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RELUCTANT GARDENERSANDRA SILVA2025-11-09
Contou Plínio, o velho (23-79 d. C.), na sua Enciclopédia “História Natural” que, no século V a.C., teve lugar um concurso que opôs os pintores Zêuxis de Heracleia e Parrásio de Éfeso, com o intuito de determinar qual dos dois conseguiria imitar e, de certa forma, competir com a natureza. Sobre a pintura de Zêuxis, quando este retirou a cortina que a cobria, foi possível apreciar uma magnífica representação realista de cachos de uvas que confundiram até os pássaros que os tentaram debicar. Quanto a Parrásio, pediu o júri que o artista tirasse também a cortina, a fim da sua obra poder ser apreciada. Tendo este permanecido imóvel. Os avaliadores tornaram a insistir e o artista não desfez a sua quietude. Até que Zêuxis teve a iniciativa de tentar remover a cortina, percebendo que fora iludido e a mesma era a própria pintura. [1] A minha deambulação pela exposição “Reluctant Gardener”, com curadoria de Sofia Lemos, patente na Culturgest do Porto, começou por ser impactada pela ilusão visual das obras de Álvaro Urbano. Duas pequenas árvores floridas, uma magnólia e uma romãzeira, brotam de duas paredes alvas (“Granada Granada (Magnolia, Granado)”, 2023). Debaixo da romãzeira veem-se algumas folhas e penas caídas, de forma aleatória. Num canto da sala, e perto de uma das colunas interiores do edifício, romãs inteiras e partidas (“Granadas”, 2023) parecem ter deslizado e sofrido o impacto da sua queda da árvore. Mas, foi num toque delicado que percebi que todos estes elementos eram um artifício minucioso, de representação da natureza. Que, simultaneamente, me projetaram para uma desorientação reflexiva, característica do Realismo Mágico, mas também para a ideia da natureza intransigente que, comumente, vemos irromper de diversos lugares improváveis como as fendas dos muros de pedra, dos passeios de cimento ou da berma das estradas. A tenacidade da natureza é, igualmente, perpetuada na pequena e singela pedra de mármore branca, que proveniente de Hiroshima, resistiu à bomba atómica. E que agora se vê pousada no chão, ao lado de um frasco de vidro transparente que contém água e uma delicada flor cor de rosa. Estas duas obras (“Sem título, 2024”; “Sem título, 2024”) da artista japonesa Rei Naito habitam num espaço liminar entre a vida e a morte, onde a vulnerabilidade, enlaçada na inevitável finitude das coisas, enfrenta e se debate com a tentativa preemente de resistência a esse fatum. Até porque no caso da flor, que é natural, será trocada por outra sempre que deixar de ter vivacidade. Talvez porque se saiba como um “único minuto com a morte pela eternidade pesa!” [2]
Rei Naito, Sem título, 2024 © Renato Cruz Santos / Cortesia Culturgest
Já se somam em milhares, os anos em que a Humanidade tem vindo, continuamente, a ceifar a liberdade da Natureza, moldando-a segundo interesses volúveis e, muitas vezes, destrutivos. Facilmente, evaporamos o sentido de comunidade planetária das nossas ações quotidianas e permanecemos na altivez da ideia de consciência superior. Continuando a usar e a abusar dos recursos naturais, como se fossem inesgotáveis. Talvez seja necessário investir em projeções anacrónicas no que respeita ao sentido ético na ligação entre o humano e o não-humano. A artista Nina Canell revela, nas duas obras apresentadas na exposição, a imposição humana sobre a natureza, que é frequentemente reduzida a fins utilitários, mas também apropriada e transformada para fruição poética. Numa espécie de “dança” entre domínio e contemplação. Na instalação “Days of Inertia”(2024), duas porções de lajes de pedra japonesa basáltica Daté-Kanmuri, repousam diretamente no chão, revelando uma ressonância, particularmente feliz, com a pedra que constitui e embeleza o interior do edifício. Sustentando corpos rasos de água, as suas bordas são revestidas com uma camada hidrofóbica, em nanoescala, que concomitantemente impede que a água transborde para o chão e permite que se perceba a vibração do caminhar, na sua superfície. Compondo, desta forma, a representação do lugar-comum das “margens que oprimem” e do estrangulamento da matéria líquida a um espaço circunscrito. Em “Tea Leaf Paradox” (2024), o literalismo abraça a metáfora, através da natureza empacotada e presa por fios. Pacotes de chá, inteiros ou parciais, são unidos por cordéis compondo uma estrutura frágil que vai do teto até ao chão. Um gerador de vibração sacode a instalação, fazendo com que os detritos, como perda e memória do inteiro, se soltem e se acumulem no pequeno motor. O chá que começou por ser usado, na Antiga China, de forma medicinal passou, posteriormente, a ser uma bebida. No Japão, do século XV, foi elevado à categoria de prática estética e espiritual, consolidando-se como o movimento conhecido como Teaísmo. Um culto centrado na adoração do belo face aos factos sórdidos da existência quotidiana. Sendo, por isso, uma adoração do Imperfeito na medida em que ajuda a realizar o possível, nessa coisa impossível que conhecemos como vida. Adicionalmente, passou a expressar, a par de ética e da religião, um ponto de vista sobre a Humanidade e a Natureza, e a impor-se como uma geometria moral que define o nosso sentido de proporção em relação ao Universo. [3] Por esse prisma, a instalação de Canell pode ser compreendida como uma denúncia das relações desproporcionadas, hierarquizadas e violentas perpetradas contra a natureza, em que a “geometria moral” se desfaz para revelar contornos amorfos e vulneráveis.
Ariel Schlensinger, It's always somebody's bones, 2024 © Renato Cruz Santos / Cortesia Culturgest
A fragilidade das fronteiras entre o natural e o artificial, entre o cuidado e a dominação, revela-se, de uma outra forma, na instalação “It’s always somebody’s bones” (2024), de Ariel Schlensinger. Onde os corpos de passarinhos adornados por fibra ótica que emite pontos de luz, não lhes sendo dada a honra da pedra fria da sepultura, jazem em pedestais de papelão. É ancestral esta necessidade de preservação dos corpos humanos e não-humanos, seja por questões religiosas, culturais ou científicas, através do embalsamento, mumificação e taxidermia. Todas estas técnicas estancam o ciclo natural de transformação da matéria, não permitindo a sua total decomposição. No entanto, a vida segue pejada de metamorfoses e estados transitórios. Como a da borboleta que, outrora, foi ovo, larva (lagarta) e pupa (crisálida). Representadas em fotografias na série “The unavoidable consequences of you” (2024), de Ariel Schlensinger, as borboletas - que nas asas carregam o breve sopro da vida - surgem pousadas em fezes, estas também resultado de um processo de transformação da matéria. Este comportamento, relacionado com a necessidade de absorção de sais e minerais, destrona a idealização da natureza e revela que a beleza e a decomposição podem coexistir num mesmo plano. E propõe uma reflexão sobre a interdependência entre os ciclos vitais e os resíduos e, por extensão, entre o sublime e o escatológico. A última obra que integra a exposição é o filme “How fire thinks” (2019), de Ariel Schlensinger. Exibido na cave, mostra uma vela acesa que flutua à superfície de um tanque com água. Ao redor, as plantas numa dança suave com o vento, acabam por tocar na chama. Desencadeando a propagação do fogo que, gradualmente, vai consumindo a paisagem. A sonoridade que integra o vídeo comporta um paradoxo, na medida em que acompanha a intensidade crescente das chamas, mas permanece desfasada da imagem. Criando uma tensão sensorial entre o que se vê e o que se ouve. O fogo como elemento ancestral – sendo centelha criadora e força devastadora - assume no vídeo de Schlensinger uma dualidade. Como epítome do caos, que parte da perecível e pequena vela, e como retrato da condição humana capaz de destruição. E lições daqui se retiram: não há ações sem consequências e não existe uma natureza completamente domesticada. As tentativas de controlo sobre o mundo natural, carregam em si o perigo iminente da ruína.
Álvaro Urbano Granada Granada (Magnolia, Granado), 2023 © Renato Cruz Santos / Cortesia Culturgest
A proposta curatorial revela, desta forma, um jardim concebido como intersecção entre o natural e o artificial. Conceitos que há muito deixaram de representar uma dicotomia verosímil, pelo que nas suas fronteiras desmoronadas se intrometem as ficções humanas. [4] E, concomitantemente, integram outras porosidades que arrasam bifurcações concetuais, como o caso de natureza e cultura. Tendo afirmado Donna Haraway no seu “Manifesto das espécies de companhia – cães, pessoas e a outridade significante” (2003) a inseparabilidade destes dois termos, nos relacionamentos ecológicos, uma vez que natureza e cultura são ambas biofisicamente e socialmente formadas. [5] Como refere o artista e teórico Koert van Mensvoort, vivemos num mundo em que a matéria física inalterada pelos humanos é praticamente inexistente. No fundo, encaramos uma natureza hipernatural que não é mais que cultura disfarçada, uma autenticidade artificial, um produto do design humano que tornou a natureza mais natural do que natural. Ou seja, uma simulação de uma natureza que nunca existiu. Quanto mais investimos no controlo de árvores, animais, átomos e o clima, mais eles perdem o seu caráter natural e entram nos domínios da cultura. [6] O jardim, considerado por Michel Foucault (1926-1984) como o exemplo mais antigo das heterotopias, é um microcosmos, uma menor parcela do mundo e, portanto, é a totalidade do mundo.[7] Plasmando de forma privilegiada a relação da Humanidade com a Natureza e traduzindo, de forma plástica e sensorial, a ideologia vigente das diferentes etapas históricas e a transmissão de mensagens sintetizadas do inconsciente coletivo. [8] Neste alinhamento, a proposta da curadora, centrada na vivência deste jardim como “expressão - experiencial e performativa – da ecologia” [9], adquire particular substância e assertividade. Na hodiernidade, perante a fustigação das alterações climáticas e as suas múltiplas e preocupantes consequências na destruição dos ecossistemas, somos convocados a adotar uma visão ecocrítica das nossas ações que deveriam ser ancoradas em políticas democráticas pós-humanistas e pós-antropocêntricas. Para que ainda possamos escutar o eco persistente da vida em comunhão com a natureza — e não seja o pranto o último som audível.
Vê tu a árvore... Uma camada de flor — um grito; outra camada de flor — outro grito. Vê tu a árvore como se transforma num fantasma de árvores, e depois em emoção!... Suprimir a morte! É uma coisa grotesca. O sonho trasborda, o luar trasborda — branco e dor — branco e sonho. Depois o silêncio, depois a sua voz magnética — depois a sombra imensa que ameaça desabar sobre nós, no quintal do tamanho de um lenço.
Raul Brandão, Húmus, pp 71/72 - 72/73
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[1] Pliny (1961 [77-79 d.C.]). Natural History. https://www.mercaba.es/roma/historia_natural_I-II_de_plinio_el_viejo.pdf
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Reluctant Gardener - Território #9 18 Out 2025 – 08 Fev 2026
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