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ARTES PERFORMATIVAS


CARLA BOZULICH E NÓS, SOZINHOS NUMA SALA SOTURNA

Ricardo Escarduça

2014-08-21




Descemos umas escadas estreitas e escuras, entramos numa sala de tecto baixo, soturna. Pessoas esparsas na penumbra e num palco subterrâneo a banda sob uma luz branca ténue. Carla Bozulich atinge-nos sem contemplações. Abandonamos as conversas, Carla Bozulich ouve-se em silêncio. Pensamos em sair, mas estamos imóveis, vulneráveis perante o seu mais recente trabalho “Boy” disponível desde 4 de Março pela editora Constellation. Imaginamo-nos neste cenário, pode ser real.

 

 

“Lazzy Crossbones” é marcada pelo ritmo embalador da bateria, que enquadra as sonoridades cálidas do teclado e da guitarra, a par da voz de Carla Bozulich morna e sofrida. Numa alegria melancólica, parece revisitar alguém querido, talvez ela própria, num intervalo da memória, em frases como “Lazzy crossbones waving to the shore / Yes, we’ve been here before”. A melancolia agita-se numa distorção metálica e cortante da guitarra e ascende a um limbo entre um devaneio febril nos versos “Maybe I’m not real”, “I just want to feel your skin”, e a rejeição forçada, em “Let’s move this part of my shot heart”. Atinge um clímax em “Flying skull bones, there’s a party going on”. Volta a despertar em “See my face…” e recupera, por fim, a lânguidez inicial.

Mas, antes de chegarmos a esta faixa, a oitava na tracklist, passamos por “Deeper Than The Well”, uma das mais marcantes do LP, sem conseguir evitar sentirmo-nos estilhaçados.

 

 

 

O compasso descompassado da bateria tira-nos o equilíbrio e o peso limpo da guitarra distorcida e reverberada como uma lâmina afiada dão corpo a um ambiente instrumental espesso e abstracto. Uma paisagem árida e agreste, inquietante e angustiante. Sobreposto à instrumentação, o desempenho vocal enfeitiçador e ameaçador de Carla Bozulich, escorre-lhe das entranhas. Traça a melodia e transporta-nos para um cenário surreal de uma morte lenta que o seu espírito resiliente nega em “I’ve got a lot a more stories I can tell / Yes, the hole is deeper than the well”.

“There ain’t no grave that can hold me down” é a bandeira empunhada por Carla Bozulich com a qual abre “Boy” na primeira faixa “Ain’t no Grave” e na qual se adivinha a influência blues e gospel do original homónimo composto em 1934 por Claude Ely (1922-1978), um pastor religioso americano e canta-autor que inspirou inúmeros outros artistas, como Johnny Cash (1932-2003).

 

 

A sua rebeldia e inquietude afirmam-se em “In the world there is the need to be free”. Somos convidados para uma viagem num “Cadillac waiting right around the corner”, onde temos lugar por via de “Always a place for you by my side”. A atmosfera musical de padrões rítmicos anulados, criada pela bateria, que começa aquosa e atinge níveis tumultuosos, e pelo baixo, cáustico e corrosivo, cedo desfaz qualquer sensação de constrição e conceitos estabelecidos. É o teclado pungente e psicadélico que nos leva de regresso a uma génese, um buraco negro que nos suga e nos deixa regressar, mas não os mesmos, quando, no final nos diz “Ain´t no place that can hold you down” e se ri da armadilha que nos preparou.

 

 

“One Hard Man” possui toda a fibra das emoções elementares e primitivas. É opressivo e compulsivo. As sonoridades da bateria e dos sintetizadores abrem-se poderosas e em alta temperatura, acompanhadas pelo feedback doentio da guitarra estridente. A nossa mente é empurrada para um ritual tribal, industrial e hipnótico, uma vez mais, enformado numa voz poderosa, ritmada e repetitiva.

“Boy” é uma viagem imaginária, solitária e introspectiva. É áspero, musculado e feroz. Torce-nos, derruba-nos e invade-nos. No mesmo instante em que ansiamos que termine, encontramos a sua pureza musical e humana a elevar-nos acima da banalidade. “Boy” revela-se experimental, incisivo e poético, pleno de criatividade e emoção. É um volume abstracto e caótico em permanente mutação. Um fogo que queima chão e gera algo novo em contínua aprendizagem.
A sua voz, única e flexível, encorpa versos e coros que podem ser um diário dessa viagem plena de imagens desestabilizadoras, sustentada por uma estética musical espontânea e sem guião pré-concebido. Carla Bozulich mistura nuances de verdadeira e significante pop-music com sonoridades de rock-industrial, noise-rock e blues, entre tantos outros hemisférios musicais que aglomera em si mesma, mantendo-se a tal distância dessas fronteiras estabelecidas que faz com que o seu trabalho nunca seja o esperado.
Nesse mesmo instante, permanecemos de livre vontade.

Carla Bozulich, nascida em Nova York e residente em Los Angeles, ocupa um lugar assegurado no universo da art-punk e não é de menos afirmar que ombreia com nomes como Tom Waits ou Patti Smith. “Boy” dá sequência a uma fascinante trajectória de 30 anos de experimentação, desconstrução e reinvenção, ao longo dos quais fundou e encabeçou inúmeros projectos musicais. Mas recebemos muito mais de Carla Bozulich: uma extensa palete de actuações vocais com músicos convidados das mais diversas naturezas, performances artísticas site-specific, poesia, ficção, crítica literária e arte ilustrativa.

 




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