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SANDIM MENDESVIÚVA BRANCAGALERIA MUNICIPAL DE ARTE DE ALMADA Av. D. Nuno Álvares Pereira, 74 - A 2800-177 Almada 04 NOV - 24 FEV 2024
Sandim Mendes é uma artista cabo-verdiana, residente em Roterdão, Países Baixos. A sua obra encontra-se, neste momento, exposta na Galeria Municipal de Almada, naquela que é a primeira exposição individual da artista em Portugal: “Viúva Branca”. Na exposição, a artista procura completar um puzzle, um puzzle de memórias e acontecimentos da família. Duas figuras centrais masculinas, os seus avós, já falecidos, embora implícitos na exposição, parecem condicionar, ou configurar, toda uma narrativa em torno do passado e história da família da artista em Cabo Verde. Porém, é nas mulheres que a exposição mais se reveste, e se torna visível. Mulheres de costas, vestidas de modo tradicional, contemplam as montanhas da ilha. Surgem representadas em desenho e colagem, e na tela maior, centrada numa das alas da galeria, as mesmas mulheres repetem-se, como padrão sobre tecido, até se fundirem na civilização ocidental, onde homens ao monte, em navios com velas, desembocam por fim em Lisboa. Por meio da técnica de colagens, a artista funde as referências de Cabo Verde com as do ocidente. A silhueta, da figura matriarca feminina, a contemplar a paisagem montanhosa das ilhas de Cabo Verde, surge repetida em diversas ocasiões na exposição. Não se lhe vê o rosto, como em algumas das figuras presentes. Mantém-se em anonimato, a representar as Viúvas Brancas de Cabo Verde, mulheres negras que foram deixadas pelos colonos, aquando do seu regresso a Portugal, após a revolução, e que esperaram em agonia, e longamente pelo seu retorno, ou por uma notícia, que nunca chegou. A silhueta da mulher de costas, prefigura a espera, e a capacidade de resiliência que estas mulheres, que foram deixadas, tiveram que desenvolver, para continuar a viver e a trabalhar para sustentar os seus descendentes. A artista instalou um altar, com flores perfumadas e velas acesas, a adornar a imagem da viúva branca. Provérbios em crioulo, escritos também sobre as paredes, revelam frases que a sua mãe lhe contou ao longo da vida e que constituem mensagens de coragem e resignação. Sandim Mendes pretende, com esta exposição, homenagear estas mulheres, honrar a sua resiliência face a tanto sofrimento, a uma espera alongada sem cessar no tempo, ao estado de abandono. Conforme invocado nas diferentes peças expostas. Existem outros retratos sem rosto, como a fotografia “rapazinho”, alusivo ao avô paterno de Mendes, que a artista ouviu em histórias contadas pela mãe, mas que nunca teve oportunidade de conhecer. A artista deixou-se fotografar, vestindo as roupas masculinas, imaginando a figura do avô. O mesmo aconteceu com o retrato Genoveva, 2009, outra fotografia em que a artista, cria uma figura imaginária da sua mãe quando jovem, usando o seu próprio corpo e rosto, numa tentativa de a reconstituir, com os artifícios da fotografia da época. Mendes recorre-se a técnicas fotográficas específicas para gerar efeitos do antigo, e para realizar réplicas de fotografias que nunca existiram. A exposição gravita em torno de um arquivo imaginário, fictício [1]. Onde, de forma perseverante, a artista vai procurando preencher as fendas, os vazios das histórias fragmentadas, das partes que ainda não fazem sentido no fio da meada. É um modo de conhecer a sua história, e como diz a curadora da exposição Filipa Oliveira: “um recurso” da artista “à memória pessoal, às histórias transmitidas entre gerações, à importância da oralidade na construção das narrativas pessoais e históricas que tentam desmantelar uma herança colonial opressora” [2]. Perorações, epílogos [3]. A reescrita de passados tem vindo a ser uma constante na arte contemporânea. A linearidade histórica [4] dá lugar antes a uma reescrita que torna possível ajustar, reconfigurar e recuperar a realidade dos factos históricos dolorosos, constitutivos do etnocentrismo e do colonialismo, e até, como realçado na exposição, do próprio machismo. Urge reposicioná-los no devido lugar, e clarificar os efeitos nocivos que deixaram para as gerações vindouras.
Carla Carbone
[1] Termo usado por Priscila Arantes (2015) Arquivo na Arte Contemporânea. Pág. 33
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