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ARTES PERFORMATIVAS


SRSQ € €UNREALITY€

RICARDO ESCARDUÇA

2018-10-29



 

 

“Unreality” servirá, entre outros, o propósito pertinente e oportuno de fazer recordar o contraste entre a ilusão idealista de garantia e controlo e a realidade inescapável da fragilidade e vulnerabilidade da condição humana.

SRSQ, o projecto a solo da vocalista e teclista californiana Kennedy Ashlyn, talvez não existisse sequer, ou porventura existiria em outra dimensão que não aquela da qual afinal emerge, a de acertar contas com o passado. O álbum de estreia encorpa o trauma e a purga do luto pela amiga e guitarrista Cash Askew, uma de entre as dezenas de vítimas de um incêndio urbano no decurso de um concerto num armazém em Oakland convertido em espaço artístico, assim extinguindo o duo dreamwave e shoegaze Them Are Us Too da baía de S. Francisco a que ambas davam a face. O que este contexto íntimo, exposto nu e cru às custas da coragem para o enfrentar, imprime em “Unreality” é a agregação da dimensão sublime desta esfera pessoal e trágica à da beleza da obra lírica e musical.

 

 

Na sua maioria lúgubre, melancólico e desconsolado, “Unreality” biografa os cacos do passado, as angústias do presente e os receios do futuro. Porém, não arrasta consigo e tão-pouco induz a depressão da morte; antes exalta a experiência e percepção emocionais, transformadoras do trágico em belo. O conjunto das oito faixas instala um vórtice de sentimentos que, entre o lamento da memória e a exultação da ilusão, fazem ainda colidir a angústia da desorientação, o desespero da dor, a reconciliação da resignação, a celebração da gratidão e a resiliência da sobrevivência. E é, acima de tudo, na empatia que reside a distinção de “Unreality”.

Em posição de destaque, em muito construindo a sonoridade tão sombria quão espectral de todo o álbum, a distinta performance da voz dinâmica e dramática de Ashlyn, tão sedutora quão assombradora, ecoa e faz reverberar versos amargurados e carpidos, mas comoventes, que reflectem aquela turbulência de emoções variadas, não só através da exploração da amplitude vocal, que ascende desde suaves e subtis murmúrios a operáticas e majestosas projecções mas também por via da poesia em si mesma. Se em “Cherish”, é “Now you are sans life, and I’d give anything to be us”, em “The Martyr” é “I struggle just to keep from going under”, e em “Procession” é “I’ll see your face each rose that blooms”. No refrão de “Mixed Style” surge “In the night I find I know euphoria / Soon the tide will fall to my dystopia / In this place we can defy mortality / Lead me to survive this unreality”.

 

 

Por entre os meandros dos vocais, tão encantadores quão desconcertantes, ilustrando esta mesma intensidade ambígua da nostalgia e da catarse, Ashlyn convoca estilos musicais que concorrem entre si tanto quanto se complementam, e que resultam numa unidade coerente e singular. Às várias facetas da voz juntam-se melodias arejadas e esvoaçantes de sintetizadores que, à primeira vista, evocam o dreamwave dos anos ’80 e levam à precipitada aderência de SRSQ a Cocteau Twins, como em “Cherish” ou “Procession. Mera falácia que, assim mesmo, não chega a oferecer a resolução para a perda sepulcral. “Only One”, ainda que remotamente anexo a essa tal atmosfera dreamy, rapidamente se distancia ao adensar e obscurecer as harmonias vocais e instrumentais dessa substância etérea apenas na aparência, em resultado das camadas adicionais de sintetizadores e efeitos sonoros noise mais glaciais e obscuras, complementadas pelo minimalismo metálico dos beats e da percussão electrónica, resultando num ambiente espessamente texturado que se afasta daquela origem. “The Martyr” ou “Mixed Style” dão continuidade a essa carga quando se condensam e adensam num darkwave e synth-goth que, em “No Reason” se torna disforme e abstracto e, em “Permission”, se agrega ao industrial e techno.

 

 

Além da pungência da sua música, a notabilidade de Ashlyn e desta estreia a solo advém da sua imediata e compulsiva capacidade para entrelaçar som e emoção e aderir ao âmago mais íntimo, e nesse encontro sofrer sem sucumbir e curar-se da sua história, a sua ou aquela de com quem ela se cruzar. “Unreality” comove, é o que a arte faz.


“Unreality” tracklist
1. Prelude
2. The Martyr
3. Cherish
4. Procession
5. Mixed Tide
6. No Reason
7. Permission
8. Only One

 




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