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LINDO E O OUTRO: IDENTIDADE CINEMATOGRÁFICA PORTUGUESA![]() INÊS FERREIRA-NORMAN2025-09-04![]()
Prefácio à contemporaneidade
bell hooks explica que ‘uma grande falha de todos os potenciais movimentos por justiça social de nossa nação [EUA] foi, e ainda é, o pressuposto de que a libertação acontecerá de uma só vez. Isso tem prejudicado os avanços simplesmente porque, quando algumas conquistas na direção da igualdade foram alcançadas, a luta parou.’ Não podemos parar de olhar para humanos com transformações libertadoras. São estas pessoas que uma a uma fazem os números, que carregam os avanços e nos inspiram e permitem um contágio duradouro, feliz e libertador. ‘A libertação é um processo contínuo.’
‘Lindo’ – de Margarida Gramaxo
Façam-no agora: Inspira Expira Inspira Expira INSPIRA
Mergulha: O AZUL
O Lindo e a Margarida Gramaxo são as forças motrizes do documentário ‘Lindo’, pensado, sentido e filmado entre 2016 e 2022 em São Tomé e Príncipe, e realizado em 2022/23. Vemos a paisagem verdejante, rochosa, vibrante das cores e sons de guarda-rios-do-príncipe, de cães, de macacos, sons de infância e brincadeiras inocentes, e o lema da ilha ‘leve leve’ – que significa calma e tranquilidade – rapidamente se instaura quando começamos a ver a primeira longa metragem desta realizadora. ‘Lindo’ prima pela distinção e amálgama entre paisagens terrestres, subaquáticas e sociais. Há uma sonoplastia muito específica ao longo do filme que pontua os mergulhos e provoca por isso um sentido de imersão muito poderoso. Visto em sala, tal sensação é particularmente forte. O azul é infinito e a vida marinha exposta estende o desejo de não sair debaixo de água. As rochas declaram a vulcanicidade da ilha, e os tons beges e cinzento-castanho das filmagens aquecem o azul. É neste azul profundo, umas vezes mais verde turquesa, outras mais prussiano, que vemos o Lindo e o seu grupo - os Cafofo -, numa dança pacata e majestosa. É durante estes bailados que nos param no tempo que eventualmente vemos uma tartaruga sada, a espécie que mudou a vida do Lindo. A linha da superfície da água divide o ecrã na horizontal quando o mergulho acaba e os sons da terra voltam. Manuel da Graça e seus colegas caçavam muitas tartarugas por dia até 2009, pois são uma fonte de rendimento mais valiosa do que o peixe; mas nesse ano, ele conheceu um biólogo do programa SADA. Este programa promovido pela Universidade do Algarve, procura a gestão sustentável da ‘tartaruga-de-pente, ou localmente chamada de SADA ou tartaruga-de-caco, através do envolvimento de atores sociais pois é uma espécie criticamente ameaçada de extinção a nível mundial e cuja população reprodutora na Ilha do Príncipe é uma das últimas de toda a costa ocidental de África.’ [3] Biograficamente falando, este momento foi um momento importante, pois foi oferecido ao Lindo a possibilidade de transformar uma atividade destruidora numa atividade regeneradora. Ainda que estes programas, que foram sendo expandidos através da presença da atualmente designada Fundação Príncipe se tivessem tornado a nova forma de apoiarem o turismo sustentável trazido para a ilha pelo milionário Mark Shuttleworth, tal como Gramaxo admite no press-kit do filme, ‘na última viagem que fiz, em 2022, trazia já a certeza e a prova de que nem todos os habitantes do Príncipe reagiram da mesma forma à mudança dos tempos; nem todos se alinharam com a nova ordem’.[4] Para muitos dos habitantes do Príncipe, o salário provindo das atividades de proteção e conservação da natureza não são suficientes. O Lindo consegue alimentar a sua família com humildade porque tem uma pequena roça (um terreno), mas não é o caso de todos. Com o salário mínimo inferior a €100 por mês, e 35% da população a viver com menos de $2 por dia [5], torna-se difícil justificar os ganhos de uma das empresas que mais emprega na ilha, a HBD, onde alugar uma casa custa mais de €1 000 por noite [6]. Este fosso de desigualdade provém do passado colonial de São Tomé e Príncipe, uma ilha ‘criada’ exclusivamente para o comércio esclavagista, mas também de um modelo de negócios que começou a emergir com o advento da ‘sustentabilidade’: o greenwashing. A privatização de largas quantidades de terreno, privando o acesso da população nativa aos seus recursos naturais, não é desenvolvimento, muito menos sustentável. Muitas iniciativas lideradas, por exemplo, pela African Parks, uma empresa que gere reservas naturais vastas na Zâmbia, Malawi, Angola, Rwanda, Chade, Benim e outros países seguem este novo modelo ‘eco-colonial’: a privatização do território, com turistas a poderem aceder a tais parques por €100 de entrada, um preço exorbitante para nativos. Existem alguns benefícios claro: criando uma reserva, a caça ilegal é monitorizada e por isso existe um esforço de conservação; estando a área reservada à conservação não são autorizados projetos industriais. Um outro lado positivo destas abordagens, e na perspetiva do Lindo, é que há o investimento a longo termo, e ele afirma que essa é uma das suas motivações para se manter humilde e digno, em compromisso com a missão de conservação. Há também a questão do emprego, mas em São Tomé e Príncipe, onde as diferentes classes de indenturados [7] sofrem as consequências da exploração humana até hoje, a lógica do colonialismo de então é a mesma: a des-soberanização da população nativa ao ocupar espaço, desta vez em nome do ambientalismo. As desigualdades aprofundam-se, e no caso de hotéis de luxo, tal como é a oferta da HBD em São Tomé e Príncipe, verificou a Universidade de Manchester num estudo publicado na African Studies Review que esta tipologia de alojamento ‘reforça as desigualdades sociais e económicas. Embora os governos africanos defendam que estes empreendimentos atraem visitantes “de alto valor e baixo impacto”, o estudo aponta que os lucros concentram-se sobretudo em operadores estrangeiros ou em pequenas elites locais, enquanto os salários da maioria dos trabalhadores permanecem baixos.’ [8] Mas como é que a sustentabilidade pode ser sustentabilidade sem a integração justa dos atores locais? Esta questão é sem dúvida abordada no filme de Margarida Gramaxo: o documentado cresce na poesia da paisagem e alastra-se desde o contexto pessoal e biográfico do Lindo, para nos mostrar também o contexto social e económico, entremeado a um ritmo que retrata o ‘leve leve’. Mas, e muito conscientemente, a Margarida não é uma local. ‘Por ser estrangeira e portuguesa, carreguei ao longo deste tempo a consciência de um olhar exterior, inevitavelmente marcado pelo peso simbólico de uma herança colonial ainda por resolver. Esse reconhecimento impôs-se na tentativa de não projetar sobre a ilha o exotismo romântico ou o olhar julgador. Procurei filmar respeitando o ritmo da ilha e a complexidade das vidas que a habitam, resistindo à tentação de explicar. (..) ‘Lindo’ constrói-se assim em quadros estudados, que acentuam a forma como os elementos naturais se cruzam com a vida quotidiana dos humanos na ilha. (..).’ [9]
Identidade cinematográfica Mas infelizmente, a tradição cinematográfica apreciada pelos portugueses não é bem esta. Aquilo que se considera cinema português contemporâneo, é na realidade da bilheteira um falhanço em comparação com a tendência dominante, os filmes americanos. Hoje em dia, os portugueses consomem 72,8% de filmes americanos nas salas de cinema, 12,9% de cinema europeu, e 4,5% de cinema português. Fico abismada quando constato que o ‘Grand Tour’ (2024), filme de Miguel Gomes que ganhou o prémio de melhor realizador no Festival de Cannes em 2024, amassou 11 877 espectadores em Portugal, uns meros 0.89% da audiência de ‘Inside Out 2’ (2024), um filme americano da Pixar e Disney com 1 322 684 de espectadores. [10] Mas esta ótica americana tem sido um problema disfarçado de solução desde há muito tempo, pois a sua abordagem é uma projeção de valores imperialistas. As narrativas são carregadas de símbolos nacionalistas de violência, mas com a desculpa de estarem ‘do lado do bem’, como também do discurso do ‘nós’ e ‘eles’, em que impreterivelmente os ‘eles’ são sempre os maus. Esta nação, a ‘melhor e mais importante do mundo’, vai pintando os nossos ecrãs de características estéticas e ideológicas às quais nos fomos habituando ao longo de tanto tempo, mas que nos torna mais pobres intelectualmente, emocionalmente e democraticamente. ‘Desde os anos 1910, muitas outras cinematografias nacionais tornaram-se cada vez mais reconhecidas como fazendo parte de uma cultura nacional particular, e muitas delas desenvolveram um estilo de filme específico, ou especializado em algum género de filmes. (...) Vale a pena mencionar, que na maior parte dos casos isto ocorreu no contexto de diferentes respostas que se estabeleceram para contrabalançar a presença inundante de filmes americanos no mercado nacional Europeu.’ [11] Foi o caso de Portugal com o cinema de revista, um cinema com alto valor popular no que respeita a símbolos identitários nacionais, assim como valor cómico, que ainda que sarcástico, como tem um fator feel-good, se instaurou na memória popular como o cinema de referência. Assim, quando a escola portuguesa surgiu, ou o Novo Cinema Português pelos anos 60, o interesse internacional pelo cinema português emergiu, e concomitantemente, o nacional decresceu. A linguagem cinematográfica acercou-se à obra de arte, deixou de ser entretenimento, e com essa transformação, alguns anos mais tarde o cinema americano voltou a propagar-se e preencher uma lacuna desnecessária. Penso que estamos numa época em que é pertinente debater a questão do entretenimento americano (em particular dos block e – no contexto do cinema ecológico – os greenbusters, que é o que o público português consome) em contraponto com aquilo a que chamo de honestidade cinematográfica. No domínio da ficção, vemos o cinema americano retratar problemas ambientais com foco em fenómenos catastróficos naturais como tsunamis, meteoritos (‘The Day after tomorrow’ (2004), ‘Don’t Look Up’ (2021)), marcado pela ausência de temas em que catástrofes são causadas pela agência humana, o que por si só é uma omissão intencional alinhada com o negacionismo típico que assola tantas indústrias. Existem realmente documentários e outros filmes que falam da poluição, do estado crítico do solo, não estariam os festivais de cinema inundados com produções americanas na mesma. Porém, filmes como ‘Trashed’ (2012), ‘Before the Flood’ (2016) e ‘Plastic Ocean’ (2016), são dos greenbusters mais populares do género documentário, e nenhum fez alarido nas salas de cinema em Portugal. Talvez hoje em dia sejam mais conhecidos por causa das plataformas de streaming, mas não devido ao consumo cinéfilo. Estes greenbusters, retratam um estado de apocalipse em que já nada pode ser remediado, mas que a batalha entre o bem e o mal continua a ser válida pois é protagonizada pelo espírito americano, acabando por transformar todo o argumento do filme numa propaganda para o uso da violência em nome do bem, e numa responsabilização panótica que identifica somente a normalização de enquadramentos geopolíticos e de ordem geoeconómica. [12] Jean Baudrillard, critico e apaixonado do cinema, quando fala do simulacrum faz-nos ponderar o que é que vem primeiro (ao estilo do ovo e da galinha): se vemos no cinema uma rêverie, e este se define como um espaço para a imaginação inspirada na realidade, ou se, é o cinema que pautua a nossa realidade, e aquilo que retratamos no cinema dita para onde a realidade se encaminha? [13] Baudrillard faz mais duas observações que se verificam não só nos dados de consumo de cinema em Portugal, como também na nossa atual posição política: ‘o cinema e a imagem em movimento representam (…) [o] caminho da americanização do mundo’ [14] e essa americanização inclui a autossabotagem do que é a política, por políticos. Esta comparação vem a propósito de Baudrillard achar que o desenvolvimento tecnológico no cinema, está a destruir o que é o cinema através de uma sabotagem pelos próprios cineastas, que se ‘vendem’ ao tentarem atingir imagens perfeitas, mas vazias, fundindo o que é o hiper-real com o virtual e o real. Baudrillard viu o futuro, pois é mesmo isso que estamos a viver hoje em dia: uma realidade imaginada pelos EUA quererem vingar hegemonicamente o globo, desprezando culturas diferentes, engolindo-as na era da pós-verdade. Ora vejamos como é que os partidos de extrema-direita que proliferam na Europa, e em rede, têm conseguido ganhar terreno. A implantação do sonho americano através de um cinema que o retrata como sendo só os EUA que têm armas e a violência necessária para destronar o mal, fazendo-o com um poder económico imensurável que financia desinformação, permite às massas acreditarem naquilo que passa por entretenimento, mas é na realidade uma implantação ideológica da supremacia norte-americana e a validação do seu colonialismo e imperialismo. Muitas vezes, quer no cinema quer na vida real, inventando ‘o mal’ para poder expandir o seu poder, e mostrar que o podem combater. A fusão entre o virtual (vidas de comunidades inteiras a serem decididas por capitais de risco – números no abstrato – em Wall Street), a hiper-realidade (corpos esculpidos pela inteligência artificial afirmando que têm 52 anos nos nossos feeds de redes sociais, esfumaçando completamente o que é real ou não) e a força hegemónica de um culto racista e misógino baseado na eugenia, são realidades estrategizadas para a americanização da sociedade europeia. Em adição temos uma presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, que cede o seu poder de negociação e sucumbe às investidas de um abusador no recente acordo económico entre EU e EUA. Esta teria sido uma oportunidade de nos libertarmos desta influência inflamada, mas não: a cedência parece ser voluntária, pois a doutrinação começou há muito tempo. Quer seja no nosso imaginário cinemático escoltado pela estética imperialista (os super-heróis, as fardas de institutos da ordem, o machismo representado como norma), quer seja pela preferência dos valores capitalistas que verificamos nefastos devido ao nível surreal e inexplicavelmente desumano ao qual chegou, esta doutrinação cultural é uma forma de colonialidade. Ana Cristina Pereira aponta à distinção entre os termos colonialismo e colonialidade através das definições de Maldonado-Torres: ‘colonialidade não é a mesma coisa que colonialismo’ (2007, 131). Enquanto colonialismo se refere à ‘relação política e económica em que a soberania de um povo está nas mãos de outro povo ou nação, assim constituindo um império’, colonialidade ‘refere-se a um padrão de poder que emergiu por causa do colonialismo moderno’ e está estruturado ‘através do mercado global capitalista e a ideia de raça’ mas não é dependente de uma ‘relação de poder formal entre dois povos ou nações’ (Maldonado-Torres 2007, 131)’. [15] Em Portugal tenta-se fazer cinema em volta de uma identidade nacional desde há muito tempo, [16] mas o problema é que como a americanização do nosso simulacrum é muito ruidosa, torna-se muito difícil o silêncio necessário à contemplação para aceitarmos a nossa verdadeira identidade, essa, composta de uma multiplicidade de outras identidades que cá vieram parar. Mas não ingenuamente ou por culpa de outros: lembremo-nos que fomos nós que iniciámos o deslocamento de humanos em que colonizados perderam tudo e irreparavelmente durante séculos. Por isso, se há cá pessoas que hoje são alvo de mentalidades eugenistas, há que convir que fomos nós que as obrigámos a cá entrar, por razões eugenistas! Mas estas são verdades que o público português não quer consumir.
Os outros na sociedade portuguesa No contexto do cinema português, sinto que há algo de anacrónico em tal busca de identidade. É como se se tentasse formular algo que se sabe de antemão que não vai ser assimilado, ou seja, o cinema continua a avançar experimentando, mas o público pensa que não vai gostar, e nem sequer tenta. Um povo sem uma visão, um teste, nem sequer uma amostra de quem é que quer ser quando for grande... [17] Os números de consumo de cinema português são gritantes de tão pequenos que são, e a minha conclusão é que o passado, ou melhor, a ideia do passado, é a heroína da cultura de massas. Digo isto porque a falta de predisposição a consumir cinema português continuou a verificar-se durante a década de 90, mesmo quando uma E foi aqui que se começou a perguntar porque é que o cinema português deveria exclusivamente (ou principalmente) tratar de assuntos portugueses? Tiago Baptista da Cinemateca Portuguesa e do Museu do Cinema propõe que ‘havia uma boa razão pela qual estas questões [Quem afinal são os portugueses? E quem são todos estes ‘outros’?] tivessem sempre escapado ao cinema português: porque elas iriam expor o quão artificialmente a especificidade nacional do país foi definida.’ [19] Na minha visão, para além da questão colonial que irei explicar, esta definição é fortalecida pela preguiça dos consumidores, no sentido em que é mais fácil consumir entretenimento, que em termos de obras cinematográficas retratam um populismo saudosista, um voltar ao passado, do que um exercício de contextualização, a expansão do conhecimento através da humanização do outro, o abraçar das possibilidades em exponencial, e em compaixão com todos. Mas convido as leitoras a debruçarem-se sobre os números e género de bilheteira e não necessariamente só na minha opinião: segundo os dados do ICA e os seus relatórios anuais, nos últimos 12 anos só houve 3 filmes portugueses que conseguiram um lugar no top 10 de consumo cinéfilo (geral) em Portugal [20]. Ora vejamos qual o género dos filmes: em 2013, ‘7 Pecados Rurais’ de Nicolau Breyner alcançou o 5º lugar (287 144 espectadores), em 2015 ‘O Pátio das Cantigas’ de Leonel Vieira conseguiu o 3º lugar (606 907 espectadores) e em 2022 ‘Curral de Moinas – Os banqueiros do povo’ de Miguel Cadilhe (315 968 espectadores) em 7º lugar. Em 10 anos, produzimos bem mais de 1000 filmes, e só ‘O Pátio das Cantigas’ e o ‘Curral de Moinas – Os banqueiros do povo’ é que conseguem entrar no top 10 de consumo geral, e diga-se, com um número de visualizações consideravelmente inferior aos que ficam em 1º lugar. Todos eles revivalistas comédias populares, e um deles um remake de um dos filmes ‘definidores’ da identidade nacional. Sinto que é como se estivéssemos emperrados num passado criado pela nossa mente, que não nos deixa ver o presente, quanto mais o futuro. Ao contrário da comunidade cinéfila internacional, marginalizamos o nosso próprio cinema porque é de boa qualidade, mas essencialmente, porque não representa uma ideia datada e irrelevante de identidade nacional. O mais triste é que o cinema português tem uma variedade incrível de abordagens, e continua a representar temas identitários ligados à nossa história, aos nossos costumes, às nossas experiências enquanto vivência portuguesa, incluindo histórias do colonialismo e alguma colonialidade ainda que com perspetivas não hibridizadas (confesso que vi tentativas de hibridização – não necessariamente bem-sucedidas – por exemplo n’ ‘Os Papéis do Inglês’ (2024) de Sérgio Graciano). Há também aqueles que se aventuram em apresentar variados géneros ‘americanizados’, como o ‘Solum’ de Diogo Morgado, ou ‘Vive e Deixa Andar’ de Miguel Cadilhe, ou ‘Alguém como tu’ de Leonel Vieira, tal como nos anos 80, houve algumas tentativas como por exemplo ‘O Lugar do Morto’ de António-Pedro Vasconcelos. Mas nem os híbridos americanizados tem boas prestações nos tops de consumo. Sim, chegam ao top 10 do consumo de cinema português, de sublinhar que não é o mesmo top de consumo geral, mas com números usualmente nas dezenas de milhares e com frequência só nos milhares, em contrapartida com centenas de milhares e milhões na contraparte das produções americanas. Porquê falar de hibridização? Porque é simplesmente reconhecer a verdade de um mundo globalizado. Falo de hibridização cultural, e não necessariamente de apropriação cultural. Defendo uma forma de criar em colaboração, em que o ruído do império se silencie, e possamos escutar claramente quem já foi o outro. Defendo uma hibridização em que o colonizador se sinta desconfortável com as propostas dos colonizados, mas que lhes dê as boas-vindas, e que os colonizados possam aceder às plataformas que colonizadores criaram. Defendo trabalho artístico e cinematográfico em que colonialidade seja debatida para ser erradicada, e colonizadores e colonizados encontrem um caminho para fazer as pazes, e mostrarmos a humanidade das duas partes: vicissitudes, vulnerabilidades e valores. Do meu ponto de vista, se vamos falar de identidade nacional, é este o híbrido que tem de se resolver para conseguirmos assumir a nossa identidade, e realmente ultrapassarmos a artificialidade da definição de que Tiago Baptista fala. A inclusão do passado colonialista na nossa cultura, é urgente, mas não do ponto de vista do colonizador e sim do colonizado. Vou usar uma analogia quiçá melindrosa, mas que segue a tradição cristã portuguesa: cometemos o pior dos pecados, mas ainda não nos fomos confessar; mais grave ainda, ainda não nos arrependemos e nos perdoámos. Falta compaixão para todos os lados. Na Guarda, onde há um Consolado Angolano, ouvi no mês passado de julho, um homem branco dizer num café perto deste consolado ‘ah eu não acredito nessa história de que fomos muito maus em África’. Eu pergunto-me como é que podemos ainda ter este nível de desresponsabilização? Maus ou bons (e friso que não fomos bons!), se nos afirmávamos como um país não-racista, então porque é que a hibridização das culturas africanas não vende? Porque é que em vez disso vende (a hibridização d’) a cultura americana? O cinema é um veículo poderosíssimo para entendermos a condição humana. Como é que nos estamos a deixar colonizar intelectualmente, politicamente, e economicamente por uma nação que nos demonstra (os EUA para ser clara) que os direitos humanos são descuráveis e vendáveis? Não queremos assumir o que colonizámos, mas estamos a deixar-nos ser colonizados! A nossa identidade nacional não tem nada a ver com os norte-americanos, mas tem sim muito a ver com as culturas de São Tomé e Príncipe, Cabo Verde, Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, e por nossa própria mão. Queremos as mercadorias, queremos usar as pessoas, mas não queremos a sua humanidade, completa com as coisas que poderiam enriquecer a nossa experiência de vida? Parece-me além de idiota, extremamente mesquinho, e de uma pequenez só imitável pelas comédias populares, abundantes em machismo e humor brejeiro. Imagino que existam filmes que falam do ponto de vista do colonizado, principalmente em festivais, mas não estão nas nossas salas de cinema comerciais (muito menos nos top 10) o que significa que não chegam a pessoas suficientes. E agora volto ao ovo e à galinha: o cinema híbrido é preciso para abrir corações e mentalidades, ou precisamos de mentalidades e corações abertos para ir ver cinema híbrido? Uma coisa para mim é clara: precisamos de muito mais honestidade cinematográfica, para que o cinema que consumimos seja uma manifestação de um mundo harmonioso, destituído de violência, crente na abundância e distribuição igualitária, e a recuperação de ecossistemas. Mas o que me parece que está a acontecer, é precisamente o contrário. Estamos a deixarmo-nos ser colonizados pelo desvirtuamento do nosso imaginário cultural através da violência capitalista, patriarcal e racista americana em tantas áreas da nossa vida: a educação (sugestão do aumento das propinas e sistema de endividamento, extinção da FCT, extinção do Plano Nacional de Leitura), a saúde (privatização acelerada através da desvalorização do setor público), a desregulação da lei laboral, o atentado aos direitos das mulheres... para não falar na óbvia xenofobia e racismo das leis da imigração, pois nesta matéria quem diz governo, diz políticos de extrema-direita, ambos americanizados até ao ponto de ensaiarem uma cópia rasca do 6 de janeiro de 202120. [21] Artistas de São Tomé e Príncipe como Olavo Amado, Herberto Smith e René Tavares abordam precisamente temas de hibridização, marginalização e identidade geográfica e cultural. Um trabalho que me toca particularmente, é (Re)Descobertos (2013) de Olavo Amado, que veste as estátuas de mármore de João de Santarém, Pêro Escobar e João de Paiva em frente do Museu Nacional de São Tomé e Príncipe com tecidos coloridos africanos. Toca-me por várias razões; em primeiro lugar, porque já trabalhei a questão das estátuas públicas, neste caso em Londres, onde na Murder Mile (Milha dos Assassinatos) que se estende desde Leicester Square, passa por White Hall e vai até Parliament Square, estão exibidos bronzes de todo o tipo de criminosos de guerra: desde o inventor de campos de concentração até massacres genocidas. Trabalhei esta questão com um livro de artista, fotografia e jornais, pois questiono, quem é que andamos a chamar de heróis na nossa sociedade? ‘As sociedades não erigem estátuas e monumentos para trazer vergonha sobre figuras históricas, mas para os lembrar carinhosamente, para que o seu lugar na história seja reconhecido positivamente. O espaço público nunca é neutro porque a escolha de quem e como nos lembramos é sempre política’. 21 [22] – diz Ana Cristina Pereira quando introduz o trabalho de Olavo Amado. Sublinha ainda que estas estátuas (as originais) ‘são um produto de um esforço coletivo feito para honrar três indivíduos, mas também o grupo de pessoas ao qual eles pertenciam, e o evento histórico que os europeus chamaram de ‘descobrimentos’.’ 22 [23] Aqui está uma das questões tão pertinentes para o desbloqueamento da nossa identidade: a linguagem que usamos é uma componente crucial de como os nossos cérebros funcionam, sinapses são criadas, neuroplasticidade é desenvolvida e mentalidades transformadas. Dizer ‘descobrimentos’ só porque passámos a conhecer algo que não conhecíamos antes – que é uma das definições de descobrir no dicionário – é uma falácia que ignora toda a história que esta palavra especificamente significa e a conotação política que ela carrega. Quero enfatizar que a linguagem é composta de muitos aspetos como a sintaxe, a gramática, a morfologia, e a conotação. A conotação é um aspeto que por ser por vezes subjetivo e consequentemente mais difícil de delinear, torna-se mais fácil falsificar a sua objetividade quando convém. Os descobrimentos têm uma conotação política e histórica que não pode descurar o facto de que pessoas já existiam nas nações que invadimos, colonizámos e escravizámos. E enquanto em Cabo Verde e São Tomé e Príncipe não vivia lá ninguém, o papel que estes territórios tiveram em expandir e agravar ainda mais o projeto opressor, foi de uma centralidade indiscutível. Uma obra seminal, os (Re)Descobertos de Olavo Amado participam na disputa da memória coletiva e lutam contra o silenciamento do oprimido de forma exímia, através da hibridização da obra de arte, como se de honestidade cinematográfica se tratasse. Prontos a valer-se da proeza do domínio do oceano atlântico, os navegantes exploraram muito mais do que só água: seguiam as ordens do império. Em inglês, há um provérbio que deixo como alerta: it takes two to Tango (são necessárias duas pessoas para dançar o Tango). Quem manda, precisa de mandados. Sem militares, não há exército. Sem incendiários não há indústria do fogo. O sistema é o sistema, mas o sistema é composto por pessoas. O racismo é sistemático, mas é composto por racistas e apologistas. O machismo é sistemático, mas torna-se em realidade pela mão de machistas e apologistas. Eufemizando, mas alargando a definição de Paulo Freire, a opressão é composta por opressores, e por pessoas que vêem nela uma oportunidade de serem opressoras.
O oceano. Lugar de luto. Lugar de vida. [24]
Precisamos de mais Lindos na vida, pessoas que escolhem os outros porque são parte de si, e não se deixam corromper pelo vício do dinheiro. Precisamos que se o cinema português continue em busca de identidade nacional, que o faça pela via da honestidade cinematográfica e assuma o nosso presente como ele é: um híbrido. E precisamos que o público português consuma cinema português, pois isso sim, seria sinal de uma identidade salubre. Precisamos de mais honestidade cinematográfica e por isso de mais ‘Lindos’ nos nossos ecrãs, que nos deixem perceber como é que a beleza de uma paisagem anfíbia e um artefacto cultural híbrido, constituem a metáfora e a influência perfeita para uma sociedade integrada, melhor.
Inês Ferreira-Norman
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Notas |