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OPINIÃO


O cantor, Inês Pargana © Sara Cardoso Silva


A Viúva, Inês Pargana © Sara Cardoso Silva


Vista geral da exposição A narrativa são os outros © Sara Cardoso Silva


Vista geral da exposição A narrativa são os outros © Sara Cardoso Silva


Avaria, Inês Pargana © Sara Cardoso Silva


Um país agradável, Inês Pargana © Sara Cardoso Silva


Texto por Gonçalo M. Tavares © Madalena Folgado


Turistas, Inês Pargana © Sara Cardoso Silva


Texto por Gonçalo M. Tavares © Madalena Folgado


O Artista, Inês Pargana © Sara Cardoso Silva


Cumpre-te © Madalena Folgado


Inês Pargana © Sara Cardoso Silva


Senhor Augusto da Cruz Santos e Senhor Agostinho da Silva © Inês Pargana

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AS ALTER-NATIVAS DO BAIRRO DO GONÇALO M. TAVARES



MADALENA FOLGADO

2023-03-24




 

 

Prólogo: De 11 de Fevereiro a 2 de Abril está patente na Casa da Avenida em Setúbal a exposição A Narrativa são os outros, de Inês Pargana e Gonçalo M. Tavares. As moradoras noturnas do livro O Senhor Brecht e o Sucesso, da coleção O Bairro — no qual moram, entre outros ilustres moradores, por exemplo, O Senhor Valéry e O Senhor Kraus —, fazem nesta galeria a sua aparição em plena luz do dia. 

 

 

Quem pensava que o Bairro do Gonçalo M. Tavares era cul-de-sac, desengane-se. Existem, afinal, alter-nativas. Excepto ao meio-dia, altura em que a sombra é menor, segundo as indicações adicionais dos sinais de trânsito que se impõem tiranicamente às linhas de orientação do paradigmático urbanismo do escritor, transformando momentaneamente todas as ruas em becos sem saída. Os homens de sucesso, como O Senhor Brecht, são detentores de uma sombra muito longa ao início e final do dia — As pessoas sem sucesso também. É possível entrar e sair do Bairro pelas sombras d’O Senhor Brecht, que no entanto só escreve ao meio-dia, para nos poder sentenciar com maior precisão. Mas como a Inês Pargana é especialista em leitura dinâmica, desdobrou os textos do nascer ao pôr-do-sol, fixou todas as suas sombras com vigorosas linhas — inspirando-se no método de Dibutade, a primeira desenhadora — e transformou-as pela cor em pintura. Eis que o Bairro do Gonçalo assiste a um surpreendente acontecimento de alter-natividade. Nunca mais foi o mesmo.

Até à data, a Inês não se quer responsabilizar por ter sobrepovoado o Bairro do Gonçalo com alter-nativas. Houve quem acreditasse que era uma estratégia de fixação, não de sombras, mas de cotas para senhoras, neste Bairro até então de senhores. Esta coisa de recalcar as sombras é, dizem os psicólogos e psicanalistas, muito mais complexa do que imaginamos; parece que acabamos sempre a projectarmo-nos uns nos outros. É sempre melhor exercitar calma e criativamente a auto-ironia, como o Agostinho da Silva aconselhava. Talvez por isso a Inês tenha deixado de projectar arquitetura. Compreendo-a, de resto, muito bem. Expõe[-se] na Casa da Avenida em Setúbal, mas ainda assim, diz que A narrativa são os outros… Afinal, todos sabemos, porém nem sempre, que as coisas da arte têm mais que ver com a alteridade e menos com a identidade. A ingerência do Outro (=alter) que habita o inconsciente, partilhando connosco o grande caldeirão da criação, é, inevitável — Nunca saberemos quando neste Bairro se dará o próximo assalto à mão armada, de pincel ou esferográfica…Há uma certa insegurança no ar, podemos até nos sentir vulneráveis, o que é preciso, e não só porque é preciso: É tão preciso que corta o ar à pincelada e pelo aforismo. 

Surgem então nesta exposição gloriosos atos falhados proporcionais ao sucesso do Senhor Brecht. O Gonçalo já nos avisa na contra-capa do seu livro “O senhor Brecht é um contador de histórias, histórias por vezes políticas, e com um certo humor negro. Tem sucesso e isso é um problema”.  Os deslizes acontecem — embora não só — por via de erros e/ou supressões como a seguinte, que aqui assinalamos com parêntesis rectos, como manda a convenção: “na[rra]tiva”. Inês: Tu és uma alter-nativa; i.e., uma habitante outra do Bairro…Por favor, pára de culpar “os outros”! O gesto de apontar uma arma (pede-se ao leitor para fazer o gesto neste instante de modo a manter leitura dinâmica) implica-nos num ato falhado de dedos: Ao apontar o dedo indicador para o sentenciado, três apontam de volta. O polegar opositor é quem decide, como aliás desde sempre nos primatas — Os senhores que criaram os smartphones sabem o quão vantajoso é delegar a responsabilidade a este nosso ancestral decisor-opositor. Veja-se a arma-berbequim da Sátira pintada pela Inês, animal da cintura para baixo como o Gonçalo aponta, a partir de uma “Avaria” contada pelo Senhor Brecht, na qual o criminoso e o funcionário responsável pela sua execução trocam, literal e não figuradamente, de lugares.  

Mas o que vem a ser isto da leitura dinâmica? Não, não é essa leitura dinâmica. O leitor desinteressado pode encontrar um vasto leque de ofertas e serviços para — e é este o objetivo principal dessa outra leitura dinâmica — aumentar a sua velocidade de leitura. O que pressupõe, evidentemente, — ou se calhar não tão evidentemente — recalcar a Senhora Dona Anima que opera nas profundezas do Ser, numa voluptuosa colaboração criativa, e portanto de alteridade, com o Senhor Animus, segundo a concepção da psique humana do psicólogo Carl Jung. Com base na investigação destas duas instâncias, em A Poética do Devaneio, Gaston Bachelard defende a seguinte tese: “o devaneio está sob o signo da anima”. Por assim ser, “É nesse repouso feminino, longe das preocupações, das ambições, dos projetos, que vamos conhecer o repouso concreto, o repouso que descansa todo o nosso ser” — Ora esses outros leitores dinâmicos, não estão para tais devaneios. 

Uma das técnicas dessa outra leitura dinâmica, para ler até 10 vezes mais rápido, é evitar a subvocalização; i.e., mexer os lábios ou até — imaginem — as cordas vocais enquanto se lê. Num outro ensaio, A Poética do Espaço, Gaston Bachelard fala-nos de como aprendeu com um barítono, por sua vez informado por psicólogos experimentais, que não se pode pensar na vogal a, sem que as cordas vocais se mobilizem, o que faz com que pronunciar a palavra vasto, lentamente, tenha um efeito particularmente curativo em caso de depressão. A relação entre personagem e máscara vem do Teatro Grego; per sona, significa através do som, o som que passava através dos orifícios das máscaras dos actores. Felizmente a leitura dinâmica da Inês e do Gonçalo não é tapa-buracos; nesta exposição as personas e as sombras podem caminhar juntas e desvairadamente à solta — o que aliás nos devolve uma certa humanidade. As personagens femininas, masculinas ou transgénero que nos habitam podem, em A narrativa são os outros — não fosse esta uma exposição de personagens e sombras — usar livremente as nossas cordas vocais e lábios…E claro, o par romântico pode encontrar-se nas margens das páginas dos livros: O Animus da Inês, a instância psíquica mais ativa, ali deixou uma série de anotações para a sua Anima, a habitante das profundezas do Ser, que são também expostas na Casa da Avenida. Não são propriamente românticas, mas cada par amoroso sabe de Si Mesmo. Isso, que também chamam de Self, i.e., isso que pode ser lido como selfie, se muito velozmente, e que se refere à totalidade psíquica que sempre nos escapará. 

A Anima é — para os outros leitores dinâmicos — uma preguiçosa. E por falar em selfies, a Inês pediu aos seus seguidores do Instagram para lhe enviarem “retratos em versão preguiçosa”, após ter lido “Um país agradável” do Senhor Brecht, país esse povoado por pessoas preguiçosas. Pintou alguns em superfícies espelhadas e expôs. Foi no entanto tão lenta, que o Gonçalo sentenciou:  “Todos os / Teus / re / Tratos são / falsos. / Até o espelho / está / Desatualizado”. Como se pode ler, é-me difícil transcrever a sentença, porque o escritor, afinal, também desenha. Os T’s são afinal ✝…Eis que sucede uma verdadeira chacina narcisista: Os reratos, devido aos maus tratos, transformam-se em ratos e os ✝eus em eus mortos. E como com certeza já perceberam, para que a transcrição de uma sentença se torne um poema, as barras diagonais que separam os versos evitando que o poema ocupe inutilmente espaço na vertical ( / ), têm de passar a ser perpendiculares ao texto ( | ) — Como guilhotinas, precisas. Os outros leitores dinâmicos não apreciam coisas inúteis. 

Após ver as pinturas da Inês pela primeira vez — pausa inútil para o leitor se aperceber que Inês rima com vez, embora não se verifique aquele excesso que nos suspende próprio da poesia, o que nos faz neste instante cair a pique — o Gonçalo, segundo palavras suas, sentiu “vontade de fazer qualquer coisa em conjunto”. Refere mesmo: “Senti uma ligação direta entre aquelas personagens por vezes assustadoras, por vezes intrigantes, com alguns dos meus textos e, de repente, houve uma ligação que me pareceu não apenas possível mas quase necessária” — Arriscou a alteridade nos vários cadernos de desenhos colocados lado a lado com as pinturas da Inês, como legendas outras — ou mesmo lendas outras — ainda que tenha desenvolvido alguns anticorpos. Ganhou essa (já) estranha imunidade que se adquire via vulnerabilidade — Mas em caso algum se pense que são legendas de santo. 

Em A Expulsão do Outro, Byung-Chul Han fala-nos dos perigos da proliferação do idêntico, e por conseguinte, da identidade, por desaparecimento — ou recalcamento — do outro. Fala-nos do aturdimento gerado pelos ecrãs, onde a comunicação se dá via cumulativa e de modo a satisfazer e se adaptar completamente ao nosso gosto. E, ainda, que tal proliferação é “comatosa”, i.e., não geramos anticorpos para a gordura. O que me leva a crer que existem então muitos modos de obesidade mórbida, alguns até em corpos em muito boa forma física. Leio no caderno-guilhotina ao lado da pintura que comunica com o texto “Turistas”: “É im / por / ✝an / ✝e não ✝omar / banho / na / piscina dos Mortos [e uma linha desliza]”. Nesta pintura não há proliferação do idêntico. 

O Outro irrompe como uma guilhotina — Já foste. Os pequenos textos são assinados pelo Gonçalo e…não são ass[ass]inados pelo Gonçalo. É o que acontece, quando se pensa e escreve ao mesmo tempo, sem possibilidade de revisão, como refere a propósito do seu acontecer — E que maravilhosa liberdade! Têm vontade própria; como aquelas assinaturas aparatosas, segundo os especialistas em grafologia, das pessoas que se dão muita importância, e portanto, que estão condenadas ao sucesso sem felicidade, que segundo um famoso coach de auto-ajuda, em tempos ao serviço do Sir Anthony Hopkins, é o próprio fracasso. Nesta coisa do sucesso é preciso, com precisão mortal, encontrar alter-nativas: Uma em particular, a nossa Anima, segundo Gaston Bachelard, onde “descansa todo o nosso ser”, e portanto, onde se descansa — por integração da personalidade — em paz ✝. Diria mesmo que são precisos abismos — e note-se, uma vez mais, como os pequenos textos parecem pouco resistir à gravidade — como que para poder morrer, e então renascer, neste ou noutro Bairro, através da felicidade do que pode ser-fazer coisas em conjunto. Desejemos-lhes, se possível com muita sinceridade, muito sucesso! 

 

 

Este texto foi primeiramente publicado, conjuntamente com o texto de Emília Ferreira O narrador é cada um de nós, no catálogo da exposição A narrativa são os outros, lançado dia 4 de Março de 2023, na Casa da Avenida em Setúbal

 

 

Epílogo 

O MENINO NICOLAU E A GAIVOTA

 

Quem é o menino Nicolau? Procurei num motor de busca da internet o significado do nome Nicolau e eis o que encontrei: “o que vence com o povo”, “o que conduz o povo à vitória” ou até o próprio “povo vitorioso”. E que gaivota é esta?  É uma Gaivota que se cruzou no meu percurso, enquanto caminhava junto ao Tejo, há cerca de quatro anos. E, que me resgatou de um quase afogamento; de uma perigosa corrente formada pelos meus próprios pensamentos — felizmente, mudei de direção. Grasnando vigorosamente, fez-me emergir e voltar a cair, mas desta feita, no Real. Tão empenhada que estava em me salvar, que mesmo lhe tendo sido oferecida comida por uma pessoa que merendava no banco onde pousou (repare-se a sombra de um saco com comida à esquerda na fotografia), manteve-se estoicamente quieta — a ponto de se deixar fotografar para a posteridade — É, portanto, uma Gaivota com sentido histórico. 

Ainda que o seu grasnar fosse um tanto ousado, quase excedendo o número de decibéis autorizado para a sua espécie, porém, não podendo apontar (porque apontar na maioria dos casos é feio, e como referimos no texto principal, implica-nos num ato falhado de dedos), pousou junto de um stencil grafiti, onde se lê:  “Cumpre-te” — a saber, uma exortação do Agostinho da Silva. Claro está que estamos ainda sob a influência sentenciosa do Senhor Brecht. Cumprirmo-nos — sentença curta, aqui com a Gaivota, fábula curta, como a Fábula Curta de Kafka, mas ainda mais curta — implica-nos num diálogo com o e-terno; para lá do espaço-tempo. E é aí que entra o Senhor Augusto da Cruz dos Santos, ilustre visitante do Bairro e avô da Inês Pargana, que fez nesta exposição a sua aparição. Veio diretamente do Bairro do E-terno, carregado de ternura para a todos oferecer. Vive neste Bairro porque escreveu histórias tão importantes e decisivas para a nossa Humanidade como Os passeios da menina Inês, O livro do João Martim, A formiga perdida e outras histórias, O tronco navegador, Coisas e loisas do nosso peregrinar…Todas para os seus netos e bisnetos.

Conta-me a Inês que o avô a ensinou a prestar atenção. Melhor: A oferecer generosamente a Atenção, contemplando diferentes ritmos de existir, espécies, coisas animadas e não animadas, mas sempre animadas — Espero que nos ajude deste modo no nosso Desafio Ecológico. Por um niquinho não conseguiu escrever o conto do Niquinho; assim se refere a Inês de modo ternurento ao seu filho mais novo, o Nicolau. Cumprir-se é, também, não querer ser igual a ninguém — ou não contribuir, por servidão voluntária, como vimos antes, para a proliferação do idêntico. O Gato do Agostinho da Silva lembrava-o todos os dias para ele mesmo, o Professor, se cumprir — era uma fábula repetitiva, mas precisa, narrada pelo exemplo e não apenas com palavras, por aqueles que já são o que são, e por isso fazem coisas inanarravéis. E como é que o Senhor Augusto da Cruz dos Santos nos avisou da sua visita? Enquanto ainda escrevia o texto, dei particular atenção às cruzes do Gonçalo — Não fosse ele o Senhor Augusto…da Cruz dos Santos. Depois, ocorreu-me citar, como há anos não me lembro de o fazer, o Agostinho da Silva. E quis o texto — o texto é que manda sempre — que referisse o tal gesto; o de apontar, no caso, uma arma. 

O gesto deve ter ficado no meu subconsciente: Logo à entrada da Casa da Avenida, podemos ver um auto-retrato da Inês, a convidar-nos para subir para a exposição. Mas a verdadeira aparição do habitante do Bairro do E-terno, chegou-nos, imediatamente após a Inês ter tido acesso ao texto que escrevi, antes ainda de ter sido publicado no catálogo da exposição. Depois de o ler, fala-me da surpresa e co-incidência significativa de ter referido algo que também refere muitas vezes; a saber, o facto de quando apontamos o dedo indicador, os outros três apontarem para nós de volta — no caso particular de apontar uma arma, o polegar aponta para cima, para o Bairro do E-terno. Porém, totalmente inconsciente foi a referência ao Agostinho da Silva, muito estimado pelo seu avô, a ponto da Inês ela mesma ter uma fotografia de ambos em sua casa, numa moldura que o próprio fez. Essa constatação foi feita através de uma troca de mensagens por WhatsApp, e a fotografia que aqui publicamos sem qualquer edição, enviada em anexo. 

Vemos então um reflexo da Inês sobre o vidro da moldura — um sorriso ternurento. Um Gato, que, por-ventura, dir-lhe-á como o do Agostinho da Silva o mesmo, porém o mesmo não é o idêntico — segundo também Byung Chul Han —, e, uma almofada cujo padrão se estende para a minha fotografia da Gaivota, em particular, para as pedras da calçada atrás da mesma. E ainda…e-videntemente, os gestos: O Senhor Agostinho da Silva aponta para o Senhor Augusto da Cruz dos Santos, porque sabe que se cumpre; é uma exortação que faz ricochete — Possa "cada um ser o que é e deixar ser contagioso". O avô da Inês faz, solenemente, o gesto de colocar a mão no peito, o mais próximo do coração — Cumpriu-se. Ambas apenas reparámos nos gestos naquele instante, em que olhávamos com Atenção para a fotografia, no caso da Inês, uma vez mais — As imagens têm vida própria, é preciso ter cuidado. 

O Professor dizia que o que lhe interessava era que a Vida fosse ela própria uma ficção, i.e., vivida como tal, com aspectos que até parecem ficção…mas são bem reais. Por falar em Real, o Senhor Miguel Real, numa sessão em sua homenagem, esclarece-nos sobre o que seria isso da Terceira Idade, a do Espírito Santo, ou, ainda, O Quinto Império, segundo Luís de Camões e o Padre António Vieira, de que tanto falava Agostinho da Silva. O culto do Espírito Santo havia sido introduzido em Portugal pela Rainha Isabel de Aragão, devota do abade calabrês Joaquim di Fiore. O abade referia-se a uma Idade do Pai — da Autoridade —, seguida de uma Idade do Filho — do Sacrifício —, e, por fim, o tão esperado advento da Idade do Espírito Santo — a Idade de um Messias Colectivo, dir-se-ia, o próprio “Povo Vitorioso”, ou Nicolau. No Culto do Espírito Santo português — com particular incidência no Brasil e Açores — coroa-se uma Criança, um menino ou menina tornado Imperador ou Imperatriz. E toda a procissão é marcada pelo desfile de crianças. Mas o escritor Miguel Real torna o advento laico, porém, não menos sagrado: A Idade do Espírito Santo seria antes, coroar o que de mais puro existe em nós, e portanto simbolizado pela e-terna Criança. 

O escritor refere-se a essa Criatividade, a da Criança, quando em nós des-coberta — O Quinto Império e os seus Imperadores são, portanto, esses outros Des-cobrimentos. Seja o Nicolau connosco co-coroado; possamos cumprirmo-nos colectivamente, com o que temos no peito, como nos  sugere o Senhor Augusto da Cruz dos Santos. Saibamos e em favor da nossa Liberdade, cada vez melhor traduzir. Na origem da palavra traduzir, está o sentido de transladar; i.e., deslocarmo-nos transportando algo de valioso, e portanto, de algum modo, vadiar, como também exortava o Professor — Ser conduzidos pela Vida que somos e que dá a si própria forma.  Traduzir, por exemplo, as Três Idades de Fiori, por outras trindades, como As Três Metamorfoses do Espírito de Nietzsche, respectivamente, do Camelo, do Leão e — também — da Criança. Para já, porque próximos de Abril, O Menino Nicolau e a Gaivota, e eis que com o título chega também a canção: Uma Gaivota voava, voava, asas de vento...Nascemos, de facto, livres. 

As coisas da Arte estão fora do espaço-tempo, mas são por nós fixadas no Real, que incluí também a nossa imaginação — Ou, dir-se-ia, fixadas pela nossa realeza. Caso contrário, não passam de modas; ouvimos por isso alguns críticos de arte dizer: “Isso é tãaaao final dos anos noventa…ou tãaaaao…”. A propósito do Quinto Império, Agostinho da Silva fala-nos de ouvir a Deusa, na Ilha dos Amores. E o que seria tal chamado? Segundo o Professor, referindo-se aos cantos IX e X d'Os Lusíadas, tal resgate dos marinheiros implicaria, primeiro, que os corpos se apaziguassem para que a cabeça estivesse livre e então ouvir a voz da Deusa; e, segundo, que a Deusa pudesse então arrancá-los das limitações do espaço-tempo, deste modo pressentindo o Futuro como um Passado e Presente simultâneos. Foi assim que aconteceu com a Gaivota que me resgatou, ali mesmo, ao pé da Agência Europeia de Segurança Marítima, no Cais do Sodré, em Lisboa. Deixemo-nos de modas e saibamos dar a ver os modos pelos quais a vida dá a si própria a sua forma; se rasga e expande na sua dimensão poética, pelo encontro com o Outro. E, segundo o Professor, pelo exemplo, ser cada vez mais "poeta à solta".  
 

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Madalena Folgado

É mestre em arquitetura pela Faculdade de Arquitetura e Artes da Universidade Lusíada de Lisboa e investigadora do Centro de Investigação em Território, Arquitetura e Design; e do Laboratório de Investigação em Design e Artes, entre outras coisas.