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OPINIÃO


Mark Lewis, Cinema Museum, 2009


Mark Lewis, Cinema Museum, 2009


Mark Lewis, Backstory, 2009


Mark Lewis, Backstory, 2009


Mark Lewis, Rear Projection: Molly Parker, 2006


Retroprojecção utilizada no filme Tarzan, o Homem Macaco, de W.S. Van Dyke, 1932.

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MARK LEWIS E A MORTE DO CINEMA



TERESA CASTRO

2010-04-30




MARK LEWIS E A MORTE DO CINEMA
A propĂłsito de dois filmes de Mark Lewis projectados durante o Indie Lisboa, Cinema Museum (2008) e Backstory (2009).




Em 2008, ano da sua realização, Cinema Museum constituĂ­a na obra do canadiano Mark Lewis uma espĂ©cie de “objecto fĂ­lmico nĂŁo identificado”. Rompendo com o formato caracterĂ­stico do trabalho mais recente do artista, que desde 2000 produz essencialmente filmes curtos e silenciosos, Cinema Museum documenta uma visita guiada a uma colecção de memorabilia cinematogrĂĄfica. Fundada por Ronald Grant, esta Ășltima constitui uma verdadeira caverna de Ali BabĂĄ perdida no sul de Londres e reunindo os tesouros pacientemente acumulados por um coleccionador compulsivo: desenhos, posters, adereços, fotografias, revistas, recortes de imprensa, emblemas, lanternas de arrumadores de salas e uma parafernĂĄlia de outros objectos. Mark Lewis conta ter descoberto a colecção de Grant por acaso: intrigado com a existĂȘncia dum autoproclamado “museu do cinema” nos arredores de sua casa (Lewis reside na capital britĂąnica hĂĄ vĂĄrios anos), decide aĂ­ realizar um filme.

NĂŁo sendo a primeira vez que o artista assina um documentĂĄrio (1), Cinema Museum parece distanciar-se dos restantes trabalhos de Mark Lewis que desde os anos noventa realizou vĂĄrias dezenas de filmes explorando formas fĂ­lmicas precisas: movimentos de cĂąmara, efeitos especiais ou formatos particulares, como o genĂ©rico. Projectados em museus ou galerias de arte, estes trabalhos ilustram um fenĂłmeno que alguns designam hoje por “migração das imagens”: a passagem das imagens em movimento das salas de projecção em direcção aos espaços de exposição (2). Se Cinema Museum se distingue das obras anteriores de Lewis, o filme constitui uma composição em abismo desta penetração do cinema no espaço museolĂłgico, inscrevendo-se assim na continuidade crĂ­tica do seu trabalho. Mais do que a descoberta de uma estranha colecção por parte de um artista, o filme documenta uma visita do prĂłprio Cinema, com o seu cine-olho autĂłnomo e curioso, a um museu do cinema. Trata-se dum cine-olho mecĂąnico, Ă  semelhança daquele que Dziga Vertov elogiava em 1923 num manifesto hoje cĂ©lebre, onde o “eu-mĂĄquina” da cĂąmara de filmar prometia revelar um mundo desconhecido, como sĂł ele o conseguia ver (3). O tempo era entĂŁo o de todas as proezas: do cine-olho vertoviano Ă  Entfesselte Kamera («cĂąmara descontrolada») de Murnau, passando pelas experiĂȘncias de Abel Gance ou de Jean Epstein, nunca a utopia do olho cinematogrĂĄfico foi tĂŁo forte. DĂ©cadas mais tarde, o cine-olho da cĂąmara de Lewis continua a desafiar as leis da gravidade, percorrendo em longos e fluidos planos sequĂȘncia os corredores labirĂ­nticos da sua prĂłpria memĂłria (4). Conduzido pela voz da guia, desvia-se a pouco e pouco do percurso que lhe Ă© proposto. Sintoma da sua vocação errante, este descentramento entre voz e visĂŁo surge como a manifestação da vida inteligente da cĂąmara de filmar. No contexto da visita guiada, o cine-olho de Lewis aparenta-se mesmo Ă  figura do “espectador emancipado”, tal como definida por Jacques RanciĂšre (5). Pondo em causa a oposição entre olhar e agir, o cine-olho Ă© um cĂ©rebro que pensa.

Mas Cinema Museum nĂŁo ilustra apenas a surpreendente “inteligĂȘncia de uma mĂĄquina”, para parafrasear Jean Epstein: passeio de Lewis na colecção de Grant constitui um confronto do Cinema com a consciĂȘncia da sua prĂłpria mortalidade. Esta hipĂłtese remete para dois elementos: por um lado, o discurso que reconhece no museu uma variante da necrĂłpole (e a ideia de que a excĂȘntrica colecção de Grant seria um pitoresco monumento funerĂĄrio Ă© tudo menos estranha). Por outro lado, a noção segundo a qual a recente transformação mediĂĄtica do cinema, com a passagem do suporte pelĂ­cula ao formato digital, constituiria uma espĂ©cie de morte hĂĄ muito anunciada (6). Cinema Museum seria assim um estranho filme de fantasmas, “flirtando” com o gĂ©nero documental.

A resposta de Mark Lewis Ă  questĂŁo da morte do cinema Ă© ambĂ­gua, tal como sugere o seu documentĂĄrio mais recente, Backstory (2009). Apresentado durante a Ășltima bienal de Veneza, o filme Ă© um retrato dos Hansard, famĂ­lia que se dedica, hĂĄ mais de setenta anos, a realizar retroprojecçÔes para a indĂșstria de Hollwyood. Processo de filmagem permitindo rodar cenas de exterior em estĂșdio (os actores representam diante de um ecrĂŁ sobre o qual Ă© projectado um filme), a retroprojecção constitui um efeito especial hoje caĂ­do em desuso, tendo sido muito utilizado por um realizador como Alfred Hitchcock. Lewis conheceu os Hansard durante a rodagem do seu filme Rear Projection: Molly Parker (2006), o seu interesse pelo processo manifestando-se jĂĄ num artigo datado de 2003, “A Film, a Painting, a Photograph: Some Notes on Pictorialism” (7). Para o artista, a retroprojecção condensa visualmente a tensĂŁo entre o ideal de transparĂȘncia que atravessa histĂłria do cinema e a materialidade do suporte fĂ­lmico. Se o ideal do cinema clĂĄssico repousava sobre o efeito de realidade das imagens e a invisibilidade dos elementos fĂ­lmicos, a retroprojecção vem perturbar o frĂĄgil equilĂ­brio deste binĂłmio, as imagens retroprojectadas surgindo ao olhar do espectador como demasiado reais, alertando-o para a natureza artificial do processo cinematogrĂĄfico. Intrigado pelo lugar central que a modernidade ocupa ainda nos discursos sobre a arte e a polĂ­tica (8), o interesse de Lewis pela retroprojecção constitui uma forma de questionar esse conceito. Laura Mulvey observou a esse propĂłsito que a retroprojecção partilha com a estĂ©tica da modernidade alguns atributos, entre os quais a sua “celebração da disjunção no tempo, no espaço e na representação” (9). Fascinado pela obsolescĂȘncia do processo de retroprojecção, o trabalho de Lewis historicisa a modernidade, expondo-a como arcaĂ­smo. Mas que nos diz a retroprojecção acerca da pretensa “morte” do cinema?

Interrogando-se acerca da “fase terminal” em que supostamente se encontra este Ășltimo, Charles Esche (co-fundador, juntamente com Lewis, da revista Afterall) afirmava num artigo que o cinema “pode reagir, reencontrar um novo vigor, desviando a atenção, tornando-se crĂ­tico, inteligente e consciente do seu passado no universo tecnolĂłgico e prodigioso dos efeitos especiais” (10). Backstory parece responder directamente a este desafio: retratando a histĂłria da famĂ­lia Hansard, que Lewis entrevista em estĂșdio contra imagens retroprojectadas, o filme constitui uma meditação sobre o corpo obsoleto das imagens. No contexto actual, o interesse de alguns artistas utilizando as imagens em movimento pela ideia de obsolescĂȘncia constitui uma tendĂȘncia clara, tal como o ilustram os trabalhos de Tacita Dean ou de Matthew Buckingham, para citar apenas dois exemplos. A lĂłgica destes trabalhos – e do trabalho de Mark Lewis – evoca mais as “energias revolucionĂĄrias” contidas no “antiquado” que Walter Benjamin reconheceu na prĂĄtica dos Surrealistas do que uma qualquer nostalgia (11). Surgindo aos olhos do espectador contemporĂąneo como profundamente arcaico, o processo da retroprojecção (identificado por Lewis como um epĂ­gono modernista) constitui um pretexto para repensar a histĂłria do cinema. NĂŁo se trata apenas de questionar uma visĂŁo tecnicista e teleolĂłgica, trazendo para a ribalta um processo relegado, mas de proceder a uma forma de arqueologia capaz de revelar tanto as utopias do passado como de salvaguardar os desenvolvimentos inesperados que nos reservam o presente e o futuro do cinema.


Teresa Castro


NOTAS

(1) Em 1993, Lewis realizava, juntamente com Laura Mulvey, Disgraced Monuments, um filme sobre o destino dos monumentos pĂșblicos soviĂ©ticos na RĂșssia dos anos noventa.
(2) Veja-se o catålogo da exposição comissariada por Philippe-Alain Michaud, Le Mouvement des images, Paris, Centre Georges Pompidou, 2006.
(3)Dziga Vertov, «Conseil des Trois», Articles, journaux, projets, Paris, Cahiers du Cinéma, 1972 [1923].
(4) Cinema Museum partilha com o filme A Arca Russa (2002) de Alexandr Sokurov alguns elementos, entre os quais a utilização do plano sequĂȘncia e a tematização da visita ao museu como exploração identitĂĄria (no filme de Sokurov, a identidade russa, no de Lewis, a identidade do Cinema).
(5) Jacques RanciÚre, Le Spectateur émancipé, Paris, La fabrique, 2008.
(6)Veja-se nomeadamente o trabalho do arquivista e historiador do cinema Paolo Cherchi Usai, The Death of Cinema. History, Cultural Memory and the Digital Dark Age, London, BFI Publishing, 2001
(7)Mark Lewis, “A Film, a Painting, a Photograph: Some Notes on Pictorialism”, Afterall, nÂș8, Autumn /Winter 2003.
(8)Veja-se um outro artigo de Mark Lewis “Is Modernity our Antiquity”, Afterall, nÂș 12, Autumn /Winter 2006.
(9) Laura Mulvey, in Cold Morning, Vancouver, Vancouver Art Gallery, 2009.
(10) Charles Esche, Mark Lewis Films 1995-2000, London, Film & Video Umbrella, 2000.
(11) Walter Benjamin, “Le SurrĂ©alisme. Le dernier instantanĂ© de l’intelligentsia europĂ©enne”, ƒuvres II, Paris, Folio, 2000 [1929].