|
O DESIGNER SOCIAL
ANTÓNIO COXITO
Não amanhã mas durante a noite seguinte, os arquitetos sairão do atelier e os designers verão nas suas mãos o fruto do seu trabalho, quotidianamente; no Bangladesh, na Rocinha ou em lugares sem nome, em lugar de por interpostos catálogos. Se tal panorama se afigura perigoso para a instituição considera-se, no entanto, incontornável e sendo o plano de tudo o que procede no mundo global.
Mas este serviço não será global (não significará a comercialização massiva de artefactos) como nem sequer o seu target é a população urbana. Esta dita população urbana (que alguns julgam que significa todos mas cuja percentagem apenas igualou os 50% da população total em 2008 e da qual um terço vive em favelas, musseques e shanty towns) intensificará a sua opção por marcas multinacionais, alimentadas pela comunicação de massas produzida pelos seus oligarcas. Em relação a este tipo de servilismo não alimentamos qualquer esperança, pelo menos até onde a vista alcança.
No entanto, os restantes 50% (que também se encontra em crescimento, apesar de a uma taxa de 0,2% ao ano até 2030, sendo este dado normalmente escamoteado) tornaram-se mais cultivados, pela redundância de informação entretanto disponibilizada.
Não os interurbanos institucionalizados mas os que habitam nos polÃgonos que sustentam essa malha, compõem uma população cada vez mais exigente e, principalmente, conhecedora daquilo que não quer; não quer o mainstream, quer o verdadeiro exclusivo, o exclusivo à distância da mão.
É neste panorama que encontramos designers a movimentarem-se para fora dos grandes centros urbanos, para o remanescente meio rural não obrigatoriamente agrÃcola, para produzirem em proximidade, em exclusividade e, sobretudo, libertos dos códigos de mercado ainda navegados pelas estrelas cadentes nesse hemisfério.
Pela participação direta e manual com as comunidades onde são desenvolvidos esses projetos, o seu papel passa a ser um papel eminentemente social. A sua efetividade no plano prático, pela resolução de problemas concretos e tangÃveis de pessoas reais, o seu estÃmulo à criatividade e aos dotes ocultos da população profunda, a sua consequência sanitária pela atividade fÃsica e psÃquica desenvolvida, a dimensão ocupacional, lúdica e artÃstica, a criação de postos de trabalho e de um verdadeiro aproveitamento das capacidades disponÃveis, conferem uma dimensão radical ao seu trabalho. Radical porque vai à raiz. Não apenas os artefactos mas o próprio designer tem agora uma função e uma prática.
Encontramos assim o primeiro sinal da verdadeira simbiose entre materiais e técnicas tradicionais com uma cultura divergente. Tal não se tinha verificado dessa forma nas academias, pois ali esses conhecimentos tinham sido traduzidos em produtos que não respondiam ao meio onde foram beber mas apenas ao mundo que se deles se apropriou. Referencia-se este procedimento desde o Arts and Crafts a muito do design contemporâneo dito ecológico.
Quando os limites entre estes dois meios começaram a tornar-se dúbios, no processo de contestação das instituições nasceram escolas fora das academias, verdades fora da grande verdade, projetos pessoais fora da caixa. Isto configurou o advento de um Estado hetero-polÃtico, onde os valores não são absolutos nem globais.
Se não é novo o confronto entre o instituÃdo e os seus contrapoderes, este processo está a dar-se fora desse cÃrculo, no espaço remanescente. Esse espaço tem objectivos próprios, códigos próprios e, sobretudo, uma estrutura própria de legitimação. Não podemos dizer quando é que este paradigma surgiu pois, de certo modo, sempre existiu, mas não estando historiografado. Diz respeito à quela parte do mundo que não é referida mas que nunca deixou de existir por isso e que hoje pode escrever a sua própria história.
Em Portugal essa história passou pelo Experimenta o Campo em 2006. Este projeto contou com três parceiros: a estrutura independente CENTA (Centro de Estudos de Novas Tendências ArtÃsticas), a ESAD.CR (Escola Superior de Artes e Design das Caldas da Rainha) e os artesãos da Beira Interior Sul e Alto Alentejo. Pretendeu-se então identificar polos de trabalho que promovessem relações assentes num apoio mútuo. Esse apoio foi fundado na concepção de objetos especÃficos, gerando uma mais-valia que promovesse um equilÃbrio entre uma cultura urbana, que valoriza o sistema cultural tradicional, e uma sociedade rural, que importa signos da cultura de massas.
O autor e coordenador dessa iniciativa, o designer Bruno Carvalho, extremou hoje esse caminho com o projeto Open Designer. Pode ler-se na sua proposta:
“Open Designer pretende que o designer exerça uma nova atividade laboral num diferente contexto profissional e social. As funções, os materiais disponÃveis, os processos de fabrico existentes e a localização da nova atividade definem o novo universo de criação.â€
Este projeto não envolve artesãos mas contextos profissionais e sociais com os quais o designer interage. Neste âmbito, a sua experiência é deslocar-se pessoalmente para locais onde desempenha trabalhos especÃficos dessa comunidade, encontrando-se neste momento a trabalhar num lagar de azeite e como ajudante de pastor em Vila Velha de Ródão. Em 2012 passou uma temporada na China, num estágio promovido pela Fundação Oriente, da qual resultaram uns halteres em porcelana que batizou de Barbowls, expostos durante a Beijing Design Week. Existe uma certa ironia nesta peça, pelo facto de os chineses andarem a fazerem pesos e com isso estarem mais fortes a nÃvel mundial. Aqui, refletiu sobre a questão de os artefactos chineses vendidos no Ocidente serem normalmente cópias, propondo a apropriação de um produto tradicional chinês para conceber um novo artefacto. Este objecto foi assim construÃdo com os próprios objetos produzidos pelas muitas pequenas fábricas de estrutura familiar existentes em Jingdezhen.
Ainda no mesmo ano, desenvolveu uma residência criativa na Escola Regional de Artesanato de Santo Amaro na ilha do Pico nos Açores. Uma peça resultante desse trabalho foi o candeeiro Lightscales, feito com recurso ao material disponÃvel no local. Sendo uma solução local e uma estética local é aceite pela própria comunidade como sinal de inovação compreendida. Este facto revela-se com uma importância estrutural nas suas vidas. Segundo Bruno Carvalho, “o designer deve ser um consultor criativo, tornar processos e serviços mais eficientes. O designer não faz só objetos. Cria oportunidades com os recursos existentes através de soluções optimizadas (...) atuando no espaço social, promovendo uma relação intrÃnseca de diálogo, tornando-a parte integrante do processo de criação.â€
Kathi Stertzig e Albio Nascimento são dois designers que estão entre Berlim e o interior do Algarve. A sua abordagem foi-se formalizando desde a relação one-to-one com o artesão até ao desenho e coordenação de projetos integrados. O seu mais recente projeto, TASA (Técnicas Ancestrais Soluções Atuais) visa “entender os modos próprios de um contexto cultural especÃficoâ€, conectando os atores locais e gerindo a mediação entre os seus fluxos de modo a optimizar a oferta da produção artesanal face à s necessidades do mercado.
Um dos artefactos produzidos neste âmbito, o isqueiro de pastor, é um exemplo de um produto pensado com vista a servir primeiro a população rural e não apenas os consumidores urbanos; não se limita à apropriação de ideias, técnicas e materiais mas pede-os emprestados para em seguida os devolver optimizados.
Entre 2007 e 2009 fizeram parte de um ambicioso projeto do governo catalão com o nome Oficis Singulars. Foi ali que ganharam experiência com projetos integrados e definiram o formato de colaboração das várias competências: documentarista, design gráfico, investigação etnográfica e trabalho em rede com instituições. Anteriormente tinham concebido e colocado no terreno o projeto Cultura intensiva, um laboratório de 4 semanas na serra algarvia com 5 artesãos, misturando técnicas, materiais e saberes. O trabalho dali resultante deu origem a um livro que, para além de revelar os artefactos produzidos incluÃa também receitas de new cuisine destacando os ingredientes regionais e ainda reflexões sobre as potencialidades da cultura artesanal.
Estes são exemplos de ações que, com maior ou menor visibilidade (pois a sua visibilidade não se serve dos mesmos meios que outros tipos de produção), com maior ou menor envolvimento (que vai do viver tendencialmente na estrada à fixação mais prolongada em locais fora do mainstream), demonstram pela prática a legitimidade e a oportunidade de sair do atelier.
António Coxito
>>>>>
Links
Projeto Experimenta o campo
www.escoladascaldas.com/#Experimenta-o-campo
Projeto TASA
www.projectotasa.com
Projecto Oficis Singulars
www.tinyurl.com/c6n74n4
Projeto Cultura intensiva
www.the-home-project.com/portfolio/intensive-culture