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2006-07-14
A MOLDURA DO CINEASTA

AIDA CASTRO

2006-06-30
BIO-MUSEU: UMA CONDIÇÃO, NO MÍNIMO, TRIPLOMÓRFICA

COLECTIVO*

2006-06-14
NEM TUDO SÃO ROSEIRAS

LÍGIA AFONSO

2006-05-17
VICTOR PALLA (1922 - 2006)

JOÃO SILVÉRIO

2006-04-12
VIENA, 22 a 26 de Março de 2006


€RESPONSABILIDADE SOCIAL€, INVESTIMENTO EM ARTE E MUSEUS: OS PONTOS NOS IS



LUÍS RAPOSO

2016-06-23





Aproxima-se a data em que o Governo terá de decidir se quer, e em que termos quer, receber a colecção de Joe Bernardo depositado há anos em espaço público, o CCB. Magnânimo, o comendador já fez saber que será atencioso para com o Estado. No horizonte está também a aquisição, eventualmente por seis milhões de euros (!),de seis quadros de Vieira da Silva, custodiados durante anos com recurso aos dinheiros públicos, e colecionados por Jorge de Brito, ele próprio e herdeiros agora, igualmente magnânimos.

Nada me move contra estas eventuais aquisições por parte do Estado. Como também nada me moveu contra a aquisição da Adoração dos Magos, de Domingos Sequeira – para que contribui, aliás. Mas importa tratar estes assuntos com seriedade e sabedoria. Se possível também sem candura, sobretudo do ponto de vista da defesa do interesse público. Isto porque, contrariamente ao que nos querem fazer crer, raramente neste tipo de negócios os colecionadores/investidores privados se movem por generosidade, sendo visível, depois de removidos os vernizes superficiais, que a sua motivação, aliás legítima, resulta basicamente da defesa os seus investimentos. E estes, bom estes, possuem as mais das vezes tantos esqueletos nos armários, que ninguém verdadeiramente os quer abrir. Quanto a Jorge de Brito, por exemplo, basta lembrar o que dele disse o há pouco malogrado Silva Lopes: “Pessoalmente, considero que o Brito foi um dos indivíduos mais fraudulentos do país. O que se está a passar agora (BPN e BPP) não é tão mau, apesar de ser grave, mas o pobre do Alves dos Reis ao pé do Brito...”

A questão das relações colaborativas a estabelecer entre governos, através de museus públicos, e colecionadores/investidores ou empresas constitui um tópico da maior actualidade, povoado por intermináveis bailes de máscaras, dos quais o mais popular nestes dias é o da chamada “responsabilidade social” corporativa, que se tornou uma questão de prestígio. Em vez de definir a sua “responsabilidade social” pela prática das melhores relações qualidade/preço dos produtos fabricados ou serviços prestados (porque afinal é esse o seu objecto social, a sua razão de ser), muitas empresas, sobretudo as de grande dimensão, e muitos empreendedores perceberam que poderiam obter lucros maiores, senão imediatos pelo menos no médio e longo prazo, investindo em obras de arte ou em agentes, instituições e “eventos” culturais. Com a vantagem adicional da boa imagem pública.

Reveste muitas formas este investimento. E nem sequer as mais evidentes são as mais lucrativas e potencialmente as mais danosas do interesse público e da missão social dos museus. Uma delas é a da especulação imobiliária. O museu é um investimento qualificante, com impacte na valorização do solo envolvente. Que o digam os moradores da favela de Cantagalo, no Rio de Janeiro: deixaram-se levar pela “generosidade” investidores, que compraram terrenos situados no interface da favela com os bairros chiques de Ipanema, Copacabana e Lagoa, para aí ser criado o “Museu de Favela”. Após alguns anos, este museu tinha feito mais e melhor do que a “Polícia Pacificadora”, libertando o local do tráfico de drogas, dado o compromisso comunitário. O terreno vale agora muito mais e chegou a vez de colher: com a oposição da comunidade de favela e do museu, mas com o apoio da lei, os proprietários pretendem retomar a sua terra, para nela instalar mais um condomínio fechado. Eis aqui um primeiro sentido da “responsabilidade social”, que dura enquanto dá jeito e conta normalmente tanto com a colaboração activa de governos guiados por vistas curtas (senão por interesses mais inconfessáveis), como dos media e fazedores de opinião, como ainda dos próprios profissionais de museus, sempre dispostos a seguirem apelos messiânicos de fazer O Bem, quando afinal aquilo que deles se quer é que façam O Bem- Bom.

Todavia, o exemplo mais comum de “responsabilidade social” em museus é o do colecionismo em arte. O investimento em obras de arte, para além de poder ser uma procura genuína e inocente pelo Belo, foi sempre também, hoje por certo maioritariamente, uma via para defender e dar segurança ao capital e obter dividendos superiores aos que permitiriam outras aplicações. Uma tal opção pode evidentemente ser contidas dentro de limites éticos e legais. Mas envolve também, demasiadas vezes, dimensões ilícitas ou até criminais. É neste sentido útil a leitura da mais recentes sínteses sobre uma das variáveis envolvidas, a da fraude fiscal, feita por Donna Yates no Journal of Financial Crime, sugestivamente intitulada “Museums, collectors and value manipulation: tax fraud through donation of antiquities”. Nada de novo, porém. Loney Abrams, na Hopes & Fears, já antes tinha aconselhado: “se você procura bons esquemas de lavagem de dinheiro, pode considerar tornar-se colecionadores de arte. Pois, a arte tem bom aspecto e é também um grande espaço para as pessoas ricas parquearem o seu dinheiro. O mercado é relativamente estável e é bastante fácil evitar o pagamento de impostos com a arte, através de alguns uns truques feitos por quem esteja por dentro do assunto e de um bom contabilista.”

Em Portugal, não obstante a reduzida dimensão do nosso capitalismo (há quem diga que nem mesmo existe, posto que temos mais patrões e chicos-espertos do que capitalistas propriamente ditos), conhecem-se já alguns casos de colecções (ou meros amontoados de obras) reunidas em museus, que nada garante qual o destino quando os proprietários vierem a entender desfazer-se delas, recolhendo as respectivas mais-valias. Dirão alguns que estão no seu direito, nada a fazer nem a recriminar. Ora, não é bem ou mesmo nada assim. Primeiramente haveria de saber quais os benefícios fiscais obtidos nesse investimento “altruísta” em arte; depois conviria calcular o custo para o Estado e os benefícios para os ditos proprietários da valorização das colecções decorrentes ambos da sua apresentação em museus, no caso destes serem públicos. Finalmente, importaria perguntar quais as consequências da abertura pública de museus, no que tal representa de expectativas criadas perante o todo social.

Tendo em conta este cenário, os profissionais de museus, especialmente os que se sintam obrigados pelos preceitos do Código Deontológico do Conselho Internacional dos Museus (ICOM), devem ser muito prudentes quando se trate de estabelecer contacto, de facto e sempre, negócio, com investidores interessados em “oferecer” as suas colecções ao museu, seja sob a forma de depósito temporário, ainda que acenando com a oferta de algumas obras, seja até sob a forma de doação. Devem ser muito cuidadosos em escrutinar o que fica para além da colaboração estabelecida, e bem assim o que sucederá depois dela terminada. É que, ao conferirem o “selo de museu”, os ditos profissionais tornam-se agentes de mercado, valorizando significativamente as obras e proporcionando chorudos lucros aos seus proprietários.

Regressamos por isso ao princípio, à afirmação que neste negócio ninguém verdadeiramente engana ninguém. Mas lá que parece, sim, parece. E parece porque tanto os governos como alguns profissionais de museus parecem mergulhados em sono letárgico, ingénuo ou despreocupado. Ora, a questão que importa colocar é até quando os museus, alguns museus apenas em todo o caso, aceitam esse papel de ingénuas Cinderelas, à espera dos beijos salvadores de príncipes encantados, pessoas acima de toda a suspeita que afinal, feitas as contas, não passam de sapos horrendos.

 

Luís Raposo