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EXPOSIÇÕES ATUAIS


Nampula Macua Socialismo © Fotografia: Lisboa Cultura - Galerias Municipais, 2025, Bruno Lopes


Nampula Macua Socialismo © Fotografia: Lisboa Cultura - Galerias Municipais, 2025, Bruno Lopes


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Nampula Macua Socialismo © Fotografia: Lisboa Cultura - Galerias Municipais, 2025, Bruno Lopes


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ARQUIVO:


MANUEL SANTOS MAIA

NAMPULA MACUA SOCIALISMO




GALERIAS MUNICIPAIS - GALERIA QUADRUM
Palácio dos Coruchéus, Rua Alberto Oliveira nº 52
1700-019 Lisboa

11 JAN - 20 ABR 2025

A Memória dos Cegos e a do Elefante

 

 

Visito a exposição Nampula Macua Socialismo pela terceira vez. Primeiro no dia da inauguração, depois acompanhada do artista que gentilmente nos fez — a mim e ao Victor — uma visita guiada. E uma última, sozinha. Desta última vez socorro-me da última folha de sala da exposição — A última folha de sala para crianças intitulada duas ou três coisas que vi na exposição. O meu pai também não foi à Guerra; diferentemente de muitas crianças da minha geração, não cresci a ouvir histórias da Guerra Colonial. Estou segura de que o espectro de afeções que constrói a (minha) Memória (me) providencia as chaves que preciso para vos comunicar uma experiência; mais do que me fazer um serviço educativo, oferecer um serviço participativo, referente a um ver enquanto um reparar para integrar. Acredito que “só é arte o que cura”. [1] 

Por precaução, gravei a visita guiada. Inadvertidamente, perdi-a, junto com os ficheiros dos últimos três meses do telemóvel; sou dessas pessoas que apenas fazem cópias voluntárias de segurança e que não compram mais e mais memória…Afinal sempre esquecemos o que queremos lembrar. E no lembrar há um saber de cor; i.e., de cordis, que nos singulariza não como consumidores mas como seres humanos — seres humanos que falham (e acredito que falhamos mais quando não sentimos); isso que sempre escapará à IA. Aproximo-me de Moçambique não a partir de um elucidário pós-colonial, mas a partir de uma história que recentemente me foi contada: A avó de uma amiga, que nascera e viveu neste país, teve por animal de estimação um elefante. Este animal estupendo deu-me conta da sua imensidão; da possibilidade de conviver com um elefante na sala. 

Na folha de sala para adultos, o curador João Sousa Cardoso refere o facto de esta exposição encerrar “25 anos de investigação em torno da história da sua família na relação com Moçambique (onde o artista nasceu em 1970) e as culturas africanas, em particular a cultura macua”. Dá-nos portanto conta que a exposição é o corolário do projeto alheava, iniciado em 1999, que “iluminou ângulos cegos das relações entre a sociedade moçambicana, os portugueses vindos de África e a perspectiva crítica e construtiva de um passado coletivo em comum”. Interessa-me — e acredito que ao Manuel também — a experiência da comum-idade; das crianças que viram ‘duas ou três coisas nesta exposição’. Ainda que o Manuel tenha visto muitas mais, o que importa é a comunidade formada pelo que nos afeta; a gratidão a essas imagens primeiras com potencial fulgurante pela nossa vida adentro, que sempre encontra um afora do tempo — o Aberto e o sentido de comunidade proposto pela nossa tão cara Mª Gabriela Llansol. 

Quando penso nos “ângulos cegos das relações” — e porque estou ainda em plena comum-idade com as crianças que visitaram a exposição — vem-me à memória a “Parábola dos Cegos e do Elefante”, que recentemente li num livro infantojuvenil escrito por Afonso Cruz, onde cada cego ao apenas se relacionar com uma parte do corpo do elefante tacteando-o, ao invés do próprio elefante, percebe uma coluna do templo de Shiva numa pata, uma cobra na tromba ou uma corda na cauda. A parábola é contada nesta obra ficcional por Raskolnikov, o assassino protagonista de Crime e Castigo, de F. Dostoévsky, que na já longa busca da superação da sua culpa descobre pela parcialidade “que o passado pode ter um grande futuro pela frente”, se cada-um-de-nós investir no des-cobrimento do seu elefante pessoal. [2]

O retorno de uma imagem, entendida como um ser, comporta um conteúdo salvífico. Uma imagem não é o que vemos, mas o que nos permite ver. É o conteúdo da afetação singular do qual resulta a Memória que somos — ou que podemos ser —, particularmente relevante, quando um processo artístico, como este de 25 anos, se instala na charneira que permite virar a página da experiência pessoal para a coletiva, com a leveza — que não é aqui ausência de profundidade — da performance do Manuel, por ocasião da inauguração da exposição. Encerra o projeto augurando ‘um grande futuro pela frente’. Deixou-nos e dançou-nos a sua estrada ampla, ao som da música "Nifungo" da banda Eyuphuro…E como dança bem! Mas não antes de dar voz à sua avó Celeste, a matriarca da família, que ao falecer, se fez perceber como nunca “A Chave da Casa”, título da sua performance cuja arqueologia subsiste na exposição, bem como a cor pungente do açafrão-das-índias, tempero da sua cozinha, que faz saber, partilhada entre outras com uma família indiana. 

Talvez a ancestral parábola indiana tenha sido contada pelos seus amigos indianos, à mesa, junto dos amigos africanos e portugueses. Como podemos ver numa das fotografias, a comensalidade foi para Celeste uma prática da sua “mundividência”, fazendo uso da palavra encontrada pelo curador. O ‘elefante na sala’ — compartimento este que talvez fosse o imenso exterior da Casa — faria com que o animal fosse percebido como um todo, uma vez restituídas e integradas as suas partes, graças à pluralidade de visões ofertadas pelos comensais. Talvez por isso também, como partilhou na visita guiada, o Manuel e as crianças da sua família, já em Portugal, tenham penosamente demorado a compreender porque é que ao invés do estupendo elefante, as pessoas tenham percebido cordas, pilares e cobras…Muitas, até hoje, como sabemos e não sem um sabor amargo…

A família do Manuel chega a Moçambique em 1939. Como refere no texto lido na performance, o seu avô paterno, casado com Celeste, chega por “Carta de Chamada”. É um construtor das novas casas, tornadas possíveis pelo avanço tecnológico na arquitetura, e com ele a rapidez resultante também dos elementos construtivos pré-fabricados em betão armado. As novas casas enraizam-se na cultura macua, que é, matriarcal. A Memória desde sempre esteve associada ao Feminino; “Feminino de Ninguém” [3] e portanto sem predeterminação biológica. Refiro-me à Memória enquanto ato criativo; ao processo pelo qual o registo fragmentado da experiência, nossa ou doutrem, como uma fotografia ou uma escultura nesta exposição, é impregnado por algo radicalmente singular, permitindo assim que o que fora de algum modo esquecido ou não visto, seja restituído a uma nova totalidade, i.e., reintegrado no Coletivo através de um processo não apenas de rememoração como também de remembramento, afim para com a integridade de um corpo, na exposição, um corpo de imagens. Porém, uma imagem é sempre a garantia do inacabado desse mesmo corpo — o seu Aberto. 

Este processo é tonalizado pelas nossas emoções; ou pela alma, entendida enquanto aquilo que em mim sente. Vejo o tom solar do açafrão-das-índias como a alegria do Manuel. A alegria — na sua profundidade — é a emoção por excelência que expande a tessitura de sinapses do nossos neurónios — o mesmo que dizer, que é favorável a uma percepção de mundo vais vasta, onde se percebem mais relações entre as coisas, e que deste modo expande a consciência. A alegria como a emoção que nos torna e-ternas crianças em comum-idade, que faz com que o corpo ele mesmo extravase; se abram os braços numa radical receptividade para acolher quem chega, i.e., ser Casa — O Manuel herdou da Celeste “A Chave da Casa”. 

Eis-nos na radical receptividade do “Feminino de Ninguém”. A cor é aqui o tal saber de cor; de cordis, e  portanto cosmicamente cúmplice do nosso processo de cura, manifesto num acaso que é nada mais do que o que a câmera não soube resolver… Note-se que a tonalidade solar surge no caminho de retorno da exposição, no verso das fotografias a preto e branco. E, que não é esquecido um antigo caminho: O trajeto marítimo das pessoas nativas, raptadas e tornadas escravas. Entramos na exposição sob “alheava_a mortificação e queda no já-dito e já-lido”, cuja sublimação sobre tecido esclarece-nos do “sonho da razão que produz monstros”[4], sonho esse que a alma não pôde tonalizar, revelado no desenho da planta do porão nos navios negreiros, pautado pela eficácia pérfida da acomodação de corpos humanos, olhados sem integridade — o padrão que não mais queremos reproduzir…Mas que ressurge em porões outros do insconsciente coletivo. 

A Casa — a de sua família em Moçambique — é re-apresentada em duas versões; na maquete original e o seu molde em cartão e numa escultura em bronze, plantada sob a luz num canteiro circular. Têm porventura a mesma escala dos gémeos, os netos recém-nascidos de Celeste, que chegaram antes do tempo, sobre-vivendo à sua queda; um deles, o próprio Manuel, o menino dos sapatos vermelhos. O mesmo menino que numa visita recente a Moçambique fotografa, entre muitas coisas, os incontáveis pares de sapatos usados à venda nos mercados de rua. 

As casas da exposição, de diferente escalas, são acolhidas e acolhem paisagens multiplas — como a própria peça "alheava_o poeta da arquitectura" sugere, piscando o olho a Pancho Guedes. Os afetos ramificam-se em geografias inesperadas; assim são as imagens desta exposição, implantadas como casas modernas, em inesperados ângulos e suportes, favorecendo deslocamentos de sentido, i.e., caminhos para o Aberto. Libertam-nos do olhar involuntário ao qual hoje mais do que nunca estamos aprisionados; somos convidados a adoptar uma nova postura diante do passado; a inclinar o pescoço, a olhar para o chão. Mas também a imaginar um movimento helicoidal ascendente, a partir da projeção de slides em carrossel. E o carrossel não para quando queremos…É mais uma série de fotografias, registos hilariantes feitos pelo pai do Manuel, das incursões da família para ver a paisagem, com as crianças literalmente alinhadas para a composição fotográfica, em cima do tejadilho do carro ou em busca de micro paisagens no separador repleto de flores da estrada. 

Uma menina, que conheço bem, pois estamos com o Manuel em comum-idade, afilhada da Celeste, e também ela Celeste, aponta do passado para algo ou alguém. Talvez seja para a "Mama", de Merina Amade, que está grávida. Melhor: Para nossa alegria, impregnada da alegria do Manuel…Porque o passado, como nos tem vindo a dizer o então redimido e ficcional Raskolnikov, ‘pode ter um grande futuro pela frente’.

 

 

 

Madalena Folgado
É mestre em arquitetura pela Faculdade de Arquitetura e Artes da Universidade Lusíada de Lisboa e investigadora do Centro de Investigação em Território, Arquitetura e Design; e do Laboratório de Investigação em Design e Artes, entre outras coisas. E principalmente entre outras coisas.

 

::: 

 

Notas: 

[1] Alejandro Jorodorowsky citado por Gonçalo M. Tavares, "Realidade e rinoceronte", in Expresso, 2020, p.14.

[2] Afonso Cruz, Os livros que devoraram o meu pai, Lisboa, Editorial Caminho, 2009, p. 119, 120. 

[3] Referência a Mª Gabriela Llansol. 

[4] Referência à pintura de Francisco Goya. 

 

 

 

 

 

 



MADALENA FOLGADO