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O ESCURO VITAL DE PARIS NOIRFILIPA BOSSUET2025-06-30![]()
Ocupar o espaço público entendendo-o na teoria e na prática exatamente enquanto um espaço para todes é uma experiência de vários sentidos e atravessamentos. Paris e a sua geografia de metrópole que em nada tem que ver com Portugal - talvez apenas se encontrem no continente que partilham, construído por aquele que, como refere Frantz Fanon, é sistematicamente tomado com base no princípio da ausência, no qual algo que existe é tornado ausente; ou então, na noção de civilização que tanto prezam em resguardar com o peso de corpos mortos. Saint-Denis, Les Ulis, Château Rouge, Gare Du Nord, Belleville, Châtelet-Les Halles. Paris is burning, a metrópole impõe-se em edifícios de tons frios, sobre o que apaixona, o amor está presente nas crianças que habitam cada adulto e refrescam-se à revelia nas fontes e chafarizes mais emblemáticos da Place de la République aos Jardins de Trocadero; na água potável e nas casas de banho públicas disponíveis gratuitamente que não ameaçam sair assim que. O amor está nas árvores, plantas, flores que constituem jardins que se multiplicam pelo espaço parisiense com baloiços, escorregas, relva, bancos, para as pessoas sentarem ou até mesmo deitarem, mas não se enganem. Tudo isto se observa da arquitetura brutalista do Pompidou. Da entrada com mala aberta e a passagem pelo detector de metais, seguindo pela República constituída pelos conterrâneos da África Subsaariana, que se destituiu em espaço com o recente encerramento da Biblioteca Pública de Informação (BPI), onde era possível acessar gratuitamente internet, livros, sentar nas cadeiras e no chão para estudar enquanto o telemóvel carrega, um lugar para se estar. Caminho feito pelos túneis que deixam transparecer a capital e que vão dar à exposição Paris Noir no topo do edifício cultural. Constituída pela curadoria de Alicia Knock e co-curadores Éva Barois De Caevel, Aurélien Bernard, Laure Chauvelot e Marie Siguiecom, a exposição reúne 150 artistas africanos, afro-descendentes, panafricanistas com vivência em França. São mais de 300 obras de arte produzidas entre 1950 e 2000, que transcendem o tempo pela influência ancestral e criam perspectivas de um futuro possível. A memória, aqui, é a base do que ainda está por vir — uma memória reverberada em atos poderosos como o de documentar e arquivar. Pinturas, esculturas, fotografias, filmes, performances, instalações, colagens, cartaz do primeiro Congresso de Escritores e Artistas Negros organizado pelo movimento intelectual, cultural e político Présence Africaine em 1956, em Paris. Registo fotográfico dos membros do movimento, cartazes de exposições e algumas das publicações literárias editadas pela Présence Africaine que reúne nomes como Aime Césaire, Momgo Beti, Cheikh Anta Diop, Ousmane Sembéne, Bernard Dadié. Gestos artísticos diversos impossíveis de se interiorizar em poucas horas. A potência da subjetividade, de se existir num corpo que tem morada, mas também, é morada de si mesmo, não tendo que estar limitado sobre a construção estatal do que é ser de um ou de outro país, compreendendo por exemplo, a proposta de destruição que gerou a palavra preto e negro, mas também, como se constitui o ser negro, a negritude dentro da resistência, rememoração e continuidade.
Premier Congres des ecrivains et artistes noirs, Paris, setembro 1956. © Presence Africaine Editions, 1956 / Foto © Lutetia
Mesmo com os textos de apoio e descrições, são os trabalhos artísticos que ditam o ritmo da reflexão, reafirmando não só a potência da arte enquanto movimento precursor de reflexões urgentes, mas do cuidado da curadoria em compreender a importância do que está a ser apresentado. Essa escuta torna-se visível nas paredes que não se afundam no branco padrão das galerias, fundações e museus, nem na caricatura da cor como meio de distorção da identidade negra. Em Paris Noir paredes pintadas de vermelho, roxo, amarelo, azul índigo de Valérie John na instalação multimedia Secret(s)... Rêves de pays... Fabrique à mémoire(s)... Palimpseste (2024), Mémoire du Ciel (1990) de Vicente Pimentel; e preto. Paredes organizadas numa estrutura arquitetónica que formam linhas retas, curvilíneas, caminhos abertos que se interligam através do pensamento “Tout-Monde” de Édouard Glissant - um mundo em constante transformação que perdura através de trocas culturais inesperadas num universo interconectado. Quarto Famba (1973), escultura de madeira queimada produzida por Agustín Cárdenas que recorda uma abstração de figuras humanas interligadas, evocando união e força coletiva. A palavra Famba tem origem na língua Shona, falada no Zimbabwe. Em Shona, “famba” significa caminhar ou andar — referindo-se ao movimento, deslocamento, à viagem, mutação, reforçando as jornadas e a recolha coletiva com consciência. Coupe Antillais (1957), é outra escultura do artista em exibição de figuras alongadas e formas orgânicas.
Agustín Cárdenas, Couple antillais, 1957. Madeira, 226 x 51 x 28 cm
A exposição é enriquecida também com o aço do artista visual Harold Cousins [1] e de Richard Hunt [2], as esculturas têxteis de Élodie Barthélémy [3] que evocam as comunidades livres como força subversiva e ancestral através da lã, ferro, madeira e cabelo humano. É exatamente a compreensão da potência e autonomia da expressão artística negra, que desencadeia um protecionismo nas entrelinhas dos textos de apoio, que demarca França, Paris, Europa como elemento preponderante que proporciona, valida a existência pela perseguição e controlo, pela escrita de uma história para que ela exista. Aimé Césaire declara em Discurso Sobre o Colonialismo: “a grande sorte da Europa é ter sido uma encruzilhada e que o facto de ter sido o lugar geométrico de todas as ideias, o receptáculo de todas as filosofias, o ponto de acolhimento de todos os sentimentos, fez dela o melhor redistribuidor de energia”. Pensamento que resulta de mais uma expedição colonial institucional na afirmação exaustiva das expressões artísticas aqui apresentadas como consequência do encontro com artistas franceses do impressionismo, surrealismo, entre outros, como Claude Monet, Maurice Estève, Serge Poliakoff e os vitrais das catedrais francesas, como influências para a existência de uma prática que poderá já existir muito antes de qualquer doutrina ocidental. Que reúna as cores vibrantes, pinceladas rápidas e soltas, a pintura ao ar livre, o interesse pela luz natural e pelas variações do instante à expressão subjetiva e emocional que conjuga a visão interna e a realidade visível, num só gesto. Já dizia bell Hooks em Tudo Sobre o Amor, que o cuidado é apenas um dos componentes do amor. Amar requer um conjunto de ingredientes, sendo dois deles: o respeito e a honestidade. As pinturas de Beauford Delaney, com camadas gestuais a óleo, de cores que se fundem num amarelo vibrante, transmitem a luz interior do que o artista se propõe a pintar. Demarcam-se pela criação sobre as relações interpessoais que o próprio artista foi desenvolvendo, pela presença pictórica da natureza como elemento de complexidade e aprofundamento dos retratos de pessoas e outros elementos fluídos, que se prolongam ao longo da exposição [4].
Beauford Delaney, James Baldwin, cerca 1945-1950. Óleo sobre tela, 61 × 45,7 cm. Colecção halley k harrisburg and Michael Rosenfeld, NY. © Estate of Beauford Delaney / Foto cortesia de Michael Rosenfeld Gallery LLC, NY
Tabaski, la ronde à qui le tour? (1970), do pintor Iba N’Diaye, uma metáfora às formas diversas de violência política e social dos sistemas de opressão, através da caracterização vigorosa do sacrifício ritual do cordeiro no Festival Tabaski (Eid al- Adha), no Senegal. Evoca-se um constante movimento pelas linhas sobrepostas em camadas esfumadas em tons terrosos e tinta a escorrer, considerando o valor simbólico e espiritual do festival de Tabaski. À pergunta la ronde à qui le tour? o sacrifício torna-se um emblema sobre aqueles que são constantemente escolhidos para sofrer, para serem sacrificados em nome de uma estrutura maior que os exclui. Esta lógica pode ser compreendida numa análise de diversas formas de segregação e opressão, incluindo o racismo e o especismo. Ambos operam sob a mesma dinâmica fundamental: a categorização de seres como “outros”, a sua desumanização e a legitimação de seu sofrimento para benefício dos dominantes.
Iba N’Diaye, Tabaski, la ronde, à qui le tour?, 1970. Óleo sobre painel de madeira, 150 x 250 cm
O sacrifício torna-se linguagem: ecoa não apenas entre os animais, mas entre povos, indivíduos, espécies, alcançando uma crítica universal sobre a injustiça e a vulnerabilidade impostas a corpos e vidas. A visão aproximada não se atenua, olhos esbugalhados, sangue, costelas em movimento. De perto são vários - que se debatem, no chão, em pé, com sede, a olharem para o outro com cuidado, e para o que foi feito - que formam um só cordeiro gigante e por isso, vivo. O evento retratado na pintura acontece num círculo quase que interminável, gritando a urgência de romper ciclos, desafiar a naturalização da violência. Enredam-se em métodos tradicionais de tecelagem, tapeçaria pintada, bordada sobre tecido de algodão, lã e mantas de retalhos. Papa Ibra Tall em Couple dans la nuit; Victoire Ravelonanosy em Le Repiquage du riz à Madagascar (1960); e a artista transdisciplinar Faith Ringgold em The Bitter Nest, Part IV: The Letter (1988). Trazem à fruição, o ato de fazer e o amor enquanto força vivenciada num escuro vital. A presença corporal representada do artista e da obra em si no ritmo do gesto repetitivo, dos movimentos das mãos, o toque das fibras, o entrelaçar dos fios no tear que cria a imagem numa dança que cria vida. A exposição cria-se exatamente sobre os parâmetros que muito definem a existência negra: as conexões interpessoais, culturais, da natureza. Do escuro vital reverbera toda a exposição com tanto ainda para se sentir. As colagens cheias de personalidade de Ted Joans, a constelação de Kelly Williams [5], o Free Jazz, Night Creature de Alvin Ailey, Fela Kuti, Toto Bissainthe, Fodé Camara e Vicente Pimentel. Os filmes de Désiré Ecaré e Sarah Maldoror, Djibril Diop Mambéty; recordando que a minha presença aqui em Paris não é por acaso. A título de continuidade, as criações artísticas selecionadas para a exposição Paris Noir quebram totalmente com qualquer ideia de essencialismo sobre o que pessoas negras teorizam. Revelam uma abundância de perspectivas, abordagens, gestos e temporalidades que resistem à homogeneização. Arrisco-me a dizer que Paris Noir poderá ser um exemplo interessante do que uma exposição no contexto europeu pode vir a ser, pensando num caminho em que estar é a possibilidade de se sentir pertencente à própria subjetividade, confortável em habitar o próprio corpo, mesmo lidando com a contradição.
[1] Roi des musiciens, 1955; Gothique Plaiton, 1962; Objets trouvés 1 e 2, 1952 e Plaiton suspendu, 1958.
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