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OPINIÃO


Vista do Pavilhão de França, 60ª Exposição Internacional de Arte - La Biennale di Venezia. © Matteo de Mayda


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JULIEN CREUZET NO PAVILHÃO DE FRANÇA



CATARINA REAL

2024-10-22




 

 

No Pavilhão de França, na presente edição da Bienal de Veneza, localizado no Giardini, encontramos uma instalação do artista franco caribenho Julien Creuzet.

À dissemelhança de vários outros pavilhões e artistas, com abordagens que se apresentam, ou melhor, se auto proclamam, como sendo políticas - se o são ou não, na prática, ficará por responder - Creuzet opta por tomar a poesia como arma de arremesso.

Política, como inevitavelmente toda a acção, mas não auto denominada como um agente ou veículo panfletário de certos posicionamentos mas aberto à experiência individual, este poema imersivo coloca-nos perante - ou dentro? - um desequilíbrio ambiental que talvez pertença a um universo paralelo ao nosso.

Por optar por uma via sensível de abordagem ao problema, a instalação - que inclui vídeo, esculturas e texto, assim como um folheto de um belíssimo design - activa a experiência como forma de consideração de questões subliminarmente instaladas na sua obra.

Com o título Attila cataracte ta source aux pieds des pitons verts finira dans la grande mer gouffre bleu nous nous noyâmes dans les larmes marées de la lune, com curadoria de Céline Kopp e Cindy Sissokho, Creuzet dá-nos acesso a uma instalação que continua, como o todo da sua obra, a referir a sua “experiência diaspórica” e “a sua relação com a sua herança ancestral” que, sublinha o artista, como o núcleo da sua imaginação e fonte de imagens e formatos de emancipação.

Entrando neste pavilhão encontramo-nos num híbrido - será água, será doce, será terra, rocha? - ecossistema de um país tropical. O espaço está muito quente, muito húmido. Propositado ou proporcionado apenas pelas condições climatéricas de um verão em Veneza, a sensação de temperatura e humidade permite uma outra camada de interiorização do que é procurado com este trabalho. A camada de suor permite-nos estarmos presentes na nossa pele, com gotas a escorregar pelo rosto, pelas costas, e com um certo sufoco na respiração. O oxigénio disponível naquele espaço não aguenta a respiração de todos os que nele vagueiam.

Do tecto descem esculturas, tecidas de fio, pequenas armadilhas, resinas, metais, que poderiam ser desperdícios de uma utilização expansiva e abusiva dos recursos deste meio ambiente. Soam estas lianas a uma ruína romantizada, de uma nostalgia simpática embora melancólica. Não se sabe bem o que se terá perdido para que estas aconteçam; a sua suspensão suspende também uma série de expectativas projectáveis.

 

Vista do Pavilhão de França, 60ª Exposição Internacional de Arte - La Biennale di Venezia. © Matteo de Mayda

 

São também estas esculturas que organizam a nossa coreografia do espaço.

Não podemos simplesmente circular, temos de circundar estas peças, somos forçados a descobrir o nosso caminho entre objectos e pessoas que procuram também os seus próprios caminhos por ali. Acrescento um tom dramático a este cenário, agora que o penso reflectidamente. A verdade é que a sensação de estar preso num lugar irrespirável por onde se procura vários caminhos faz com que a memória coloque a experiência muito perto de uma zona de desespero. O curioso será partilhar que este desespero está também muito próximo de um desejo de submersão nos sentidos. Cheirava a suor, a corpos acumulados. Empaticamente fui sugestionada a sentir-me um outro ser, o mesmo que pertence a este meio ambiente, e que nele se camufla. Há, para além desta imersão física, literal digo-a, um ambiente ritualístico conseguido através do som, com músicas entoadas em língua francesa com uma sonoridade que diria caribenha, sabendo as raízes do artista.

Afastando-me da intensidade da memória, digo que há o mérito de se tecer aqui um pavilhão envolvente, de poesia, narrativa e peças apelativas e sensuais. É do meu entendimento que, no contexto de uma Bienal carregada de estímulos, informação e diferenças, é importante que a presença e construção dos pavilhões seja não focada na informação ou na partilha de pesquisa, mas na parte da experiência, para que esta se assimile em nós para além da nossa capacidade de retenção intelectual de informação. Creuzet consegue-o; apetece-nos ficar encantados nas imagens, no som, vagueando, ondulando nas músicas de sereias e atentando as diferentes texturas das peças suspensas que também organizam a coreografia. Estamos a navegar, estamos a mover-nos como que deslizando, como seres marítimos.


Vista do Pavilhão de França, 60ª Exposição Internacional de Arte - La Biennale di Venezia. © Matteo de Mayda

 

Para além do ambiente sonoro e das esculturas que nos coreografam, é também parte desta grande instalação um poema, uma oferta escrita das letras das músicas que estão a ser entoadas, ao nosso alcance num ecrã animado. Além deste, outros grandes ecrãs mostram uma animação vídeo continuada - seres e espaços, mares, ruínas, matérias - muito bem pensada apesar de, a salvo está o meu fascínio, se tornar redundante. Nestes grandes ecrãs em que vemos circularem seres marítimos, navegantes, exploradores, inventados como deuses de outros mares.

Tudo dança, nós pelo espaço, os seres pelos ecrãs, as palavras pelas canções.

O folheto da exposição utiliza o espaço gráfico com poemas e uma só imagem no seu verso, o que faz com que a exposição se verta para um outro formato que continua depois dela.

Os poemas evocam figuras e entidades diversas; Earth; Vessels; Caravaggio, Neptune Swell, Indigo, Cascade, Attila. As palavras continuam a sua dança depois da exposição e quando voltamos a abrir este folhetim, voltamos a lembrar as sensações que esta imersão nos trouxe, os efeitos no corpo e as miragens que poderão ter acirrado a imaginação de novos e outros corpos, de um futuro submerso.

Enfim, perdi-me na paisagem para ganhar a experiência e, portanto, a atenção ao detalhe ficou retida face às imagens sinestésicas e interdependentes. Esta afinação é a força da instalação apresentada. A sua unidade permite que a experiência aconteça, como um tele-transporte do sensível para um universo ficcional mas reconhecível e próximo, e faz com que a captura discursiva perca um sentido inequívoco, até mesmo no espaço da palavra cantada e escrita.

O seu meio, de Creuzet, será, portanto, as relações.

“Matoutou falaise”, uma tarântula endémica da Martinica e a mesma que nos é oferecida como poster no verso do folhetim é apresentada na sinopse desta participação na Bienal de Veneza como o modelo de existência que Creuzet nos quer ofertar.

Identificá-la, dizem-nos, “é uma dádiva” uma vez que significa estar em profunda relação com o meio ambiente. Esse modo de ver, um ver atento, imerso e relacional é o mesmo que Creuzet procura, uma vez que “é preciso sentir para ver verdadeiramente”.

 

 


Catarina Real
(1992, Barcelos) Trabalha na intersecção entre a prática artística e a investigação teórica no campos expandidos da pintura, escrita e coreografia, maioritariamente em projectos colaborativos de longa duração, que se debruçam sobre o questionamento de como podemos viver melhor colectivamente. É doutoranda do Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho com uma investigação que cruza arte, amor e capital. Encontra-se em desenvolvimento da Terapia da Cor, prática aplicada entre teoria da cor, arte postal e intuição coreográfica. Mantém uma prática de comentário - nas vertentes de textos de reflexão, textos introdutórios a exposições, entrevistas e moderação de conversas - às obras e processos realizados pelos artistas na sua faixa geracional, com a intenção de contribuir para um ambiente salutar de crítica e criação colectiva e comunitária.
Foi artista residente na Residency Unlimited, Nova York, com apoio do Atelier-Museu Júlio Pomar/EGEAC.