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Que eu possa detectar a força mais profunda / que liga o mundo e guia o seu curso. Goethe in “Fausto”.
O que significa que um objecto “se encontra simultaneamente em dois lugares”?
O fenómeno do qual deriva a contra-intuição dos quanta chama-se “sobreposição quântica”. Ocorre uma sobreposição quântica quando, em certo sentido, duas propriedades contraditórias se encontram presentes simultaneamente. Por exemplo, um objecto pode estar aqui e também estar ali! É a ideia de Heisenberg quando refere que “o eletrão já não tem uma trajetória”: o eletrão acaba por não estar num lugar nem noutro. Em certo sentido, está nos dois lugares. O eletrão está, portanto, numa sobreposição quântica de dados. Não tem uma posição única. Tecnicamente diz-se que um objecto pode estar numa “sobreposição” de várias posições.
Dirac, chamou a esta excentricidade “princípio da sobreposição”, considerando-o a base conceptual da teoria dos quanta.
Cuidado: não significa que “vemos” diretamente uma sobreposição quântica. Nunca vemos um eletrão em dois lugares. A “sobreposição quântica” não é algo que se veja diretamente. É algo que produz efeitos observáveis, indiretamente. O que observamos é a “interferência”, fenómeno ondulatório resultado da superposição de duas ou + ondas num mesmo ponto, não a sobreposição. O que observamos são “consequências” subtis do facto de uma partícula estar, em certo sentido, em vários lugares ao mesmo tempo.
O gato de Schrödinger
Erwin Schrodinger ilustrou este quebra-cabeças [sobreposição quântica] invertendo uma complexa experiência mental com uma história famosíssima - o gato de Schrodinger - que tem como resultado uma criatura aparentemente impossível. Vejamos em que consiste: Schrodinger imagina um gato que se encontra fechado numa caixa “numa sobreposição quântica de duas configurações: vivo e morto ao mesmo tempo”, o que é muito surpreendente. A teoria diz que a onda psi do gato está numa “sobreposição quântica” de gato-vivo e gato-morto, assim permanecendo enquanto não observarmos o gato - ou seja, o gato é a soma de duas ondas. Uma onda descreve um gato morto. A outra onda descreve um gato vivo.
A consequência é que já não é o mesmo que dizer que “não sabemos” se o gato está vivo ou morto, pelo menos até ser medido / observado. O gato não está morto nem vivo, mas vivomorto uma mistura dos dois estados. A diferença é que há efeitos de “interferência” entre o gato-vivo e o gato-morto que não aconteceriam nem se o gato tivesse vivo, nem se tivesse morto. Como a interferência quântica, que só ocorre do facto de uma partícula estar, em certo sentido, em vários lugares ao mesmo tempo. Trata-se de uma interferência se o gato estiver nessa “sobreposição quântica” - resultado da combinação/ soma de dois movimentos vibratórios. Para um sistema grande do dia a dia como um gato, os efeitos de interferência previstos pela teoria são muito difíceis de observar.
Essa é a “sobreposição quântica”, cujas consequências vemos: o gato encontra-se em “ambas as configurações”. Está numa sobreposicao quântica de duas configurações: vivo e morto. Mas não é só isso. Há mais. E é realmente impressionante: se “analisar” o estado do gato… a interferência desaparece; nesse momento, a função de onda colapsa num gato vivo ou morto. Se olhar para ele, salta para uma única configuração e a interferência quebra. Por outras palavras, a “observação (que requer consciência) determina a existência”. Parece que basta “observar” para mudar o que acontece. É incrível. Mas é o que acontece. A interpretação de Copenhaga da teoria quântica estava completa. Antes de o observamos, o eletrão existe numa mistura de estados quânticos diferentes. Se isto tudo o deixa confuso e não está a entender nada, não é o único.
Atentem no absurdo: quando eu observo um sistema quântico que esteja numa sobreposição de dados com a minha observação altero o estado do sistema o que é contra-intuitivo e se ele estiver numa sobreposição a minha observação vai destruir essa sobreposição obrigando o sistema a ir ou para o zero ou para o 1, só podendo estar num único estado. Tecnicamente, dizemos que a função de onda “colapsa”, ou seja, salta totalmente para um ponto, no momento da medição; antes de o observamos, o sistema existe numa mistura de estados quânticos diferentes. O que quer dizer que de um estado quântico [da matéria] só consigo extrair um estado clássico.
Acha que o gato de Schrodinger está mesmo tanto vivo quanto morto? — A interpretação de mundos múltiplos está hoje em voga nalguns círculos filosóficos e entre alguns físicos teóricos e cosmólogos: ou seja, não interpretar a onda psi como uma probabilidade / matemática científica de que certas coisas acontecem. Ao invés disso, interpretá-la como uma entidade real, que descreve o mundo como efectivamente é — Por conseguinte a onda psi total tem agora “dois mundos”. O mundo ramificou-se em dois componentes, um em que o gato está vivo e vê-mo-lo vivo, e outro em que o gato está morto e vejo-o morto. Portanto agora há 2 Victores - um para cada mundo. Num mundo paralelo igualmente real, há uma cópia de mim que vê o gato morto. Eis porque razão o gato pode estar vivo e ao mesmo tempo morto; no entanto, se olhar para ele, também eu me duplico. Como interajo continuamente com inúmeros outros sistemas além do gato, há consequentemente uma infinidade de outros mundos paralelos, igualmente existentes, reais, onde existe uma infinidade de cópias minhas.
Vivemos num mundo multiverso?
A interpretação de muitos mundos proposta pelo físico Hugh Everett III, é uma teoria sobre o multiverso que sugere que cada vez que uma observação quântica é feita, o universo divide-se em diferentes versões, onde cada possibilidade de resultado se torna uma realidade separada. Por outras palavras, é uma interpretação da mecânica quântica que desafia a ideia de que a função de onda colapsa quando é feita uma observação. Em vez de colapsar, psi continua a evoluir, criando um ramo separado para cada possibilidade de resultado da observação. Esses ramos tornam-se universos paralelos.
A ideia de "universos paralelos" e de variáveis ocultas que tentam preencher o mundo de realidades adicionais além do que vemos, inspirou Christopher Nolan na realização da “Origem”, onde cria o mundo do sonho, levando as personagens para dentro de um mundo paralelo, construído com os seus segredos; uma outra versão do universo, incluindo a possibilidade de que, em algum universo, possa ter feito escolhas diferentes, ou que eventos históricos tenham ocorrido de forma diferente. A "Origem" é um filme que tem poder para manter dois tipos diferentes de estados, dois mundos, um deles o mundo do sonho. Os sonhos parecem reais / conscientes enquanto as personagens se encontram neles: só quando acordam percebem algo de estranho, que faz com que questionem a sua propria realidade ao acordarem. É a ideia de Heisenberg quando refere que o eletrão acaba por não estar num lugar nem noutro. Em certo sentido, está nos dois lugares. Não tem uma posição única.
O Universo é, inegavelmente, um Universo quântico.
Porém, nunca vemos todas as contorções atómicas que os eletrões efetuam - apenas o fazem essencialmente no interior do átomo, onde não os conseguimos ver nessas acrobacias - para tornar possíveis os computadores e a internet, porque somos formados por biliões e biliões de átomos, onde esses efeitos quânticos se equilibram e anulam, e porque o tamanho dessas flutuações quânticas é a constante de Plank h, que é um número muito pequeno. — O princípio da sobreposição quântica de diferentes estados possíveis haveria de abrir caminho a uma nova geração de computadores e redes de telecomunicações. As suas implicações científicas são enormes, uma vez que manter um sistema quântico num estado de sobreposição traz-nos uma série de vantagens - permite desenhar sistemas que analisam duas hipóteses ou resultados em simultâneo e, assim, garantem um aumento de capacidade de cálculo e processamento de dados, quando estão em causa múltiplas variáveis ou alternativas.
O átomo, em tempos o objecto + misterioso do Universo, revela-nos de súbito os seus segredos + profundos. Significa também que familiares leis [da matéria] do senso comum são violadas de forma rotineira ao nível atómico. Aparentemente, num contexto quântico testes que classicamente funcionam para estabelecer relações de causa e efeito [causais] deixam de funcionar - essa causalidade pode ser zero ou nula. A essa escala, os eletrões podem estar/ existir simultaneamente em multiplos lugares ao mesmo tempo, o que não é verdade para objectos maiores. Nem uma única experiência violou a teoria quântica.
Mas onde estamos então exatamente? Não consigo deixar de pensar nisso neste momento.
As relações de causa e efeito são um dos principais alicerces da física clássica. E depois são elas que permitem uma compreensão do mundo que se manifesta no nosso dia a dia e, apoiadas por estratégias experimentais inteligentes, podemos concluir que dois eventos têm uma causalidade positiva entre eles. Não é possível ser e não ser ao mesmo tempo: é isto que o princípio logico da “não contradição” nos diz ao referir que duas afirmações contraditórias não podem ser verdadeiras simultâneamente.
Contudo, a mecânica quântica desafia as noções tradicionais / clássicas de racionalidade e lógica. O mundo quântico parece existir sob outras regras. Algo, de verdadeiramente miraculoso e novo aconteceu. É por isso que temos lasers, transístores, computadores digitais e Internet.
Micromundo vs. Macromundo
Antes, observámos como a teoria dos quanta e o núcleo da sua estrutura matemática dada por uma única equação - rege o modo de construção das coisas. Desse momento em diante afasta-se a ideia de que o mundo pode ser representado de maneira figurativa, o que nos faz dar um verdadeiro passo em frente. Só podemos compreender verdadeiramente a Natureza através de teorias físicas abstratas — A descrição de um sistema quântico não é uma imagem ou uma metáfora, mas sim um conjunto de números. São tudo números - a complexidade da matemática transformou a física; deixou de ser uma descrição das coisas e dos acontecimentos para deter o poder dos operadores abstratos: estes jogos abstratos, intelectuais, completamente desligados do nosso dia a dia e dos seus inúmeros problemas, comportam-se como matemática, não se comportam como partículas, não são como feixes de matéria ou energia. Assim, toda a pesquisa feita na teoria quântica em mundos paralelos é realizada através do raciocínio matemático científico. A teoria decompõe-se matematicamente em outras dimensões. Na verdade, o nosso cérebro nem sequer consegue visualizar como se mover em outros mundos paralelos. Passou a ser claro É a matemática “pura” que molda o nosso mundo.
Em 1797, Novalis explicava que, A ciência na sua forma aperfeiçoada tem de ser poética.
É por isso que precisamos de compreender o que acontece na física quântica e aceitar a “Indeterminação”. Onde antes havia uma causa para cada efeito, agora existe um leque de probabilidades. No substrato + profundo das coisas a física não encontrou uma realidade sólida. Uma partícula tem muitos modos de atravessar o espaço, mas escolhe um só. Como? Por pura aleatoriedade! Nada, nem sequer o estado de uma miserável partícula pode ser apreendida na perfeição. Em termos filosóficos o que está para lá do nosso alcance não é o futuro, tão pouco é o passado — É o presente! O presente é incerto, como se a realidade nos deixasse ver o mundo de modo cristalino apenas com um olho de cada vez, mas nunca com ambos.
O Futuro não é determinado pelo Passado.
No final, Schrodinder bateu-se como um leão contra a descontinuidade quântica, contra o mundo das matrizes de Heisenberg que parece depender demasiado da existência de um sujeito que “observa”!, queria defender a imagem da realidade contínua da visão clássica de Newton e Einstein. Todavia também ele [Schrodinger] acabou por capitular e reconhecer a derrota [aceitar a indeterminação]. É melhor considerar uma partícula não como uma entidade permanente, mas como um Evento instantâneo.
Entremos no Observador.
[Então] Quem é esse sujeito que “observa”, que conhece e detém a informação? Que informação tem ele? O que observa? Foge tal observação às leis da natureza ou também pode ser descrita pelas leis naturais? Se o sujeito do conhecimento é uma parte da natureza [interior ao mundo], porque motivo tratá-lo de maneira especial? Mas uma partícula sabe se a observamos ou não? Resumindo: o que é um observador? — Esta questão leva-nos finalmente às relações!
Não era estranho, perguntou Schiller a Goethe no final de fevereiro de 1795, como estavam ligados à natureza, por + que acreditassem no livre-arbítrio e na elevação do ‘eu’ criativo?
Onde finalmente se fala de Relações.
O núcleo da interpretação ‘relacional’ da teoria dos quanta, consiste na ideia de que a teoria não descreve a maneira como os objectos quânticos se manifestam a “nós” (ou a entidades especiais que observam / cientistas em laboratório que observam e medem o objecto quântico estudado, usando instrumentos de medição, que revelam a luz emitida pelo átomo, ou o lugar onde chegam os fotões). Ela descreve como qualquer objecto físico atua sobre qualquer outro objecto físico.
Pensamos o mundo em termos de objectos, coisas, entidades, no jargão científico “sistemas físicos”: um fotão, um gato, uma árvore, uma obra de arte, uma rapariga, um planeta, um aglomerado de galáxias… Nenhum desses objectos se encontra numa solidão. Pelo contrário, eles actuam constantemente sobre os outros. É para essas interações que temos de olhar se quisermos compreender a natureza, não para os objectos isolados. Uma árvore absorve energia dos raios de sol, produz o oxigénio que os habitantes da cidade respiram enquanto observam as estrelas, e estas últimas movem-se na galáxia arrastadas pela gravidade de outras estrelas… O mundo que observamos é um continuo interagir. É uma densa rede de interações.
Os objectos caracterizam-se pela maneira como interagem. Existem só na interação com outras coisas. O próprio objecto é apenas um conjunto de interações sobre outro objecto. Falar de objectos que nunca interagem é falar de coisas que - mesmo que existissem - não nos dizem respeito. O mundo que conhecemos, que nos diz respeito, que nos interessa, o mundo a que chamamos “realidade”, é a vasta rede de entidades em interação, que se manifestam umas às outras, interagindo, e do qual fazemos parte. É dessa rede que estamos a tratar.
As coisas físicas têm apenas propriedades relativas a outras coisas físicas e que essas propriedades só existem quando as coisas interagem. Perspectivas diferentes não podem ser justapostas sem parecer contraditórias. — A teoria dos quanta reside no facto de as propriedades de cada coisa constituírem apenas a maneira como uma coisa influencia as outras coisas - sendo que esta é a melhor descrição da Natureza de que dispomos hoje.
Não existem propriedades fora das interações Eis o significado da intuição originária de Heisenberg: perguntar qual é a órbita do eletrão enquanto ele não interage com nada afigura-se uma pergunta sem conteúdo. É falar de algo que não existe. Não existe nenhuma realidade [quântica] que exista de modo independente. O eletrão não segue uma órbita porque as suas propriedades físicas são apenas reais quando se manifesta sobre alguma outra coisa, por exemplo, sobre a luz que emite. Quando não interage com nada o eletrão não tem propriedades físicas, não tem posição, não tem velocidade. Equivale a dizer que é necessário pensar que cada coisa, as suas propriedades físicas, são ‘apenas’ aquelas que determinam como ela actua sobre alguma outra coisa.
A sólida continuidade do mundo não reflete a textura da realidade: é o resultado da nossa visão macroscópica. A vida de um electrão não é uma linha no espaço; é uma manifestação pontilhada de eventos, um aqui e outro ali, quando interage com alguma coisa. Eventos puntiformes, descontínuos, probabilisticos, relativos. O mundo dos quanta, é portanto + ténue do que o imaginado pela velha física, é feito só de interações, acontecimentos, eventos descontínuos, sem permanência. E são esses eventos probabilisticos e efémeros que constituem a realidade.
Se isto tudo nos deixa confusos e não entendemos nada, não somos os únicos! Por isso é que Feynman dizia que ninguém compreende os quanta.
As propriedades são apenas relativas.
É possível que algo seja real em relação a si e não seja real em relação a mim? — A teoria dos quanta passa pela descoberta que “as propriedades de um objecto que são reais em relação a um segundo objecto não o são necessariamente em relação a um terceiro.”
É o que acontece com o gato do apólogo de Schrodinger - para o segundo observador, há uma sobreposição quântica entre estados diferentes, uma “sobreposição de vivo morto”; para o primeiro, há a realidade de estar vivo ou não estar.
A perspectiva relacional permite que ambas as coisas sejam verdadeiras, porque cada uma se refere a interações em relação a dois observadores diferentes: a primeira diz respeito aos eventos relativos aos sistemas em interação; a segunda em relação aos eventos relativos a outros sistemas. Uma descreve o que acontece numa “análise”(observação) e a outra a evolução “unitária” (refere-se à maneira como o estado de um sistema fechado muda com o tempo, garantindo que o estado se mantém combinado e a probabilidade total é conservada). Significa também que duas afirmações contraditórias podem ser verdadeiras simultaneamente. No mundo dos quanta é possível ser e não ser ao mesmo tempo: é isto o contra-intuitivo da mecânica quântica: a contradição entre duas leis familiares do senso comum / da física clássica.
Neste momento, pergunta-se o que tudo isto implica para as nossas ideias sobre a arte e se descobre que, afinal, esse estranho mundo leve [dos quanta], onde as variáveis são relativas e o futuro não é determinado pelo presente - todavia é um fenómeno geral que tece a própria estrutura do real - é o nosso mundo da arte. Alem da física, o pensamento relacional encontra-se presente em todas as ciências/ definicoes / construção de conhecimento. Equivale a dizer, a Arte não tem beleza por por si só: tem uma beleza em relação ao meu olho que a vê. Uma obra de arte não brilha como entidade independente: é um nó numa rede de interações que forma o universo em que habita… O mundo da arte, é feito só de interações, acontecimentos, eventos descontínuos, sem permanência, probabilísticos, relativos. Enquanto antes pensávamos que as propriedades de uma obra de arte eram determinadas mesmo que não levássemos em conta as interações em curso entre essa obra e as outras, a física quântica mostra-nos que a interação é parte inseparável da arte.
O pensamento relacional encontra-se presente em toda a arte.
Creio que é isso que descobrimos da arte com os quanta. Toda a arte deixa subitamente de ser tão sólida e real como antes — É tecida por relações e interações mais do que por objectos. O que faz com que a criação constitua um objecto, uma unidade? Não muito + do que o papel das suas relações com o externo, e em particular connosco. Inúmeras - senão todas - das nossas definições são relacionais: uma obra de arte é uma obra de arte em relação a alguma outra coisa. Um objecto isolado, tomado em si, independente de qualquer interação, não tem um estado particular. Qualquer descrição é implicitamente do interior do mundo, de um ponto de vista associado a um sistema físico. Destrói a ideia de que o mundo/ universo da arte deve ser constituído por uma substância com atributos e leva-nos a pensar tudo em termos de relações. Se procurarmos a obra de arte em si, independente das suas interações, não a encontraremos! — Devemos de admitir um conceito fundamentalmente diferente para o mundo da arte, aberto ao princípio revolucionário da teoria quântica. Trata-se de um salto radical, mas claro!
O mundo da arte fica + claro num contexto relacional.
A descrição não ambígua de qualquer obra de arte exige a inclusão de todos os objectos envolvidos na interação em que a obra se manifesta. Não faz sentido atribuir-lhes propriedades, excepto no decurso de uma interação. O mundo da arte é, portanto a rede dessas interações. O acto de interagir é que torna o objecto artístico real. Uma obra de arte é “um”, “ninguém” e “cem mil”. Não podemos descrever nenhuma obra de arte a não ser no contexto daquilo com que ela está em interação. A arte fragmenta-se num jogo de pontos de vista, que não admite uma única visão global.
É um mundo de perspectivas, contra a imagem da realidade continua, da visão determinista. Não de manifestações de propriedades definidas ou factos unívocos. Cada interação é um evento, e são esses eventos leves e efémeros, que constituem a realidade, não os pesados objectos repletos de propriedades absolutas que a nossa filosofia fixava como suporte desses eventos. Uma obra de arte sem interações, que não influenciasse nada, não actuasse sobre nada, não atraísse, não impelisse, não se fizesse tocar… seria como se não existisse - não tem realidade. Equivale a dizer que é necessário pensar que cada obra de arte é “apenas” a maneira como ela influencia / actua sobre qualquer observador - não evoluí de forma independente. Não existem propriedades - cor, forma, tamanho…, fora das interações.
O mundo real é desordenado e muitas situações do mundo real podem ser descritas por um grande número de agentes [entidades] elementares que interagem entre si. As entidades elementares são spins, átomos ou moléculas, neurónios, células em geral, mas também pessoas, animais, componentes de ecossistemas, websites e assim por diante…, Giorgio Parisi.
Duchamp (Blainville-Crevon, 28 de julho de 1887 - Neuilly-sur-Seine, 2 de outubro de 1968), sabia-o: Tudo o que há de esquisito na mecânica quântica já está presente na experiência dos ‘ready made’. Foi em 1917 que Duchamp definiu pela primeira vez o conceito “ready-made” - uma ideia que teve uma influência determinante na cultura contemporânea. Sob o pseudónimo de Richard Mutt, Duchamp pegou num urinol branco de porcelana e transformou-o numa obra de arte apenas com dois procedimentos: girou a peça num ângulo de 45 graus da posição original (ficando a parte da parede do urinol repousada sobre um plinto) e assinou-o simplesmente - “R. Mutt, 1917”. Um objecto que era em simultâneo um urinol confinado a uma função e uma obra de arte: Duchamp não é um cientista, mas, em certo sentido, ilustrou uma “sobreposição quântica” de diferentes estados possíveis com uma obra famosíssima [A Fonte] que tem como resultado uma obra de arte aparentemente impossível: o urinol que se encontra repousado sobre uma base / plinto “numa sobreposição de arte e urinol”. É como se tivesse duas posições / estados ao mesmo tempo. Não tem uma única identidade. No entanto, a minha observação - se olhar para ele - altera o estado do sistema e destrói a sobreposição só podendo estar num estado ou noutro (salta para uma única posição e a sobreposição desaparece). Ora tal não é o mesmo que dizer que “não sabemos” se A Fonte é uma obra de arte ou um urinol, pelo menos até ser analisado / observado. Duchamp está a pôr-se nas nossas mãos. O conceito “ready-made” de diferentes estados possíveis haveria de abrir caminho a uma nova geração de artistas e permitiu desenhar um novo conceito de arte [conceptual]. E porque não quântica?!
Marcel Duchamp, A Fonte, 1917.
O mundo da arte, para Duchamp, parece existir sobre outras regras, usando o facto dos ready-made aparentemente “poderem estar numa sobreposição quântica”. É como se fosse um urinol e uma obra de arte ao mesmo tempo. É a ideia de Heisenberg quando diz que um objecto pode estar numa sobreposição de várias posições. Em certo sentido encontra-se em “ambos os lugares”. Não tem posição única. Iluminar uma das suas propriedades implica escurecer a outra - o que vemos é a interferência não a sobreposição. Duchamp, já tinha ilustrado na forma clássica uma sobreposição de diferentes estados possíveis com a pintura, “Nu Descendant un Escalier nr 2”, 1912. Antes de a observamos, a pintura existe numa mistura de Cubismo e Futurismo, dois movimentos artísticos diferentes; no entanto, a nossa observação obriga-a a ir para um único movimento artístico; de modo que o momento da análise dos cubistas alterou o estado da pintura, obrigando Nu Descendant a ir para o “futurismo”, razão porque a obra foi rejeitada pelos cubistas como demasiado futurista.
De alguma maneira, temos de admitir, Duchamp, conseguiu simplificar a vida interior de forma que a arte pudesse ser ambiciosa e ilimitada. Coisas complexas como o Cubismo, trocadas, pela simplicidade dos ready-made.
A clareza determinada da arte foi varrida pelos ready-made. Agora os artistas tinham de confrontar o princípio do ready-made capaz de sobrepor estados diferentes ao mesmo tempo. Toda a arte foi virada de pernas para o ar. A arte como a ciência estava de certa forma incompleta. É um mundo de perspectivas, contra a imagem da realidade contínua, da visão determinista. Dele decorre, “É o espectador que faz os museus, que estabelece os princípios do museu”. O facto é que a arte não é as obras no museu, não é as pinturas cubistas de Picasso. A arte é o encontro do observador com a obra, a descoberta da obra. Duchamp soube como tornar concreto e intuitivamente claro o núcleo da interpretação relacional da teoria dos quanta, que rege o modo de construção das coisas.
Significa que para Duchamp o “observador” consciente deveria sempre participar numa criação suplementar em relação ao significado real do objecto, experimentando-o: Dou tanta importância aquele que olha/ descobre como aquele que a faz. — Não se pode suprimir o encontro da obra com o espectador, a intervenção do espectador, dizia.
Em resumo: Duchamp situa-se num impressionante cruzamento entre arte, teoria quântica e pensamento relacional. Para ele, é necessária a existência de um observador que interaja com a obra + artista para revelar as suas propriedades e lhes dar realidade.
Em vez de ver o mundo da arte como um conjunto de obras com propriedades definidas, Duchamp convida-nos a vê-lo como uma rede de relações cujos nós são as obras. Cada obra assume uma qualidade diversa consoante as interações estabelecidas - contém inerente uma variedade / estranheza de relações complementares.
O mundo da arte é um continuo interagir. É uma densa rede de interações. Não há nada de misterioso nisso: vimos anteriormente que o mundo que observamos não se divide em entidades isoladas. Somos nós que o separamos em objectos para nossa conveniência (uma mãe é mãe porque existe um filho, um planeta é um planeta porque gira em torno de uma estrela). Até o tempo é definido por relações (o tempo é relacional, no sentido que é medido e compreendido em relação a eventos, objectos ou outros tempos).
Pode, portanto, pensar-se que todas as coisas da arte só existem quando obra + artista interagem com um observador, numa dança a três, numa rede de entrelaçamentos — Essa interconexão é o emanharamento quântico.
O Emanharamento é a segunda revolução da mecânica quântica.
Como Schrodinger ressaltou, o “emaranhamento” constitui o verdadeiro traço característico da mecânica quântica. Todavia, é também um fenómeno geral, que tece a própria estrutura do real. Mais uma vez repensar a Natureza e a Arte!
Continua na PARTE II: Mais uma vez repensar a Natureza e a Arte!