MARINA TABASSUM: MODOS E MEIOS PARA UMA PRÁTICA CONSEQUENTE

FREDERICO VICENTE

2024-05-28

A arquitetura subiu ao piso zero do recém-inaugurado MAC-CCB. Depois de habitar a Garagem Sul [1], a disciplina partilha agora o chão-comum com as outras artes, para falar de movimentos migratórios forçados e cada vez mais frequentes, moradas temporárias, campos de refugiados e abrigos em situação de emergência climática. “Marina Tabassum: materiais, movimentos e arquitetura no Bangladesh” é uma exposição que foca o processo da arquiteta, numa seleção de trabalhos e escalas desenvolvidos desde o início da sua atividade nos anos 90, até aos nossos dias. Não é, porém, uma exposição retrospectiva ou biográfica; a mostra é um gesto (simples) de como a arquitetura é, em primeiro lugar, um serviço e uma ferramenta ao dispor da população.

Nascida em 1969 no Bangladesh, fundou o seu atelier em 2005 em Dhaka - Marina Tabassum Architects (MTA) - alcançando a visibilidade internacional com o Prémio Aga Khan - para o projecto da Mesquita Bait Ur Rouf em Dhaka, 2016, que falaremos adiante. A atividade de arquiteta e professora entrecruza a contemporaneidade e a urgência dos tempos - nos modos de desenhar e projectar - com o passado e o saber das técnicas tradicionais e materiais locais. Na sua geometria de formas tem presente a expressão cultural e preocupação com a economia de meios - de onde vem o material, como se manipula e que impacto tem essa manipulação no ambiente. A arquiteta defende uma construção sustentável, acessível aos 99% da população que não a pode contratar; e passiva (consciente da sua pegada e impacto no ambiente, tal como adaptada aos parâmetros de conforto) até porque, também nas palavras da arquiteta, “a arquitectura não se põe num sítio, precisa de nascer desse sítio”. Orienta o seu percurso para projetos comunitários, rejeitando o que chama de “arquitetura comercial”, fruto da promoção imobiliária. Talvez seja essa palavra-manifesto e assertividade no discurso capaz de recentrar a arquitectura na sua responsabilidade social, mais comprometida com iniciativas comunitárias, colaborativas e de forte diálogo, e menos focada no deleite estético (pelo menos no resultado como meio).

A exposição, com curadoria de Vera Simone Bader e André Tavares, divide-se em três núcleos, ou quatro sucessivas salas ancoradas no percurso fluido dos rios Ganges e Brahmaputra. A planície aluvial é, aliás, uma referência constante no percurso expositivo, semelhante a uma via rápida (marítima) que irriga, transborda, conecta e sobretudo transforma o país. Como um preâmbulo (antes da exposição começar), uma maqueta de grande escala reforça o ciclo da água na ligação do território, e na aproximação aos campos, à periferia urbana e depois à cidade. Os títulos a negrito nos textos de parede: rio, movimento, cidade e material, levam o visitante por esse percurso de aproximação ao país (Bangladesh) à sua cultura, história, aos desafios que enfrenta, desaguando em Dhaka (onde a arquitecta inclusive refere não ter muitos projectos, por evitar encomenda de promotores).

Se no Bangladesh os cursos de água são inseparáveis da terra, a terra é indissociável da prática de Tabassum, como nos mostra a primeira sala, com a reprodução à escala real de um pavimento orgânico em taipa. Uma série de objectos de artesanato local são dispostos, sobre esse segundo chão, numa alusão ao projecto do Panigram Eco Resort, em Sunderbans, que resulta de um profundo estudo e investigação sobre os arquétipos habitacionais e arquitectura vernacular da região. Curiosamente Marina Tabassum esteve presente (depois de palestras em 2018 na Casa da Arquitetura e também no CCB) na última edição da Trienal de Arquitectura de Lisboa (2022) para receber o Prémio Carreira. Numa edição marcada pelo tema-título “Terra”, o reconhecimento ganha um significado especial quando a terra (enquanto matéria prima) é também retrato de um percurso de quase 30 anos de prática - bem patente nesta exposição através do tijolo e da taipa. A esse respeito é a arquiteta que refere : “Tenho usado muito o tijolo, que é comum no Bangladesh, somos um delta, a terra é a matéria mais abundante que temos. É cozida e transformada em tijolo, é o material mais simples e fácil de encontrar.”

Cortesia CCB. © António Jorge Silva

A segunda sala foca-se na construção modular e portátil. O “Khudi Bari" é um protótipo de habitáculo desenvolvido para ser modular, cujo único detalhe e consequente investimento são as suas juntas de aço que ligam as triangulações. A restante estrutura é em bambu, um material facilmente encontrado na envolvente, tal como o revestimento, promovendo inclusive uma informalidade, autenticidade ou identidade do seu proprietário. O habitáculo tira partido das leis da física e da geometria, tendo dois níveis, um inferior associado às lides domésticas e ao trabalho e um piso superior pensado como alcova. Funciona igualmente como um sistema com a adição de módulos - uma sucessão de prismas triangulares, tema depois explorado em detalhe na sala seguinte.

Por fim, uma parede de tijolos são o pano de fundo para um conjunto de maquetes e fotografias ilustrativas de projetos executados em Dhaka, entre um centro comunitário, torres de habitação destaca-se a Mesquita Bait Ur Rouf, um espaço de reunião, sem minarete, onde confluem o corpo, a luz e a geometria, num gesto performático entre o doméstico e o sagrado, lembrando que a arquitectura é contentor para conteúdos e serve um propósito, quem a habita. “Marina Tabassum: materiais, movimentos e arquitetura no Bangladesh” é uma exposição que estará patente até dia 22 de setembro no MAC-CCB.

Frederico Vicente
É arquiteto (FA-UL), investigador e curador independente (pós-graduado na FCSH-UNL). Em 2018 funda o coletivo de curadoria Sul e Sueste, plataforma charneira entre arte e arquitetura; território e paisagem. Enquanto curador tem colaborado regularmente com o INSTITUTO, no Porto, de onde se destacam exposições como "How to find the centre of a circle" de Emma Hornsby e "Handmade" de Ana Paisano. Foi ainda curador das exposições "Espaço, Tempo, Matéria", Convento da Verderena, Barreiro; "Fleeting Carpets and Other Symbiotic Objects" de Tiago Rocha Costa, AMAC, Barreiro entre outras. Escreve regularmente críticas e ensaios para revistas, edições acadêmicas, livros e exposições. A atividade profissional orbita sobretudo em torno das ramificações da arquitetura.

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Notas

[1] Desde 2012 que a Garagem Sul marca a reflexão e o pensamento sobre a arquitectura, enquanto prática e como disciplina intrincada com factores sociais, económicos e culturais.

OPINIÃO