, não todas. Destaco três: o Conjunto Habitacional em St.º Estevão, os balneários da Associação Desportiva de Oeiras e o Pólo da Mitra. São abstractas e familiares. Aparentemente banais mas simultaneamente perturbadoras. Convocam outras arquitecturas como parte do seu sentido.
Em St.º Estevão, as casas são iguais às do Ribatejo, depuradas e realistas, abstractas e reconhecíveis. São casas que repetem aquilo que existe e, no entanto, apontam para a possibilidade de uma transformação do território e do modo como o habitamos. São casas, usando as palavras do autor, “para um homem que não é apenas um ser situado mas ainda e mais que tudo, um ser em projecto, um ser empenhado.” Mostram como a vontade de ter uma vida melhor não implica uma forma nova, mas uma melhor utilização das formas de sempre.
Nos balneários em Oeiras, a obra é reduzida ao quase nada (é uma obra conceptual, como se diz agora, próxima da casa da Figueira da Foz para o amigo que gostava de vacas) e, ao mesmo tempo, uma obra realista, que diz que um muro é arquitectura e muitas vezes basta, não é preciso mais nada (e aqui podemos ler novamente um dos significados possíveis da miséria do supérfluo).
É na Mitra que se entende melhor, em toda a sua extensão, o que significa uma arquitectura que precede o autor (aquela que nós queríamos, como ele diz, que já existisse), uma arquitectura cujo projecto se reduz a um processo de desvelamento, a mostrar ou a fazer aparecer aquilo que já existe, que nos devolve o que já sabíamos sem o sabermos assim, mas que reconhecemos como apropriado, como justo e como evidente.
São três obras no limite da não invenção, anónimas, “como se um arquitecto não tivesse passado por ali”, como diz Vítor Figueiredo a propósito de Oeiras. Fomos todos nós que as construímos, o Vítor Figueiredo fez com que elas aparecessem, e nós reconhecemo-nos nelas (são monumentos, no sentido mais nobre do termo, transportam a nossa memória para o futuro).
4.
Há no entanto um tema, ou um problema, como lhe quiserem chamar, no qual não nos encontramos. Vítor Figueiredo faz a crítica, naquele texto belíssimo para o Concurso para a Obtenção do Diploma de Arquitecto, a um certo modo de entender a arquitectura, diz ele, a partir de “necessidades objectivamente mensuráveis”, o que o conduziu a uma recusa do que chama a “idealidade cínica do racionalismo”. Penso que se referia sobretudo ao funcionalismo, tantas vezes mal apresentado como um equivalente ou uma versão moderna do racionalismo (é o funcionalismo que está na origem do chamado estilo internacional, firmemente recusado no mesmo texto).
Convoco, para terminar, como meu advogado na defesa de uma razão não dogmática e aberta ao passado e ao futuro, à realidade e à transformação, as palavras de Álvaro Siza a propósito de Luis Barragán:
“Nenhuma inovação abandona a antiquíssima razão.
Não há inovação. Há um reencontro da inocência,
uma conquista do estado de Graça,
para que não se perca a Memória.”
Álvaro Siza
(“Prólogo”, Luis Barragán)
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[o autor escreve de acordo com a antiga ortografia]
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Carlos Machado
(Porto, 1956) Arquitecto. Licenciado em Arquitectura pela ESBAP em 1987. Doutorado em Arquitectura pela FAUP em 2006. Foi um dos organizadores do Ciclo de Conferências Discursos de Arquitectura realizado na ESBAP em 1990. Docente na FAUP desde 1988. Investigador no Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo da FAUP.