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RITA SENRA E JOãO PEDRO TRINDADE
CATARINA REAL
20/05/2020
Rita Senra (Barcelos, 1993) e João Pedro Trindade (Aveiro, 1990) são artistas plásticos, formados pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, e são donos de uma sensibilidade que se assemelha, e que se expressa na aparente pobreza dos materiais, na paleta cromática e nos exercícios de espera e de atenção, muito embora as suas preocupações enquanto autores andem longe de se fundirem. Moram juntos no Porto, pelo que a Artecapital decidiu prestar atenção às suas práticas e respectivas mudanças em tempos de confinamento conjunto. O texto que se apresenta é resultado da adaptação escrita de uma entrevista conduzida virtualmente e editado juntamente com a Rita e o João.
Por Catarina Real
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CR: Quando procurava o site do João o primeiro João Pedro Trindade que apareceu na minha pesquisa foi um terapeuta, formador e orador de consciência emocional.
Os acasos não são mais que isso mesmo, mas eu gostei desta forma de apresentação que ele deixava: “Dá um novo / Sentir à tua Vida - Eu sou o João Pedro e ajudo pessoas a transformar e simplificar as suas vidas, através da Consciência Emocional.”. Se a recontextualizasse, considerando o teu trabalho, não deixaria de fazer algum sentido para mim. Achas que o teu trabalho, e a sua atenção a simplicidades da vida quotidiana, também é capaz de transformar e simplificar vidas, através de uma consciência qualquer?
JPT: Já me tenho cruzado bastante com esse João Pedro Trindade, agora que tenho andado a actualizar o meu site.
Pensando sobre a simplicidade no meu trabalho, há um resultado que é como uma espécie de troca directa, de feedback daquilo que eu proponho que as pessoas vejam e que pertence aos seus quotidianos. Normalmente apresento no trabalho uma forma descontextualizada desta recolha e há alguma coisa que as pessoas me transmitem à posteriori: quando voltam a ter contacto com os materiais e objectos no seu estado inicial, a sua atenção sobre eles muda apenas porque o manipulei de forma diferente, isso alterou as suas perspectivas.
Acontece muitas vezes mandarem-me imagens ou mesmo guardarem objectos para eu colecionar. É uma coisa que me tem interessado também: a surpresa e entusiasmo do observador face à reutilização dos materiais. Essa reacção, ou transformação, como dizias, tem sido uma das coisas que alimenta o processo e a reflexão que faço sobre o trabalho.
CR: O teu discurso, Rita, prende-se muito com ideias relativas ao tempo, a um ir devagar, um fazer devagar. E também ao Ócio. Podes-me falar um bocadinho dessa relação entre a tua prática aparentemente tão obsessiva, construída de repetições e padrões, e o abrandamento de que falas?
RS: São duas faces da moeda. A necessidade da pausa de que falo relaciona-se com esse aceleramento que sinto que nos é imposto. Desde muito cedo senti a velocidade como contraproducente para mim. Nos últimos anos tenho vindo a sentir que o ritmo das cidades nem sempre me assenta; o seu fulgor opõe-se a algum desconforto. O obsessivo acaba por ser um meio de me abstrair dessa velocidade, e ao mesmo tempo é uma afirmação de que não estou parada. É um contra senso. Digo para mim própria que tenho de abrandar mas ao mesmo tempo assumo esse ritmo através dessas obsessões.
No ano passado, quando estava em residência em Clermont-Ferrand, em conversa com Martial Déflacieux (coordenador do projecto) - uma conversa muito esclarecedora para mim - ele disse-me que era refém de mim própria, porque o meu trabalho acabava por ser incapaz de sair da minha esfera privada, dos meus sentimentos mais íntimos. Aquilo que é uma calma tem também muito de sufoco, talvez.
CR: Se a tua prática se assumir quase como um processo terapêutico e individual de lidar com a velocidade do mundo contemporâneo, achas que os objectos que acabas por produzir são coincidentes com o teu discurso manifesto, de ir devagar, uma necessidade de abrandamento? Porque no fundo são dois momentos, o da criação e do seu tempo, e o tempo dos objectos que são resultado dela.
RS: Há uns dias atrás via uma entrevista da Ana Jotta onde dizia que o trabalho dela não serve para comunicar absolutamente nada, nem como terapia do que quer que fosse. É trabalho e pronto. E eu prefiro essa visão sobre o trabalho artístico.
Há um dilema que é o trabalho enquanto processo criativo ser uma coisa inerente à pessoa que o produz, e que enquanto o produz o vê de determinada forma. O que acontece também com as pessoas que conhecem simultaneamente as práticas e os artistas e as obras que estes apresentam, e não as dissociam. Se conheceres apenas as obras, o trabalho torna-se outra coisa que não aquilo que foi para o artista enquanto este o criava. Cabe-me a mim entender como o quero apresentar, tendo a consciência de que posso estar a cair nessa coisa de o trabalho ser uma terapia.
CR: Não usava a palavra terapia de uma forma negativa. Acho que há tendencialmente mais, concorde ou não, práticas confessionais. Acho que é uma resposta autoral legítima, mesmo ao nível do discurso teórico: a experiência individual como legitimadora. Como já não há a possibilidade de universalizar discursos, há uma necessidade discursiva muito mais individual, e terapêutica, nesse sentido. Porque diz respeito a problemas individuais - que partilhados encontram ecos porque somos inevitavelmente seres colectivos.
Quando falavas lembrava-me dessa coisa da biografia, e dos autores, e do fetiche biografista que existe. Com a capacidade de acesso à informação que temos hoje é complicado encontrares autores que não tenham uma cara, que não tenham um discurso, a que consegues aceder para além das obras que apresentam.
RS: Sim, se assim quisermos, todos podemos ser donos de um palco, hoje em dia. E há uma mistura maior do que conheces das pessoas e do que elas apresentam como obra. Nesta quarentena são recorrentes essas indistinções, com maiores partilhas do que as pessoas estão a fazer na esfera individual.
Sendo mais objectiva posso evocar as opiniões e comentários que foram partilhando sobre o meu trabalho. Sobretudo, e recorrentemente, dizem-me que são trabalhos de grande leveza. Talvez nesse sentido possa assumir que a calma de que falo transparece nos objectos. Relaciona-se muito, também, com o carácter simples da matéria e a aparente simplicidade da execução técnica.
JPT: Pensando, por exemplo, no último trabalho que a Rita apresentou, no Artes - e sendo eu privilegiado no acompanhamento da produção e da apresentação da obra - torna-se evidente que a densidade e o peso que conseguimos identificar nos processos por vezes não transparece na imagem final. Contudo, e neste caso em particular, pela possibilidade de acesso ao verso do objecto que era apresentado suspenso, são perceptíveis esses diferentes pesos. Percebes o que envolve a aparência muito simples, afinal muito complexa.
RS: Para fazer aquele tipo de trabalhos entro em modo automático, o que me dá também a oportunidade de pensar, enquanto trabalho, em coisas que não tenho disponibilidade para pensar no dia-a-dia. Aí é que reside a calma.
CR: Selecionei um projecto/exposição de cada um, para podermos falar um bocadinho. As vossas exposições “Lengalenga”, Rita, e “À fina força”, João, ambos no Sismógrafo, um projecto de que ambos fizeram parte.
JPT: A nossa saída do Sismógrafo é muito recente, saímos este ano e apenas porque percebemos que as coisas em que estamos envolvidos não nos permitem ter tempo suficiente para estar presentes, sobretudo agora, numa altura em que a sua dimensão e alcance têm vindo a crescer.
CR: O Óscar Faria escrevia, João “São peças frágeis, impuras, que nos recordam uma outra passagem de T.W.Adorno: “Quanto mais pura a forma, maior a autonomia das obras, portanto, mais cruéis elas são.””. Podes-me falar desta crueldade, que não consigo ver?
JPT: Não me identifico à primeira com essas palavras. Percebo e relaciono-me sobretudo com a ideia de impureza. Alguns materiais utilizados na exposição são produzidos pelo homem e são poluentes, de utilização diária, descartáveis. A exposição viveu muito de uma preservação das coisas deixadas ao abandono.
Foram expostos um conjunto de cartazes retirados da rua, em que estive a trabalhar durante muito tempo para os fazer ter uma certa nobreza, algo que é completamente contraditório com o que é feito quando se cola um cartaz na rua, em que não te preocupas se ele fica esticado, se não fica... Todos os meus trabalhos vêm desse contacto com as matérias; no caso dos cartazes é mais explícito, uma vez que todas as imagens são transferências directas da sua própria tinta. No caso das outras peças, como as que são feitos em papel de alumínio, há nelas a vontade de pensar como é que posso fazer uma imagem a partir de um material que foi encontrado e pisado, onde o próprio acto de pisar transformou o material numa imagem reconhecível, como de um saco de plástico, de um pano... O mesmo com as esponjas de florista: pisando uma esponja encontrei uma imagem que me interessou e depois apareceu a vontade de pensar como é poderia autonomizar aquele objecto.
Há sobretudo um lado cuidador, mais do que cruel.
CR: São todos os materiais reutilizados?
JPT: Não. No caso dos cartazes sim, são todos recolhidos da rua. Os alumínios são a evolução de pequenos apontamentos que preservei e guardei.
Começa a haver algum incómodo da minha parte, por causa da pegada ecológica que deixamos, em usar materiais novos. Nos últimos trabalhos que tenho feito esse incómodo tem sido resolvido, tenho apenas utilizado materiais que são recolhidos e que reutilizo. Na altura do Natal, por exemplo, pedi aos meus familiares e amigos que guardassem os papéis de bombons que tinham em casa. Esse cuidado começou a interessar-me muito mais do que apenas a compra de materiais novos.
CR: No teu caso Rita, e vendo o quanto a tua exposição “Lengalenga” é ilustrativa dos processos obsessivos de que falámos - repetições, colagens, texturas - começo por citar também as palavras de Óscar Faria no texto da exposição “na tentativa de encontrar esse tempo perdido algures na infância”. Não a recorto inocentemente, e assumo a ingratidão perante a falta de contexto dentro do texto. Mas interessava-me trazer à conversa esta ideia de infância, que às vezes vejo ser utilizada como uma associação redutora com certas delicadezas e inocências aparentes, em certas práticas, creio tornarem-se apenas uma enorme simplificação.
RS: A infância sim, é inevitável essa associação, pelo carácter dos materiais, maioritariamente escolares. Mas essa simplicidade dos materiais deve ser lida de outra forma também; eu quero utilizar materiais e discursos simples para trazer assuntos complexos à discussão. Há uma influência muito grande, por exemplo, do Bruno Munari, e à sua importância no pensamento sobre o ensino através da arte, e como é que nós estamos desde muito cedo a incutir às crianças coisas que acredito que são o oposto do que deveríamos fazer. As crianças são reduzidas quando poderiam ser exponenciadas.
O meu pensamento enquanto pessoa adulta refere-se à infância nesse sentido, há essa busca do tempo da infância, mas apenas no sentido de ir recuperar coisas que me foram retiradas.
CR: O título da exposição é Lengalenga e a esse juntam-se títulos de série de desenhos que são referentes também à estruturação das coisas. Prosopopeia é o título de uma das séries de desenhos que são colagens de planos de cor de papel de seda sobre papel de arroz.
RS: Palíndromo é outro dos títulos, também de uma série. Palíndromo tem como significado uma palavra que se lê da mesma forma da esquerda para a direita e da direita para a esquerda, como a palavra “sopapos” (exemplo do priberam). Nesta série vêem-se uma série de padrões, recortes e picotados sobre papel.
CR: Queres falar um pouco dessa ligação?
RS: Comecei a pensar em que ponto estava o meu trabalho quando estava a estruturar a exposição, para entender o que tinha vindo a produzir. Na altura, e relacionado com coisas que andava a escrever, soou-me pertinente a lengalenga. Trazia a sensação de que estou sempre a falar sobre a mesma coisa, sempre em círculos, e por muito que tente fugir deles, acabo por voltar ao mesmo método de trabalho e materiais.
Lengalenga traz a tal infantilidade e também alguma ironia. As lengalengas estão associadas a cânticos que normalmente as crianças praticam. São ritmadas, de forma a ajudar a memorizar alguma coisa. A ironia vem porque a própria lengalenga vive à margem da literatura, vem da gíria, e de alguma maneira eu também sinto que a minha prática artística existe um bocadinho à margem, como se se tornasse a gíria da arte contemporânea.
Se tu visses o que eu vi é uma série, de lengalengas que escrevi, compostas em sacos de papel. As palavras são recortadas com formas retiradas de escantilhões. Todas as lengalengas começavam com a frase “Se tu visses o que eu vi”, que dá título à série.
Prosopopeia e Palíndromos são duas séries de trabalhos que tenho vindo a desenvolver desde 2016. Ambas me trazem a ideia de emaranhado de pensamentos. Novamente a sensação de andar em círculos. É constante para mim o sentimento de que recorremos a personagens para atingir determinados fins, como se vestíssemos outras peles que não a nossa. Por isso é que em Se tu visses o que eu vi são recorrentes as metáforas com animais. É nesse sentido que as colagens - que são como pele sobre pele -, surgem como prosopopeias. Já os recortes e picotados, podem ser lidos em qualquer orientação, como se fossem circulares - daí Palíndromos. De um modo geral, está tudo relacionado com o sentimento destes últimos anos. A ligação da minha vida pessoal à minha vida artística. A continuidade dos mesmos círculos. Parece-me que a nossa sociedade está também numa espécie de lengalenga em que o propósito é sempre uma ganância qualquer.
CR: O que é que poderia fazer o círculo mudar?
RS: É impossível. Acho que só poderia ser mudado se deixássemos de ser egoístas. Ou se fossemos todos capazes de deixar de pensar apenas no nosso próprio umbigo.
CR: Muitas coisas de que falas, a indissociação da pessoa com o trabalho, existe também porque não tens um sistema que te permita, em grande maioria, ser artista de forma independente da tua pessoa. Esse é um problema de falta de estrutura.
JPT: Estes tempos que temos vivido têm-me feito pensar no período de final de curso, em que eu tinha uma rotina de atelier que vivia da ingenuidade de não saber o que viria a seguir e do conforto que me era dado pela minha estrutura familiar, estrutura essa que me permitia preocupar-me apenas com o desenvolvimento dos meus projectos. Na altura estabeleci um compromisso de rotina diária, que cumpria rigorosamente. Ingenuamente achava que me encontrava a trabalhar para me autonomizar. Vivo agora um momento em tenho a possibilidade de ter uma rotina próxima dessa, de passar o dia no atelier, e apercebo-me que o que nos últimos anos aconteceu faz-me repensar a minha relação de produção no contexto de atelier, mesmo quando tenho a disponibilidade e o tempo para o fazer. Numa altura em que tenho essa possibilidade, não consigo voltar àquela rotina que eu pensava ser a ideal: ir para o atelier de manhã à noite. Aquele espaço começa a transformar-se numa espécie de armazém. A vontade de fazer continua, mas essa estrutura para poder trabalhar todos os dias, várias horas por dia, deixa de existir. De alguma forma afasta-me de uma vertigem que associava ao romantismo, da imagem do artista fechado no atelier, a produzir obra.
RS: Angustia-me também a comparação com as outras pessoas, vinda do acesso às biografias de que falávamos. Ao ver alguns documentários sobre artistas, e sobre o estilo de vida que tinham, a vontade que tenho é de desligar o documentário. É inevitável comparar-me àquela pessoa e essa comparação augustia-me. O modo como nos encaramos enquanto autores não pode ser o mesmo de há uns anos atrás. O artista de 2020 não pode ser o artista dos anos 80, o mundo mudou.
Ao mesmo tempo tranquiliza-me pensar desta forma: só daqui a muitos anos é que vamos perceber qual é o nosso lugar e de que maneira poderemos produzir. No início, após a licenciatura, era uma ansiedade enorme tentar manter esse compromisso de ir para o atelier todos os dias até que chegou uma altura em que eu também tive de assumir que isso não era possível. Não é compatível com a vida que tenho de ter para me conseguir sustentar. O meu trabalho tem de passar por outras rotinas, outros lugares.
CR: Em práticas aparentemente tão auto-referentes, no sentido em que se concentram nos objectos, mesmo espelhando uma vida quotidiana que agora se encontra de alguma forma suspensa, como é que vem a quarentena afectar-vos, ao nível da continuidade do vosso trabalho?
RS: A verdade é que para nós, que já vivíamos à margem de um mundo institucional, enquanto autores, não haverá grande diferença. Poderemos talvez imaginar que algumas dessas instituições poderão cair, ou ficar com o seu poder económico mais fragilizado. Nesse sentido, talvez a partir daqui surjam mais oportunidades para projectos independentes aparecerem e poderá ser proveitoso porque talvez as atenções retornem a esses lugares.
A quarentena traz-nos mais uma camada de pensamento, mas em termos práticos nada se altera muito.
JPT: Eu tenho feito o trabalho que tenho negligenciado ao longo do tempo, de organização de conteúdos. E este tempo tem-me permitido tomar consciência da transformação que tomou lugar no meu trabalho, de há dois ou três anos para cá, na relação que foi também a minha mudança de vida, como falávamos há pouco.
Eu fazia um trabalho que vivia de uma ligação muito mais próxima com os sítios para onde era convidado a expor, o que já não acontece porque eu deixei de ter tanta disponibilidade de tempo como a que tinha. Vejo também como os trajectos, fora do atelier, foram sendo introduzidos nas minhas preocupações, assim como o trabalho oficinal que desenvolvo para o teatro, e o que dessa partilha surge para estes novos trabalhos. O arquivo e o coleccionismo, estes pequenos objectos que vou guardando como modelos de ideias. São pequenas gavetas que vou tendo, e que podem vir a crescer e a materializar-se de outras formas. Tornou-se uma prática muito mais de concretização destes modelos.
Há momentos em que o desalento é grande e questiono até a existência do atelier, mas há alguma coisa de resistência - a nossa vida de artista acaba por se desenvolver muito assim. A perspectiva de desenvolvimento de alguma coisa que acaba por não acontecer, mas no momento desta resistência também tens de encontrar realização. Cada vez que revisito o atelier, por exemplo de manhã, que era um dos meus momentos de trabalho predilecto, ele traz-me à mesma a energia que esperava que ele trouxesse. E enquanto isso acontece eu continuo a acreditar que é importante eu estar ali, mesmo que os recursos possam diminuir e os projectos possam cair.
Estes são tempos de ruptura, férteis para entrar nas brechas e acrescentar conteúdos. Acho que como a Rita referia, os projectos independentes poderão passar a existir de outra forma, um pouco como o comércio local funciona face a uma grande superfície. Há neles uma proximidade maior e as coisas são mais significantes se as pessoas conseguirem criar mais laços através desta proximidade.
RS: Também tem servido para fazer coisas que normalmente não conseguimos. Temos visto filmes que já queríamos ver há muito tempo, actualizar sites, burocracias que vamos arrastando.
JPT: Eu fui também convidado para um projecto, num espaço abandonado ao pé do estádio do Dragão. É um antigo parque de estacionamento onde há um casebre que está aberto. É um projecto em que não há expectativa nenhuma de que os objectos sejam visitados. Interessa-me a falta de pretensão de que seja alguma coisa. Quem se cruzar com esse lugar terá acesso, mas quem não o fizer, não terá.
CR: Gostava que me falassem um pouco da intercepção das vossas práticas, ou das semelhanças de interesses que elas vão evocando. Por isso deixei uma pergunta-piada para o final; o contágio é uma força activa nos vossos trabalhos?
RS: Ultimamente temos sido obrigados a pensar sobre esse contágio, por imposição de quem vê os nossos trabalhos, e pelos comentários que nos fazem. São ligações ténues, como se os trabalhos fossem polvilhados de um no outro. Este ano temos uma exposição no Home.Alone, em Clermont-Ferrand. Foi um convite que nos fizeram, enquanto dupla, uma possibilidade a que temos fugido. Entendemos que o contágio acontece porque convivemos um com o outro e isso são consequências naturais.
JPT: É uma das coisas que temos aproveitado para fazer durante este tempo, discutir as possibilidades para esta exposição que irá acontecer no final do ano. A nossa proposta irá por aí; como é que este contágio acontece e como poderíamos trabalhar a partir disso. Temos pensado como é que este momento de confinamento nos obriga a criar esta relação enquanto dupla, que já existia a um nível pessoal, mas que agora terá também de passar a um pensamento criativo conjunto; como é que nos materializaremos numa exposição através desta troca de coisas que nos estão tão próximas.
No geral, enquanto a Rita tem uma visão muito mais rítmica, eu sou muito mais pragmático, e penso sempre em funções e estruturas que simplifiquem o meu trabalho. Os nossos processos são muito diferentes, apesar de termos sensibilidades parecidas.
CR: Têm algo a acrescentar, para os leitores desta entrevista?
RS: De um modo geral, acho que as pessoas que estavam alerta para o que se estava a passar, numa escala local ou global, de alguma forma conseguiam antecipar uma mudança. Ultimamente andava com este sentimento de que havia alguma coisa próxima da explosão, dentro da nossa lengalenga e a qualquer momento. De alguma maneira a sensação de que haveria alguma coisa que iria acontecer para nos fazer parar já existia.
JPT: Acho interessante pensar que o que nos está a sujeitar a isto tudo é uma coisa invisível. Estamos a jogar com algo que, apesar dessa invisibilidade, todos temos de lidar com. Para além disso, a escala a que ela existe não te dá nenhuma ferramenta que te permita actuar. É curioso perceber como é que as pessoas lidam e se adaptam a este novo modo de estar.
RS: Que de alguma maneira já acontecia a outros níveis, ou noutros fenómenos. Como as alterações climáticas, que são visíveis e invisíveis. Se estivesses alerta estavas já a lidar com essa invisibilidade, este momento parece apenas um prolongamento.