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RAMIRO GUERREIROGRIDS AND FILTERSGALERIA LEHMANN + SILVA R. do Duque da Terceira 179 4000-535 16 SET - 04 NOV 2023
As paredes da galeria poderiam ser as de um estúdio de arquitetura. Há a maquete, o desenho à escala 1/1, os moodboards com fotografias, sobras de recortes, estudos de cor e composição. Nesta que é a sua segunda exposição individual na Galeria Lehmann + Silva, Ramiro Guerreiro volta a trazer as disciplinas basilares da sua prática artística – a arquitetura e o desenho -, concentrando-se em “elementos plásticos da composição das fachadas de edifícios associados ao chamado Estilo Internacional” [1]. Tais elementos caracterizam-se por paredes em grelha, parcialmente vazadas e com diferentes padrões ortogonais. Nas suas viagens por cá e pelo mundo, Ramiro fotografa-os. Interessa-lhe essa ideia de uma linguagem universal que “vai para além do estético” [2], ambiciosa em várias frentes. Vemos essas fotografias compostas em quadros tripartidos, numa ordem que junta uma pintura abstrata de carácter geométrico, e uma impressão de recortes dos decalques da descontinuada marca Mecanorma. Se pensarmos estes Moodboards (2023) como a conceção visual da essência de uma ideia que se quer materializar, ficamos curiosos sobre que projeto ou objeto vão estas referências originar. No entanto, a palavra mood parece revestir estas composições com um carácter mais emocional do que racional. Esta particular atenção à linguagem vem do facto de Ramiro não descartar os cabeçalhos das folhas dos decalques, não sendo a primeira vez que se apropria deste material nas suas obras. As palavras que vamos lendo, na sua (de)composição, dão azo a uma especulação intelectual que nos faz considerar mais do que o que aparentemente lá está. “Norma-”, “-tone”, “-one”, “-set”, “mini-”, “heat”. O espetador é convidado ao exercício de expandir significados dentro deles próprios, por vezes antagónicos na sua coexistência, e que podem referir tanto uma preocupação formal sobre o tom ou a escala, como sugerir uma reflexão profunda sobre a relação indivíduo-coletivo. Além disso, numa mostra que parte da referência a uma linguagem plástica de um Estilo que se definia como Internacional, é sugestiva a existência de vocábulos que referem – tanto nos títulos das obras como inseridos nelas – pontos geográficos específicos: Estados Unidos da América, França, Holanda, Lisboa, Loulé, Meca-. De notar que os países referidos constituem lugares-chave na história da arquitetura e arte modernas, onde nasceu o Estilo Internacional. A também presença do número nas suas configurações visuais – caractere numérico, palavra, fração, código de barras, percentagem –, apesar de tímida, não passa despercebida. O número e a palavra, juntos, parecem indicar um jogo secreto de correspondências quânticas impossíveis de decifrar. Já as pinturas impõem uma estabilidade visual depurada pela perpendicularidade das linhas, rectângulos e quadrados, cujos perímetros não são rigorosamente considerados. A mancha passa o contorno de grafite, e as linhas surgem tortas do primeiro gesto de as desenhar. Não existe aqui a ambição do purismo das formas e das cores, mas a simplicidade e coerência com o que lhes é adjacente, articulando cheios e vazios numa paleta cromática tipicamente corbusiana. O material visual e linguístico da Mecanorma constitui um contraponto pois, além de incluir a ambiguidade da palavra, introduz a diagonal pelo corte e, assim, o desequilíbrio, o movimento, uma possível subjetividade temperamental. É nesse espaço reservado que Ramiro dá lugar à provocação, porventura ao conflito, quando integra uma folha de figuras humanas estilizadas há demasiado tempo à espera de serem transferidas para esse lugar ideal que é o pragmatismo das formas (construídas ou não). A disposição destes referentes, reunidos e não imiscuídos nos quadros, filia-se a uma noção de pré-projeto que, ao mesmo tempo, também refere uma época “pré-digital” [3]. Os decalques de figuras e tramas, usados em projetos de arquitetura e artes gráficas a partir dos anos 70, dialogam com a pintura e o desenho manuais, que se assumem como processo e fim em si mesmo. Desenho Grelhagem (2023), um muro-cortina de tijolos-losangos, evoca essa maneira inicial de aprender e projetar arquitetura: a que começa na mão que mede e escala, que experimenta o tom e não o deixa uniforme, que mancha e suja o suporte, que demora e não chega a acabar. Associo este contacto físico com a matéria ao que Ramiro diz ser “uma inteligência pré-racional, pré-mental” [4] que tendemos a esquecer com frequência e que é, não raras vezes, guia das opções tomadas pelo(s) artista(s). Ramiro apresenta outra grelha, desta vez tridimensional, um protótipo que apelidei de “grelha fora-da-norma”, uma vez que a unidade que a compõe é irregular e tem inclinado um dos seus lados, algo invulgar neste tipo de estruturas. Esta peça traz-me à lembrança o que escreveu Walter Benjamin sobre como recebemos a arquitetura: a sua receção visual só é (a)percebida “gradualmente pelo hábito, após a aproximação da recepção táctil” [5]. Esta janela funciona como um ponto de retorno entre as obras, o que permite intermediar ambas as experiências – a ótica e a tátil. Sem frente ou verso, a sua perceção varia conforme a nossa posição no espaço apresentando padrões trapezoidais em plano e profundidade, e deixando antever o espaço interior e exterior da galeria e, principalmente, inspirando outros. O uso mediterrâneo do material e da cor saturada (terracota, azul, branco) transporta-nos para territórios mais amenos, quentes, festivos, onde este tipo de soluções cumpre também uma função térmica, capaz de reter o calor e filtrar a brisa. Uma peça sensual e “sensorial” [6], que tem aqui o poder de permear as noções entre uma arte erudita e uma arte vernacular. Reflito no convívio entre as fotografias autorais de equipamentos datados e definidos por um estilo, pinturas com estética neoplasticista, materiais usados na pós-modernidade, modelos e padrões com um toque vernacular; assim como um filtro que deixa passar apenas uma parte de algo, questiono o que ainda se pode retirar neste vai-e-vem temporal e espacial entre -moodernidades. Como disse Rosalind Krauss em “Grids”, “O poder mítico da grelha é o de nos fazer pensar que estamos a lidar com o materialismo (ou, às vezes, com a ciência ou a lógica) quando, ao mesmo tempo, ela nos proporciona uma liberdade para a crença (ou para a ilusão, ou a ficção)” [7]. Assim também nos faz a obra de Ramiro Guerreiro, com a força de nos apresentar um ponto de vista sem deixar de tocar no seu contrário.
Cláudia Handem
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Notas [1] Ramiro Guerreiro em conversa com Isabel Carvalho, Folha de Sala, Grids and Filters, p.3
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