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SOBRE A PERTINÊNCIA DAS PRÁTICAS CONCEPTUAIS NA FOTOGRAFIA CONTEMPORÂNEANUNO MATOS DUARTE2012-12-11(...) Photography has finally arrived at its own existential crisis. It is far from being over - no medium is ever over as long as there is just an ounce of creativity left on this planet. But photography has long been running in a circle. Over the past ten years, it has increasingly become dominated by nostalgia and conservatism. Even the idea that we now need editors or curators to create meaning out of the flood of photographs ultimately is conservative, looking backwards when we could, no we should be looking forward(...) (...) A fé ingénua no estilo coincide com o rancor contra o conceito do progresso da arte. Os raciocínios filosófico-culturais, insensíveis às tendências imanentes que impelem ao radicalismo artístico, apoiam-se habitualmente com prudência no facto de o cenceito de progresso se ultrapassar a si mesmo, relicto medíocre do séc. XIX. Isso confere-lhes a aparência de uma superioridade intelectual sobre a dependência tecnológica dos artistas vanguardistas, e também algum efeito demagógico; repartem a benção intelectual ao anti-intelectualismo muito espalhado, que degenera em indústria cultural e por ela é alimentada (...) Theodor W. Adorno [2] Na arte contemporânea, o percurso dos usos da fotografia conheceu um radical desvio do anti-estético para o campo por excelência do estético. As práticas proto–conceptuais e pós–conceptuais das décadas de 60 e 70 do século passado, deram lugar às práticas da apropriação pós–modernista dos anos 80, assistindo–se por fim a uma fotografia de grande escala, a cores, a partir dos anos 90. A fotografia atual virou costas à arte conceptual e procurou aproximar-se da pintura ao aspirar à mesma variedade de efeitos estéticos. Esta assunção de um paradigma alheio, esta mimetização dos processos criativos e estéticos de um outro medium, conduziu a uma espécie de emancipação da obra fotográfica, que passou efetivamente a rivalizar, enquanto valor de mercado, com as restantes artes plásticas e visuais. Por outro lado, conduziu também a prática da fotografia do campo aberto e aparentemente inesgotável da pura experimentação, para o espaço mais restrito do conservadorismo. O sentimento geral de tudo ter sido experimentado em arte não é, por isso, alheio à prática fotográfica atual. Sente-se que sobre o uso da fotografia na arte contemporânea também paira a constante ameaça do esgotamento. Essa ameaça manifesta-se no condicionamento formal e conceptual, que resulta de contingências várias mas que, em última instância, será auto imposto. O impulso criativo é primordialmente, e sobretudo, fruto do empenho individual em fazer acontecer, em negar realidades presentes e dessa negação aguçar a pesquisa do novo. Subjacente à ideia de inovação está a natureza reativa dos agentes transformadores, os mesmos que, por ora, conformados com a aceitação do lugar-comum de que tudo está feito, vão produzindo obra resignada. Mas ao falar de esgotamento da arte, falamos de um esgotamento do quê, em concreto? Qual ou quais dos dispositivos da arte estão efetivamente sob esta ameaça que torna atávicos os artistas ou que, no mínimo, os faz insistir na repetição de esquemas de produção mais ou menos testados e seguros? Não será, pelo contrário, a predisposição nostálgica que atravessa o meio dos artistas a alimentar a noção de esgotamento? Não existirá ela tão-somente devido às características dos tipos de produção que lhes é exigida no meio e que os próprios artistas, consciente ou inconscientemente, também fomentam? A predominância de uma atitude maneirista na arte conheceu recentemente novas designações, tais como revisitação, revivido e refeito, e não apenas nas práticas que conscientemente centram a sua pesquisa estética na exploração do nosso conhecimento da preexistência de diversos tipos de imagética [3], mas também na procura, menos séria, de assemelhar-se para validar o que se produz, deliberada busca acrítica de auto-catalogação nas diversas categorias de gosto. Esta nostalgia, no caso da fotografia, manifesta-se inclusive nas opções tecnológicas tomadas pelos artistas e nos materiais fotográficos que empregam. Neste processo tornam-se mais ou menos evidentes as contradições conceptuais, estilísticas e técnicas que tal atitude acarreta, bem como a ligeireza na definição dos propósitos estéticos que pautam a constituição das obras. Perante a prevalência da velocidade e da profusão intensa de imagens, sente-se fortalecer a tendência para a reação quase imediata e epidérmica na sua validação o que, por ser mais fácil, também incentiva o ciclo do culto dos modelos do passado e do seu mimetismo. Reage-se positiva e instantaneamente ao que reconforma o mundo que se conhece, dentro dos seus pressupostos idiossincráticos, numa espécie de reconhecimento do já há muito adquirido. A construção do conhecimento do novo é tarefa que, a ser certeira, abraça a lentidão e torna-se inimiga do instantâneo. Se a arte conceptual, no campo das artes plásticas, introduziu o desvio da ênfase dada à materialidade da obra para o campo das ideias e do jogo linguístico, no campo da fotografia conceptualista esse desvio deu-se, sobretudo, em favor das características de visibilidade do sistema criado, em detrimento das características de visibilidade da imagem em si. Nas obras fotográficas de Douglas Huebler e Ed Ruscha, o desinteresse pela ontologia da fotografia veio elencado na capacidade da imagem tornar evidente um sistema, em certa medida, performativo. É na eficácia estética da acção como sistema, nessa sua novidade como objeto dado ao mundo, que reside fundamentalmente a sua proposta. Os artistas/fotógrafos conceptualistas usaram a fotografia mais como um meio para um fim do que como fim em si mesmo. Quando se procura apontar fragilidades à arte conceptual, invariavelmente a ouvimos ou lemos adjetivada de tautológica, na medida em que o objeto materializado seria o mero correspondente duma lógica verbal apriorística. Tal adjetivação, a ser certeira (o que julgamos não o ser), não pode ser característica exclusiva da arte conceptual. Em arte, todos os academismos podem legitimamente ser adjetivados de tautológicos na medida em que as obras académicas, ao adoptarem um modelo para se formarem, são sempre reflexo desse modelo e mais valorizadas quanto mais legível for essa correspondência. O modelo que serve as obras académicas é um modelo a elas externo. São, por isso, mais reconhecimento (do seu correspondente passado) do que conhecimento (compreensão de novos conceitos). Esta é uma realidade que a nossa época conhece bem. Sem uma atitude experimental inusitada não há efectivamente progresso, evolução ou novidade em arte e, numa visão mais pura, talvez não haja mesmo arte. Na ótica purista, as obras dos artistas, para serem arte, teriam forçosamente de encerrar em si, pelo menos, a inquietação muito particular da centelha do novo. Não sendo totalmente novas, nelas pulsaria, latente, uma novidade sistémica. Para Rosalind Krauss, um único aspecto se mantém firme e justamente constante no discurso vanguardista: o tema da originalidade [4]. À medida que o modernismo se foi tornando cada vez mais poroso, admitindo a entrada no campo da imagem de cada vez mais citações da arte do passado, surgiu a necessidade de conter ou reunificar o terreno do ecletismo, de modo a reter o valor “artístico” [5]. A tautologia presente na materialização das ideias ou lógicas verbais da fotografia conceptualista reporta-se sempre à originalidade de um sistema e não necessariamente à validação das obras por via de modelos formais imagéticos comummente aceites. O modelo que as serve, ao contrário do que sucede na obra académica, provém da lógica interna da própria obra. Nela, os modelos formais externos, a existirem, veem-se nivelados pela eficácia da lógica de correspondência ao sistema proposto, diluindo-se nesse processo a importância da marca autoral. Dá-se o desvio do desfrute estético, que se afasta das características de visibilidade da composição da imagem e se aproxima das características de visibilidade da composição do sistema. Nunca será excessivo sublinhar que a sua conformação em imagens ou objetos é parte integrante da composição desse sistema. Muitos dos equívocos que existem em torno da arte conceptual residem neste ponto. É redutora a afirmação de que a obra materializada nunca tem consistência e que, como tal, o referente verbal é necessário para a validar. Nas obras mais conseguidas, nas obras-primas, os géneros artísticos diluem-se, a obra é o todo, material e imaterial, que a compõe, não havendo prevalência de um sobre o outro. O hipotético desaparecimento total da tinta que compõe Il Cenacolo de Leonardo, nunca anularia a riqueza de todo o património falado, escrito e gráfico que durante séculos se construiu tomando-o como ponto de partida. Todo esse património é também Il Cenacolo de Leonardo, assim como tudo o que há de imaterial na Variable Piece #70 [6] de Douglas Huebler é também a Variable Piece #70 de Douglas Huebler. A fotografia conceptualista trouxe às obras de arte fotográficas uma outra relação do espectador com o tempo. O tempo suspenso das imagens isoladas opõe-se ao tempo intuído da seriação resultante da performance. O tempo mediado pelo propósito da ação desencadeada pelo artista, pode também induzir aleatoriedade e acidente, tornando-se estes, deliberadamente, elementos decisivos na estética da obra. Em arte, falar de sistemas de ordem com origem em decisões aleatórias é sempre reportarmo-nos a Marcel Duchamp e à obra Trois Stoppages Étalon (Três Paragens Padrão) de 1913-1914, peça que o próprio Duchamp considerava fundamental dentro da sua obra por ter representado uma forma de fuga aos métodos tradicionais associados à arte. A peça terá sido executada mantendo na posição horizontal três linhas de coser com um metro de comprimento, largando-as da altura de um metro sobre uma tela e fixando-as na posição resultante, através de envernizamento [7]. As implicações e influência desta obra quase centenária ultrapassam de longe a simples experimentação com o acaso, constituindo-se também como reflexão metafórica sobre o tema de uma geometria complexa, tetra-dimensional e não-euclideana. No entanto, o que importa dela reter para o presente estudo é que Duchamp criou com Trois Stopagges Étalon uma nova noção de imagem funcional (ou objeto epistémico), na qual esta imagem é simultaneamente instrumento e resultado da invenção de uma instalação experimental. Nasce assim uma estética centrada em torno da noção do possível e que rejeita as velhas noções de beleza, harmonia e equilíbrio [8]. É evidente a influência desta obra noutra peça seminal na história da arte, o livro Twenty Six Gasoline Stations de Ed Ruscha. Tal como em Trois Stoppages Étalon, a especificidade aleatória de um número define a estruturação da peça mas, mais do que isso, estabelece uma instrução que dita as condições iniciais da experiência sem determinar o seu resultado [9]. A herança dos primeiros fotógrafos conceptualistas pode ainda fornecer ferramentas para escapar aos lugares-comuns da visualidade e aos valores nostálgicos que ensombram a prática da arte fotográfica hoje. Não é mais viável uma adoção tout court das metodologias proto−conceptuais e conceptuais que constituíram o ponto de partida para toda a fotografia desde Ed Rucha e os Becher (seja por divergência ou por convergência). Essa estratégia de actuação não conseguiria mais do que alimentar outras variantes da propensão nostálgica predominante. No entanto, nas consequências das suas premissas genéricas, na abertura ao aleatório, na visão desapaixonada das qualidades intrínsecas da imagem e na peculiar relação que nestas obras o fotográfico tem com o tempo (nessa percepção que vacila entre o tempo da performance e o tempo de fruição da obra), existe ainda um vasto campo de pesquisa. Várias pistas foram recentemente trilhadas por artistas como Michael Wolf ou Roni Horn, associando o primeiro a performatividade sistémica à estética documental das novas tecnolgias digitais e a segunda à redescoberta da importância do valor estético da imagem em si mesma, pesquisando a fusão de géneros (o retrato torna-se paisagem e vice-versa), estabelecendo uma posição autoral firme, assente na relação da sua individualidade com o mundo. Para ambos os autores, apesar das notórias diferenças formais entre as suas obras, a herança conceptualista está presente e resulta numa experiência da imagem como pensamento sobre a própria experiência do mundo, com profundidade psicológica, sinceridade inabalável e ironia quanto baste. Urge devolver à imagem a sua dimensão ética, para combater o clima de indiferença que a assombra. Neste processo, como vimos atrás, não podem ser desprezados os ensinamentos metodológicos das práticas artísticas conceptuais. Como escreveu Didi−Huberman “(...)a dimensão ética não desaparece nas imagens: pelo contrário, exacerba-se nelas (...) Trata-se, então, de uma questão de escolha: diante de toda e qualquer imagem, temos de decidir como queremos fazê-la participar, ou não, nos nossos propósitos de conhecimento e de ação (...)” [10]. Do excesso intoxicante de imagens, do esvaziar da possibilidade de renovar as suas qualidades intrínsecas, resulta a necessidade premente de novos modos de olhar mas, mais do que isso, a necessidade de redescobrir o que olhar, como olhar e como o levar ao olhar. Nuno Matos Duarte NOTAS [1] Colberg, Joerg (2012), Photography After Photography (A Provocation) , jun 12, 2012. URL: www.tinyurl.com/ct7jl2k [2] Adorno, Theodor W., Teoria Estética. Lisboa: Edições 70, p. 234(edição original Aesthetische Theorie. Frankfurt am Main: Suhrkamp-Verlag, 1970). [3] Sobre o tema ver cap. 7 - “Revived and Remade” em Cotton, Charlotte (2004), The Photograph as Contemporary Art. London: Thames & Hudson, p. 191. [4] Krauss, Rosalind E. (1986), The Originality of the Avant-Garde and Other Myths, MIT Press, p.6. [5] Idem, pág. 41. [6] Em Variable Piece #70, Douglas Huebler propôs-se fotografar durante a duração da sua vida, até aos limites das suas capacidades, a existência de todos os seres humanos vivos, com o objetivo de produzir a mais autêntica e inclusiva representação da espécie humana que pode ser reunida daquele modo. O statement que explicita o seu propósito e uma folha com provas de contacto com exemplos de fotografias feitas em Nova Iorque para o efeito, dão forma à peça. [7] Originalmente a obra não teria a forma de uma caixa de madeira contendo um “arranjo experimental”, tal como existe hoje na colecção do Museum of Modern Art em Nova Iorque. [8] Sobre o tema ver Molderings, Herbert (2010), Duchamp and the Aesthetics of Chance – Art as Experiment. New York: Columbia University Press (edição original Kunst als Experiment. Marcel Duchamps “3 Kunststopf-Normalße” . Munique e Berlim: Deutscher Kunstverlag, 2006). [9] Costello, Diarmuid and Iversen, Margaret (ed.)(2010), Photography After Conceptual Art. West Sussex/United Kingdom: Wiley-Blackwell, p. 16. [10] Didi-Huberman, Georges (2012), Imagens Apesar de Tudo. Lisboa: KKYM, p. 226 (edição original Images malgré tout. Paris: Les Éditions de Minuit, 2004). |