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ARTES PERFORMATIVAS


ENTRE O MAL E A INOCÊNCIA: RUTH WHITE E AS SUAS FLOWERS OF EVIL

RUI MIGUEL ABREU

2013-09-24



 

 

A reedição recente do incrível Flowers of Evil de Ruth White por parte da francesa Black Mass Rising constitui uma das mais importantes notícias nos domínios da eletrónica pioneira. Este álbum de 1969 volta a estar disponível numa edição em vinil que reproduz fielmente o original, lançado na norte-americana Limelight, contribuindo assim de certa forma para aliar o nome de Ruth White ao de outras pioneiras da eletrónica como Daphne Oram, Suzanne Ciani, Laurie Spiegel ou Eliane Radigue, entre outras, que também viram recentemente alguns dos seus trabalhos clássicos serem recuperados para o presente, na maior parte dos casos em edições em vinil.

 

O caso de Flowers of Evil é, no entanto, dos mais especiais. Obra-prima incontestável, este álbum, que certamente há de ter feito parte dos hábitos de audição de Trish Keenan dos Broadcast, é fruto da visão altamente personalizada de Ruth que utilizou o clássico de Baudelaire como pretexto para uma investigação às propriedades mais íntimas, espirituais até, do próprio som. Ruth White assinou um extenso trabalho na área dos discos para crianças, mas tinha igualmente um certo fascínio pelo oculto tendo dedicado um álbum às cartas do Tarot (Seven Trumps From The Tarot Card And Pinions, de 1968) e este outro a leituras da obra As Flores do Mal de Baudelaire, suportadas por uma música bastante sombria que refletia o tom noturno dos poemas.

 

Bruce Haack é outro pioneiro que também explorou o universo infantil em alguns dos seus lançamentos e que também não se escusou a um olhar para o lado mais negro… Essa dicotomia parecia aliás interessar a muitos dos pioneiros da eletrónica: como Ruth White e Bruce Haack, também Mort Garson incluiu na sua discografia momentos tão diferentes como uma espécie de homenagem ao Feiticeiro de Oz, assinando como The Wozard of Iz o álbum An Electronic Odyssey, e como Lucifer (nome sugestivo…), o espantoso Black Mass (que, aliás, inspira certamente o nome de batismo da editora que agora relançou Flowers of Evil).

 

Ruth White, como tantos outros nomes deste campo, vinha de um contexto académico, tendo estudado na Carnegie Tech na Pensilvânia. O currículo de Ruth White incluía ainda estudos avançados com George Antheil e o domínio de uma série de instrumentos, como o piano ou o violoncelo. Mas Ruth tinha uma visão muito própria da música que provavelmente não era compatível com a academia, pelo que em 1964 criou o seu próprio estúdio forjando muito cedo uma aliança com o pioneiro fabricante de instrumentos eletrónicos Robert Moog. O subsequente trabalho de Ruth White, sobretudo no domínio das gravações educacionais, mas, como já se percebeu, com a ocasional investida em terrenos mais esotéricos, levou-a a cruzar-se com outros notáveis exploradores das possibilidades eletrónicas como Paul Beaver (da dupla Beaver & Krause) ou Robert Margouleff, compositor que chegou mesmo a convidar a autora de Flowers of Evil para participar nas gravações do que viria a ser o clássico Zero Time assinado como Tonto’s Expanding Head Band (a colaboração, infelizmente, acabou por não acontecer).

 

Este trabalho de Ruth White data de 1969, ano em que boa parte da comunidade musical, e não apenas a mais eletrónica, estava com a cabeça na lua, literalmente. Mas Ruth White preferiu eleger como conceito de trabalho para esse ano esta abordagem a Les Fleurs du Mal, uma viagem certamente menos cósmica do que a inspirada pela conquista da Lua, mas não menos séria e intensa. E o mais extraordinário, tendo em conta que o campo da eletrónica ainda era bastante inexplorado, é que Ruth trabalhou a fundo para conseguir uma harmonia total entre as palavras, o seu significado profundo e a música que compôs. É aliás notável que Ruth tenha dado à leitura do texto um tom monocórdico e quase inexpressivo do ponto de vista emocional, deixando à música a responsabilidade total nesse plano. Flowers of Evil traduz-se assim numa audição complexa, capaz de mexer com as nossas emoções, tocando num qualquer ponto recôndito da nossa consciência de forma indelével, deixando-nos bastas vezes num notório desconforto, como os melhores filmes de terror.

 

Depois de ter estado apenas ao alcance de colecionadores durante muito tempo e de ter merecido uma reedição num fac-símile em CDr na Creel Pone de Keith Fullerton Whitman, Flowers of Evil chega finalmente às melhores lojas no seu formato original. Uma oportunidade imperdível para todos os que queiram preservar estas verdadeiras memórias do futuro.

 

Para terminar, as palavras da própria Ruth White:

“To me, Baudelaire’s poems are of such unique power that they always seem to rise above the level of the personal and sometimes existential nature of their content. In this composition, I have attempted to parallel the transcendental qualities of the poetry through electronic means.

For the words, I used my own voice as the generator of the original sound to be altered or “dehumanized.” this seemed practical since my experiments with the medium were too time consuming to have been easily accomplished with a collaborator.

To modulate my voice, I used a variety of techniques. changes of timbre were achieved with filters. Tape speed changes were used to control pitch. Into the shape of some words, I injected sound waves and white noise, thus changing the quality of their sound but not the flow of their delivery. By adding reyerberation, I varied atmospheres and decreased or increased space illusions. To accent special words or phrases, i used controlled tape delays. Choruses were created by combining slight delays with multiple track recordings.

The musical settings around the voice were made with music concrète materials, a moog synthesizer, other electronic generators and conventional instruments, which were usually altered electronically.

In the translations, there was no attempt to rhyme the verse as in the original french poems. I tried only to keep the language as direct and simple as possible, for I always found that the dominating power of Baudelaire’s ideas ‘were in themselves of electrifying force.”

 


Links:

en.wikipedia.org/wiki/Ruth_White_(composer)
blackmassrisingsociety.blogspot.pt
 




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